domingo, 7 de abril de 2024

Visão

No centro do diz cinzentos, no meio da banal viagem, e nesse momento em que a custo equilibramos todos os motivos de agir e de cruzar os braços, de insistir e desesperar, e ficamos quietos, neutros e presos ao mais medíocre equilíbrio - foi então que aconteceu. Eu vinha sem raiva nem desejo - no fundo do coração as feridas mal cicatrizadas, e a esperança humilde como ave doméstica - eu vinha como um homem que vem e vai e já teve noites de tormenta e madrugadas de seda, e dias vividos com todos os nervos e com toda a alma, e charnecas de tédio atravessadas com a longa paciência dos pobres - eu vinha como um homem que faz parte da sua cidade, e é menos um homem que um transeunte, e me sentia como aquele que se vê nos cartões-postais, de longe, dobrando uma esquina - eu vinha como um elemento altamente banal, de paletó e gravata integrado no horário coletivo, acertando o relógio do meu pulso pelo grande relógio da estrada de ferro central do meu país, acertando a batida do meu pulso pelo ritmo da faina quotidiana - eu vinha, portanto, extremamente sem importância, mas tendo em mim a força da conformação, da resistência e da inércia que faz com que um minuto depois das grandes revoluções e catástrofes o sapateiro volte a sentar na sua banca e o linotipista na sua máquina, e a cidade apareça estranhamente normal - eu vinha como um homem de quarenta anos que dispõe de regular saúde, e está com suas letras nos bancos regularmente reformadas e seus negócios sentimentais aplacados de maneira cordial e se sente bem disposto para as tarefas da rotina, e com pequenas reservas para enfrentar eventualidades não muito excêntricas - e que cessou de fazer planos gratuitos para a vida, mas ainda não começou a levar em conta a faina da própria morte - assim eu vinha, como quem ama as mulheres de seu país, as comidas de sua infância e as toalhas do seu lar - quando aconteceu. Não foi algo que tivesse qualquer consequência, ou implicasse novo programa de atividades; nem uma revelação do Alto nem uma demonstração súbita e cruel da miséria de nossa condição, como às vezes já tive.

Foi apenas um instante antes de se abrir um sinal numa esquina, dentro de um grande carro negro, uma figura de mulher que nesse instante me fitou e sorriu com seus grandes olhos de azul límpido e a boca fresca e viva; que depois ainda moveu de leve os lábios como se fosse dizer alguma coisa - e se perdeu, a um arranco do carro, na confusão do tráfego da rua estreita e rápida. Mas  foi como se, preso na penumbra da mesma cela eternamente, eu visse uma parede se abrir sobre uma paisagem úmida e brilhante de todos os sonhos de luz. Com vento agitando árvores e derrubando flores, e o mar cantando ao sol.


Crônica de Rubem Braga retirado do livro 200 Crônicas Escolhidas - As melhores de Rubem Braga, Editora Record, 9ª Edição, Rio de Janeiro, 1993.

sábado, 6 de abril de 2024

Indagação Oportuna (14)

 "Disse-lhes: - Recebestes vós o Espírito Santo quando crestes?" - (Atos, 19:2)


A pergunta apostólica vibra ainda em todas as direções, com a maior oportunidade, nos círculos do Cristianismo.

Em toda parte, há pessoas que começam a crer e que já creem, nas mais variadas situações.

Aqui, alguém aceita aparentemente o Evangelho para ser agradável às relações sociais.

Ali, um indagador procura o campo da fé tentando acertar problemas intelectuais que considera importantes.

Além, um enfermo recebe o socorro da caridade e se declara seguidor da Boa Nova, guiando-se pelas impressões de alívio físico.

Amanhã, todavia ressurgem tão insatisfeitos e tão desesperados quanto antes.

Nos arraiais do Espiritismo, tais fenômenos são frequentes.

Encontramos grande número de companheiros que se afirmam pessoas de fé, por haverem identificado a sobrevivência de algum parente desencarnado, porque se livraram de alguma dor de cabeça ou porque obtiveram solução para certos problemas da luta material; contudo, amanhã prosseguem duvidando de amigos espirituais e de médiuns respeitáveis, acolhem novas enfermidades ou se perdem através de novos labirintos do aprendizado humano.

A interrogação de Paulo continua cheia de atualidade.

Que espécie de espírito recebemos no ato de crer na orientação de Jesus? O da fascinação? O da indolência? O da pesquisa inútil? O da reprovação sistemática às experiências dos outros?

Se não abrigamos o espírito de santificação que nos melhore e nos renove para o Cristo, a nossa fé representa frágil candeia, suscetível de apagar-se ao primeiro golpe de vento.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

terça-feira, 2 de abril de 2024

O Milagre

Naquela pequena cidade as romarias começaram quando ocorreu o boato do milagre. É sempre assim. Começa com um simples boato, mas logo o povo - sofredor, coitadinho, e pronto a acreditar em algo capaz de minorar sua perene chateação - passa a torcer para que o boato se transforme numa realidade, para poder fazer do milagre a sua esperança.

Dizia-se que ali vivera um vigário muito piedoso, homem bom, tranquilo, amigo da gente simples, que fora em vida um misto de sacerdote, conselheiro, médico, financiador dos necessitados e até advogado dos pobres, nas suas eternas questões com os poderosos. Fora, enfim, um sacerdote na expressão do termo: fizera de sua vida um apostolado.

Um dia o vigário morreu. Ficou a saudade morando com a gente do lugar. E era em sinal de reconhecimento que conservavam o quarto onde ele vivera, tal e qual o deixara. Era um quartinho modesto, atrás da venda. Um catre ( porque em histórias assim a cama da personagem chama-se catre), uma cadeira, um armário tosco, alguns livros. O quarto do vigário ficou sendo uma espécie de monumento à sua memória, já que a prefeitura local não tinha verba para erguer sua estátua.

E foi quando um dia... ou melhor, uma noite, deu-se o milagre. No quarto dos fundos da venda, no quarto que fora do padre, na mesma hora em que o padre costumava acender uma vela para ler seu breviário, apareceu uma vela acesa.

- Milagre!!! - quiseram todos.

E milagre ficou sendo, porque uma senhora que tinha o filho doente, logo se ajoelhou do lado de fora do quarto, junto à janela, e pediu pela criança. Ao chegar em casa, depois do pedido - conta-se - a senhora encontrou o filho brincando fagueiro.

- Milagre!!! - repetiram todos. E o grito de "Milagre!!!" reboou por sobre montes e rios, vales e florestas, indo soar no ouvido de outras gentes, de outros povoados. E logo começaram as romarias.

Vinha gente de longe pedir! Chegava povo de tudo quanto é canto e ficava ali plantado, junto à janela, aguardando a luz da vela. Outros padres, coronéis, até deputados, para oficializar o milagre. E quando eram mais ou menos seis da tarde, hora em que o bondoso sacerdote costumava acender sua vela... a vela se acendia e começavam as orações. Ricos e pobres, doentes e saudáveis, homens e mulheres, civis e militares caíam de joelhos, pedindo.

Com o passar do tempo a coisa arrefeceu. Muitos foram os casos de doenças curadas, de heranças conseguidas, de triunfos os mais diversos. Mas, como tudo passa, depois de alguns anos passaram também as romarias. Foi diminuindo a fama do milagre e ficou, apenas, mais folclore na lembrança do povo.

O lugarejo não mudou nada. Continua igualzinho como era, e ainda existe, atrás da venda, o quarto que fora do padre. Passamos outro dia por lá. Entramos na venda e pedimos ao português, seu dono, que vive há muitos anos atrás do balcão, a roubar no peso, que nos servisse uma cerveja. O português, então, berrou para um pretinho que arrumava latas de goiabada numa prateleira:

- Ó Milagre, sirva uma cerveja ao freguês!

Achamos o nome engraçado. Qual o padrinho que pusera o nome de Milagre naquele afilhado? E o português explicou que não, que o nome do pretinho era Sebastião. Milagre era apelido.

- E por quê? - perguntamos.

- Porque era ele quem acendia a vela, no quarto do padre.


Crônica de Stanislaw Ponte Preta retirada do livro Dois amigos e um chato, Coleção Veredas, Editora Moderna,  26ª Edição, 1997, São Paulo.

sábado, 30 de março de 2024

Ergamo-nos (13)

 "Levantar-me-ei e irei ter com meu pai..." - (LUCAS, 15:18)


Quando o filho pródigo deliberou tornar aos braços paternos, resolveu intimamente levantar-se.

Sair da cova escura da ociosidade para o campo da ação regeneradora.

Erguer-se do chão frio da inércia para o calor do movimento reconstrutivo.

Elevar-se do vale da indecisão para a montanha do serviço edificante.

Fugir à treva e penetrar a luz.

Ausentar-se da posição negativa e absorver-se na reestruturação dos próprios ideais.

Levantou-se e partiu no rumo do Lar Paterno.

Quantos de nós, porém, filhos pródigos da Vida, depois de estragarmos as mais valiosas oportunidades, clamamos pela assistência do Senhor, de acordo com os nossos desejos menos dignos, para que sejamos satisfeitos? Quantos de nós descemos, voluntariamente, ao abismo e, lá dentro, atolados na sombria corrente de nossas paixões, exigimos que o Todo-Misericordioso se faça presente, ao nosso lado, através de seus divinos mensageiros, a fim de que os nossos caprichos sejam atendidos?

Se é verdade, no entanto, que nos achamos empenhados em nosso soerguimento, coloquemo-nos de pé e retiremo-nos da retaguarda que desejamos abandonar.

Aperfeiçoamento pede esforço.

Panorama dos cimos pede ascensão.

Se aspiramos ao clima da Vida Superior, adiantemo-nos para a frente, caminhando com os padrões de Jesus.

- Levanter-me-ei, disse o moço da parábola.

- Levantemo-nos, repitamos nós. 


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 29 de março de 2024

Primavera em campo de batalha

Sozinho no bunker em longa vigília, pensava nas cerejeiras que agora estariam florindo nos campos da sua terra. Via-se deitado de costas sobre o chão pedregoso, debaixo da espuma branca em que as abelhas  zumbiam atarefadas enquanto o perfume escorria pelas encostas.

Perseguindo a lembrança, pegou o giz das anotações e desenhou uma branca flor de cerejeira sobre a parede de cimento. Depois outra. Mais outra. Outra ainda. Até o cinzento desaparecer, anulados na floração paredes e teto.

Deitado de costas sobre o cimento, debaixo daquela espuma branca, aspirou fundamente. Mas o perfume só lhe submergiu a cabeça quando, pela estreita seteira do bunker, começaram a entrar as abelhas.


Texto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

quinta-feira, 28 de março de 2024

A companhia dos amigos

O jogo estava marcado para as 10 horas, mas começou quase 11. O time de Ipanema e Leblon tinha alguns elementos de valor, como Aníbal Machado, Vinícius de Morais, Lauro Escorel, Carlos Echenique, o desenhista Carlos Thiré, e um cunhado do Aníbal que era um extrema-direita tão perigoso que fui obrigado a lhe dar uma traulitada na canela para diminuir-lhe o entusiasmo. Eu era beque do Copacabana e atrás de mim o guardião e pintor Di Cavalcanti. Na linha média e na atacante jogavam um tanto confusamente Augusto Frederico Schmidt, Fernando Sabino, Orígenes Lessa, Newton Freitas, Moacir Werneck de Castro, o escultor Pedrosa, o crítico Paulo Mendes Campos. Não havia juiz, o que facilitou muito a movimentação da peleja, que se desenrolou em três tempos, ficando convencionado que houve dois jogos. Copacabana venceu o primeiro por 1x0 (houve um gol anulado porque Di Cavalcanti declarou que passara por cima da trave; e, como não havia trave, ninguém pôde desmentir). O segundo jogo também vencemos, por 2 a 1. Esse 1 deles foi feito passando sobre o meu cadáver. Senti um golpe no joelho, outro nos rins e outro na barriga; elevei-me no ar e me abati na areia, tendo comido um pouco da mesma.

A torcida era composta de variegadas senhoras que ficavam sob as barracas e chupavam melancia. Uma saída do center-forward Scmidt (passando a bola gentilmente para trás, para o center-half) e uma defesa de Echenique foram os instantes de maior sensação.

Carlos Drummond de Andrade deixou de comparecer, assim como outros jogadores do Copacabana, como Sérgio Buarque de Holanda e Chico Assis Barbosa. Afonso Arinos de Melo Franco jogará também no próximo encontro, em que o Leblon terá o reforço de Fernando Tude e Édison Carneiro, além de Otávio Dias Leite e outros. Joel Silveira mora em Botafogo, mas como sua casa é perto do Túnel Velho jogará no Copacabana.

Assim nos divertimos nós, os cavalões, na areia. As mulheres riam de nosso "prego". Suados, exaustos de correr sob o sol terrível na areia quente e funda, éramos ridículos e lamentáveis, éramos todos profundamente derrotados. Ah, bom tempo em que eu jogava um jogo inteiro - um meia-direita medíocre mas furioso - e ainda ia para casa chutando toda pedra que encontrava no caminho.

Depois mergulhamos na água boa e ficamos ali, uns 30 homens e mulheres, rapazes e moças, a bestar e conversar na praia. Doce é a  companhia dos amigos; doce é a visão das mulheres em seus maiôs, doce é a sombra das barracas; e ali ficamos debaixo do sol, junto ao mar, perante as montanhas azuis. Ah, roda de amigos e mulheres, esses momentos de praia serão mais tarde momentos antigos. Um pensamento horrivelmente besta, mas doloroso. Aquele amará aquela, aqueles se separarão; uns irão para longe, uns vão morrer de repente, uns vão ficar inimigos. Um atraiçoará, outro fracassará amargamente, outro ainda ficará rico, distante e duro. E de outro ninguém mais ouvirá falar, e aquela mulher que está deitada, rindo tanto sua risada clara, o corpo molhado, será aflita e feia, azeda e triste.

E houve o Natal. Os Bragas jamais cultivaram com muito ardor o Natal; lembro-me que o velho sempre gostava de reunir a gente num jantar, mas a verdade é que sempre faltava um ou outro no dia. Nossas grandes festas eram São João e São Pedro - em São João havia fogueira no quintal, perto do grande pé de fruta-pão, e em São Pedro, padroeiro da cidade, havia uma tremenda batalha naval aérea inesquecível de fogos de artifício. Hoje não há mais nem São João, nem São Pedro, e continua não havendo Natal. Tomei um suco de laranja e fui dormir. A cidade estava insuportável, com milhões de pessoas na rua, os caixeiros exaustos, os preços arbitrários, o comércio, com o perdão da palavra, lavando a égua, se enchendo de dinheiro. Terá nascido Cristo para todo ano dar essa enxurrada de dinheiro aos senhores comerciantes, que já em novembro começam a espreitar o pequenino berço na estrebaria com um olhar cupido?

Atravessarei o ano na casa fraterna de Vinícius de Moraes. Estaremos com certeza bêbados e melancólicos - mas, em todo caso, meus amigos,  se eu não ficar melancólico farei ao menos tudo para ficar bêbado. Como passam os anos! Ultimamente têm passado muitos anos. Mas não falemos nisso.


Crônica de Rubem Braga retirado do livro 200 Crônicas Escolhidas - As melhores de Rubem Braga, Editora Record, 9ª Edição, Rio de Janeiro, 1993.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Inferno Nacional

A historinha abaixo transcrita surgiu no folclore de Belo Horizonte e foi contada lá, numa versão política. Não é o nosso caso. Vai contada aqui no seu mais puro estilo folclórico, sem maiores rodeios.

Diz que era uma vez um camarada que abotoou o paletó. Em vida o falecido foi muito dado à falcatrua, chegou a ser candidato a vereador pelo PTB, foi diretor de instituto de previdência, foi amigo do Tenório, enfim... ao morrer nem conversou: foi direto para i Inferno. Em lá chegando, pediu audiência s Satanás e perguntou:

- Qual é o lance aqui?

Satanás explicou que o Inferno estava dividido em diversos departamentos, cada um administrado por um país, mas o falecido não precisava ficar no departamento administrado pelo seu país de origem. Podia ficar no departamento do país que escolhesse. Ele agradeceu muito e disse a Satanás que ia dar uma voltinha para escolher o seu departamento.

Está claro que saiu do gabinete do Diabo e foi logo para o departamento dos Estados Unidos, achando que lá devia ser mais organizado o inferninho que lhe caberia para toda a eternidade. Entrou no departamento dos Estados Unidos e perguntou como era o regime ali.

- Quinhentas chibatadas pela manhã, depois passar duas horas num forno de duzentos graus. Na parte da tarde: ficar numa geladeira de cem graus abaixo de zero até as três horas, e voltar ao forno de duzentos graus.

O falecido ficou besta e tratou de cair fora, em busca de um departamento menos rigoroso. Esteve no da Rússia, no do Japão, no da França, mas era tudo a mesma coisa. Foi aí que lhe informaram que tudo era igual: a divisão em departamento era apenas para facilitar o serviço no Inferno, mas em todo lugar o regime era o mesmo: quinhentas chibatadas pela manhã, forno de duzentos graus durante o dia e geladeira de cem graus abaixo de zero pela tarde.

O falecido já caminhava desconsolado por uma rua infernal, quando viu um departamento escrito na porta: Brasil. E notou que a fila à entrada era maior do que a dos outros departamentos. Pensou com suas chaminhas: "Aqui tem peixe por debaixo do angu". Entrou na fila e começou a chatear o camarada da frente, perguntando por que a fila era maior e os enfileirados menos tristes. O camarada da frente fingia que não ouvia, mas ele tanto insistiu que o outro, com medo de chamarem a atenção, disse baixinho:

- Fica na moita, e não espalha não. O forno daqui está quebrado e a geladeira anda meio enguiçada. Não dá mais de trinta e cinco graus por dia.

- E as quinhentas chibatadas? - perguntou o falecido.

- Ah... o sujeito encarregado desse serviço vem aqui de manhã, assina o ponto e cai fora.


Crônica de Stanislaw Ponte Preta retirada do livro Dois amigos e um chato, Coleção Veredas, Editora Moderna,  26ª Edição, 1997, São Paulo.

terça-feira, 26 de março de 2024

Sequestro Moral

São Tomás de Aquino, teólogo do século 13, adverte que a morte simbólica é pior do que a morte física, pois a primeira convoca a vítima a ser testemunha de seu opróbrio, como ocorre na tortura. Os políticos de direita no Brasil, desprovidos dos recursos de coerção física que a ditadura lhes assegurava, como prisões arbitrárias e assassinatos, introduziram uma nova modalidade em nossa conjuntura: o sequestro moral.

Com requintes de fazer inveja ao Comando Vermelho, os autores do sequestro moral escolhem sempre como vítimas um político em ascensão, na iminência de ocupar o poder que a elite conservadora sempre considerou seu monopólio. Não é preciso agarrar a vítima na rua ou arrastá-la de sua casa. Basta encontrar quem esteja disposto, por dinheiro ou cumplicidade ideológica, vir a público prestar falso testemunho, induzindo a população, através da mídia, a crer que Lula é um pai desalmado ou Brizola vinculado, através de sua filha, ao tráfico internacional de drogas. Confinadas ao acesso restrito aos meios de comunicação, que costumam abrir mais espaço à versão do fato do que à evidência do desmentido, as vítimas são obrigadas a arcar com o prejuízo da dúvida e a pagar um alto resgate para recuperar a boa reputação a que têm direito.

Os autores do sequestro moral são ídolos com pés de barro. Prometem na vida pública uma coisa e fazem outra na privada. Quando a notícia vaza, a preocupação não é apurar responsabilidades, mas avaliar o seu impacto junto à opinião pública. Vox populi, vox Dei, ensinavam os romanos. Se, como os gregos, a população é capaz de absorver as fraquezas dos deuses do Olimpo, deixa-se de lado a ética e reforça-se o princípio de que moral é tudo aquilo que favorece os vencedores. Política é política, amigos, anônimos, escondidos sob as benesses do poder, tramando o desvio de milhões de dólares do patrimônio público para a iniciativa privada. E, no entanto, numa inversão de todos os critérios morais, rola a cabeça de quem teve a dignidade de denunciar a maracutaia, num aviso inequívoco de que devem guardar absoluto silêncio todos aqueles que se locupletam no banquete dos marajás.

A imprensa são os olhos e os ouvidos de uma nação. Mas ela tem o dever de não se calar quando a autoridade constituída extrapola suas obrigações e, em abuso de poder, compromete a reputação alheia. Leviano não é só quem acusa sem fundamento, mas também quem dá à acusação um espaço que não é aberto ao acusado. Talvez manuais de ética sejam hoje mais úteis em certas redações dos meios de comunicação do que tantas coleções de manuais de redação e de estilo, mais apropriadas ao currículo escolar.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

sábado, 23 de março de 2024

Impedimentos (12)

 "Pondo de lado todo o impedimento... corramos com perseverança a carreira que nos está proposta." - Paulo. (HEBREUS, 12.1)


Por onde transites, na Terra, transportando o vaso da tua fé a derramar-se em boas obras, encontrarás sempre impedimentos a granel, dificultando-te a ação.

Hoje, é o fracasso nas tentativas iniciais de progresso.

Amanhã, é o companheiro que falha.

Depois, é a perseguição descaridosa ao teu ideal.

Afligir-te-ás com o fel de muitos lábios que te merecem apreço.

Sofrerás, de quando em quando, a incompreensão dos outros.

Periodicamente encontrarás na vanguarda obstáculos mil, induzindo-te à inércia ou à navegação.

A carreira que nos está proposta, no entanto, deve desdobrar-se no roteiro do bem incessante...

Que fazer com as pessoas e circunstâncias que nos compelem ao retardamento e à imobilidade?

O apóstolo dos gentios responde, categórico:

"Pondo de lado todo o impedimento."

Colocar a dificuldade à margem, porém, não é desprezar as opiniões alheias quando respeitáveis ou fugir à luta vulgar. É respeitar cada individualidade, na posição que lhe é própria, é partilhar o ângulo mais nobre do bom combate, com a nossa melhor colaboração pelo aperfeiçoamento geral. E, por dentro, na intimidade do coração, prosseguir com Jesus, hoje, amanhã e sempre, agindo e servindo, aprendendo e amando, até que a luz divina brilhe em nossa consciência, tanto quanto inconscientemente já nos achamos dentro dela.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Do Carmo

Encontro na praia um velho amigo. Há anos que a vida nos jogou para lados diferentes, em profissões diversas; e nesses muitos anos apenas nos vimos ligeiramente uma vez ou outra. Mas aqui estamos de tanga, em pleno sol, e cada um de nós tem prazer em constatar que não envelheceu sozinho. E cata, com amável ferocidade, os sinais de decadência do outro. Lamentamo-nos, mas por pouco tempo; logo, num movimento de bom humor, resolvemos descobrir que,  afinal de contas, nossa idade é confortável, e mesmo, bem pensadas as coisas, estimável. Quem viveu a vida sem se poupar, com a alma e o corpo, e recebeu todas as cargas em seus nervos, pode conhecer, como nós dois, essa vaga sabedoria animal de envelhecer sem remorsos.

Lembramos os amigos de quinze a vinte anos atrás. Um enlouqueceu, outro morreu de beber, outro se matou, outro ficou religioso e muito rico, há outros que a gente encontra às vezes numa porta de cinema ou numa esquina de rua.

E Do Carmo?

Respondo que há uns dez anos atrás, quando andava pelo Sul, tive notícias de que ela estava na mesma cidade; mas não a vi. Nenhum de nós sabe que fim levou essa Maria do Carmo de cabelos muitos negros e olhos quase verdes, a alta e bela Do Carmo. E sua evocação nos comove, e quase nos surpreende, como se, de súbito, ela estivesse presente na praia e estirasse seu corpo lindo entre nós dois, na areia. Falamos de sua beleza; nenhum de nós sabe que história pessoal o outro poderia contar sobre Do Carmo, mas resistimos sem esforço à tentação de fazer perguntas; não importa o que tenha havido; afinal foi com outro homem, nem eu, nem ele,  que Do Carmo partiu para seu destino; e a verdade é que deixou nele e em mim a mesma lembrança misturada de adoração e de encanto.

Não teria sentido reencontrá-la hoje; dentro de nós ela permanece como um encantamento, em seu instante de beleza. Maria do Carmo "é uma alegria para sempre", e sua lembrança nos faz mais amigos.

Depois falamos de negócios, família, política, a vida de todo o dia. Voltamos ao nosso tempo, regressamos a hoje, tornamos a voltar. E de súbito corremos para a água e mergulhamos, com o vago sentimento de que essa água sempre salgada, impetuosa e pura, não limpa somente a areia do nosso corpo; tira também um pouco a poeira que na alma vai deixando a passagem das coisas e do longo tempo.


Crônica de Rubem Braga retirado do livro 200 Crônicas Escolhidas - As melhores de Rubem Braga, Editora Record, 9ª Edição, Rio de Janeiro, 1993.