domingo, 8 de dezembro de 2024

Mitos Culturais - 16. As mulheres falam demais

Ante a sugestão de que as mulheres falariam mais que os homens, as pesquisadoras canadenses Deborah James e Janice Drakich analisaram 63 estudos sobre a relação sexo-verborragia em diferentes contextos, nas últimas três décadas. As mulheres falaram mais do que os homens em apenas 2 levantamentos. Na Nova Zelândia, os homens dominam o tempo de discussão em rodas mistas de conversas. Cientistas da Universidade de Maryland (EUA), no entanto, encontraram no cérebro feminino uma proteína, FOXP2, responsável pela verborragia: uma mulher usa 20 mil palavras ao dia (na Língua Inglesa, claro); um homem, 7 mil. Outro estudo, da Universidade do Texas, sugere que a cota de palavras diárias dos dois sexos é a mesma, 16 mil palavras.


Texto de Evanildo Bechara. Gramático e imortal da ABL.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.


15. A gramática normativa é retrógrada

É importante levar em conta o fato de ter a gramática normativa um objeto bem definido (a Língua exemplar, que é uma variedade "ideal" construída pela tradição culta da comunidade), e por isso mesmo não espelha todas as possibilidades vigentes e correntes do idioma, nas suas variedades regionais, sociais e estilísticas.

Aliás, todo estudo sério tem de delimitar seu corpus de aplicação. Daí cometer-se uma injustiça com a gramática normativa quando ela é chamada retrógrada por não agasalhar certos fatos que ocorrem, por exemplo, na variedade popular, ou na familiar ou na regional.

Temos ouvido e lido críticas à gramática normativa por não aceitar começar frases com pronome átono adverbial, ou aconselhar que se evitem construções como "implicar em crise" (em vez de "implicar crise", sem a preposição "em"), "aluga-se apartamentos (por alugam-se apartamentos"), "deu dez horas" (por "deram dez horas"), "hoje é sete de dezembro" (por "hoje são sete de dezembro"), "fazem dez meses" (por "faz dez meses"), "isto é para mim fazer" (em vez de "é para eu fazer") e tantos outros fatos de regência, de concordância e de colocação que correm tranquilos e normais nas variedades informais da Língua, mas que não conseguiram ainda penetrar vitoriosos na língua exemplar, nos momentos em que o texto - especialmente o escrito - exige, pela tradição sociocultural, essa variedade exemplar.


Texto de Evanildo Bechara. Gramático e imortal da ABL.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.


sábado, 7 de dezembro de 2024

União Fraternal (49)

 "Procurando guardar a unidade do espírito pelo vínculo da paz." - Paulo. (EFÉSIOS, 4:3)


À frente de teus olhos, mil caminhos se descerram, cada vez que te lembras de fixar a vanguarda distante.

São milhões de sendas que marginam a tua. Não olvides a estrada que te é própria e avança. destemeroso.

Estimarias, talvez, que todas as rotas se subordinassem à tua e reportas-te à união, como se os demais viajores da vida devessem gravitar ao redor de teus passos...

Une-te aos outros, sem exigir que os outros se unam a ti. 

Procura o que seja útil e belo, santo e sublime e segue adiante...

A nascente busca o regato, o regato procura o rio e o rio liga-se ao mar.

Não nos esqueçamos de que a unidade espiritual é serviço básico da paz.

Observas o irmão que se devota às crianças?

Reparas o companheiro que se dispôs a ajudar aos doentes?

Identificas o cuidado daquele que se fez o amigo dos velhos e dos jovens?

Assinalas o esforço de quem se consagrou ao aprimoramento do solo ou à educação dos animais?

Aprecias o serviço daquele que se converteu em doutrinador na extensão do bem?

Honra a cada um deles, com o teu gesto de compreensão e serenidade, convencido de que só pelas raízes do entendimento pode sustentar-se a árvore da união fraterna, que todos ambicionamos robusta e farta.

Não admitas que os outros estejam enxergando a vida através de teus olhos.

A evolução é escada infinita. Cada qual abrange a paisagem de acordo com o degrau em que se coloca.

Aproxima-te de cada servidor do bem, oferecendo-lhe o melhor que puderes, e ele te responderá com a sua melhor parte.

A guerra é sempre o fruto venenoso da violência.

A contenda estéril é resultado da imposição.

A união fraternal é o sonho sublime da alma humana, entretanto, não se realizará sem que nos respeitemos uns aos outros, cultivando a harmonia, à face do ambiente que fomos chamados a servir. Somente alcançaremos semelhante realização "procurando guardar a unidade do espírito pelo vínculo da paz".


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

As Primeiras Canções

O país que viu nascer a nova geração de compositores da MPB (Música Popular Brasileira) saía do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Enquanto o mundo tentava curar as feridas da Segunda Guerra, no Brasil o estado de direito ainda engatinhava quando foi sacudido pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954. Em que pese o trauma, as eleições daquele ano ocorreram na data prevista, e em 1955 Juscelino se elegeria presidente da República.

Não obstante as tentativas da UDN (União Democrática Nacional), sob a liderança de Carlos Lacerda, de impedir sua posse, ele assumiu em 31 de janeiro de 1956. Imediatamente solicitou ao Congresso a suspensão do estado de sítio e aboliu a censura à imprensa. Na primeira reunião ministerial, expôs o que ficou conhecido como Programa de Metas, que, com o lema "Cinquenta anos em cinco", fazia uma clara opção pelo desenvolvimento quase que a qualquer custo. A ampliação e diversificação do parque industrial, a construção da nova capital, Brasília, com projeto do urbanista Lucio Costa e prédios do arquiteto Oscar Niemeyer, e a conquista da Copa do Mundo de Futebol, na Suécia, em 1958, infundiam na população um orgulho jamais visto.

Ao desenvolvimento econômico correspondia uma efervescência cultural. Em 1955, Nelson Pereira dos Santos levas às telas o filme Rio 40 graus, que se tornou um marco do que viria a ser conhecido como Cinema Novo. No teatro, o povo torna-se protagonista na peça Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, encenada pelo Teatro de Arena, em São Paulo, em 1958. No mesmo ano, também em São Paulo, é criado o Teatro Oficina, cujas produções balançaram a cena durante décadas. Ainda na dramaturgia, surgem novos autores, como o polêmico Plínio Marcos, com a peça Barrela.

Em agosto saía pela Odeon o compacto simples de João Gilberto trazendo no lado B "Bim Bom", de sua autoria, e no lado A "Chega de Saudade", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, que daria nome ao revolucionário LP de 1959. Era a Bossa Nova, estilo que até hoje, 51 anos depois, influencia músicos de todo o planeta. Chico era, então, um adolescente.

Nascido no Rio de Janeiro em 19 de junho de 1944, Francisco Buarque de Holanda foi o quarto filho dos sete que o historiador Sérgio Buarque de Holanda teve com Maria Amélia Cesário Alvim. Dois anos depois, Sérgio é convidado a dirigir o Museu do Ipiranga, e a família transfere-se para São Paulo, onde nascem as três irmãs mais novas. essa pequena trupe muda-se em 1953 para a Itália, lá permanecendo por dois anos, enquanto Sérgio leciona na Universidade de Roma.

Embora Chico afirme em diversas entrevistas que a atração pela literatura é anterior ao gosto pela música, um fato chama a atenção: antes de partir para Roma, deixou para a avó um bilhete, de uma crueldade ingênua, só permitida às crianças: "Vovó Heloísa. Olhe vozinha não se esqueça de mim. Se quando eu chegar aqui você já estiver no céu, lá mesmo veja eu ser um cantor de rádio".

São dessa época suas primeiras aventuras musicais - marchinhas de carnaval, influência, talvez, do que ouvia no rádio da babá índia. Curiosamente, foi essa índia que, anos depois, introduziu a primeira televisão na casa dos Buarque de Holanda.

Na Itália, Chico estudou em escola americana, e em pouco tempo falava três idiomas: português em casa, italiano na rua e inglês na escola. De volta a São Paulo, cursou o Colégio Santa Cruz, de padres canadenses progressistas, e ali escrevia contos e crônicas no jornal escolar Verbâmidas. A experiência levou-o a acreditar que um dia seria escritor. Mas o LP Chega de Saudade adiou esse sonho por alguns anos. A batida inconfundível de João Gilberto, com seus acordes econômicos, o arrebatara para a música.

Não só a ele. Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros que viriam a integrar o primeiro time da MPB foram picados pela mesma mosca. A forma intimista da Bossa Nova, com apenas um banquinho e um violão, sem a necessidade de um vozeirão impostado, facilitava a vida de quem desejasse se aventurar por esse caminho.

Chico se lembra de que passava horas com um amigo tentando imitar os acordes do genial baiano. Da imitação para a composição foi um pulo. Uma de suas primeiras músicas, "Canção dos Olhos" (1959), cantada à exaustão nos barzinhos e shows escolares, é uma cópia deslavada do estilo de João Gilberto, conforme o próprio Chico reconhece em sua entrevista ao MIS (Museu da Imagem e do Som) em 1966.

Em 1961 assume a presidência da República o ex-governador de São Paulo, Jânio Quadros, que renuncia após sete meses de uma gestão tumultuada. Não menos tumultuadas foram a posse e o governo do vice João Goulart. Identificado pelos militares como homem de esquerda, Jango assumiu com poderes reduzidos, num improvisado regime parlamentarista instaurado em setembro de 1961 e que duraria até o início de 1963, quando um plebiscito restaurou o presidencialismo.

Investido de poderes presidenciais, Jango adotou o projeto do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) denominado Reformas de base - um conjunto de propostas que visava promover alterações nas estruturas econômicas, sociais e políticas que garantissem a superação do subdesenvolvimento e permitissem uma diminuição das desigualdades sociais. No cenário externo, vivia-se a afirmação da Revolução Cubana (1958-59) e a crise dos mísseis soviéticos (1962) instalados em Cuba - que por pouco não levou a um confronto nuclear as duas superpotências de então, União Soviética e Estados Unidos.

Em 1963, Chico ingressa na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), menos por escolha do que por falta de alternativa. Para música não havia boas escolas, e o curso de Letras era tido, na época, como coisa para mulheres. E do futebol, outra de suas paixões, ele desistiu após ter treinado no minúsculo Clube Atlético Juventus, na Mooca, em São Paulo. O urbanismo, então, afigurava-se como a saída para quem, desde criança, desenhava cidades imaginárias.

O golpe de 1964 jogou um balde de água fria na efervescência política que ele vivia no ambiente universitário, ainda que de forma discreta. Decepcionada, sua atenção se voltava cada vez mais para a música. Logo, o "Carioca", como era conhecido, batizou de "sambafos" os encontros com amigos num barzinho próximo ao Mackenzie, para tocar violão, cantar em evidentemente, exalar o hálito da bebida que consumiam. O hino do grupo era o samba "Oba", de Osvaldo Nunes, que exaltava o bloco carnavalesco Bafo da Onça.


Essa onda que eu vou

Olha a onda, iaiá

É o Bafo da Onça que acabou de chegar

Essa onda que eu vou

Olha a onda, iaiá

É o Bafo da Onça que acabou de chegar


Pipocavam em São Paulo shows de música em que na primeira parte se apresentavam os novatos e na segunda apareciam nomes já consagrados. O carioca do sambafo participou de vários deles, mostrando suas composições. Além de "Canção dos Olhos", apresentava "Marcha para um dia de sol" (provavelmente de 1960-61, já que nem Chico se lembra mais)


Eu quero ver um dia 

numa só canção 

o pobre e o rico 

andando mão em mão 

que nada falte

que nada sobre

o pão do rico

o pão do pobre...


Pela abordagem ingênua da questão social, a canção logo foi apelidada, para desgostos do autor, de "João XXIII", numa referência ao papa que publicara as encíclicas Mater et magistra (1961) e Pacem in terris (1963). É possível, porém, que o tom conciliatório da letra derive de uma experiência vivida por Chico quando ainda estudava no Santa Cruz. Como membro da OAF (Organização de Auxílio Fraterno), ele ia com regularidade até a região da Estação da Luz entregar cobertores e outras doações aos moradores de rua.

Em entrevista para Tarso de castro, na Folha de S.Paulo de 11-9-1977, mesmo considerando o caráter assistencialista da ação, ele admite a importância que isso teve na sua formação: "... pra um cara como eu, que morava ali no que seria a Zona Sul de São Paulo [...] e que estudou em colégio de menino rico, de repente ter essa missão, duas vezes por semana, era muito importante".

Levado pela irmã mais velha, Miúcha, Chico cantou a marcha num dos redutos da boa música da época, O João Sebastião Bar, onde ouviu a promessa da grande estrela do local, Claudette Soares, de que iria gravá-la. Ficou só na promessa. A cada novo disco da cantora ele corria pra ver se sua música estava lá - e nada.


Na última hora, saía o disco, eu procurava e não tinha a música, e eu morria de triste [...] Ela foi gravada quando eu já não acreditava nela. Quando eu acreditava nela, ninguém acreditava em mim, porque era muito moleque. Quando parei de acreditar nela, eu já estava mais crescido, então resolveram gravar - mas aí a música já não tinha mais sentido nenhum...


admitiria no depoimento ao MIS. Ele se referia ao fato de a cantora Maricene Costa ter gravado a música em 1964, quando ele já havia perdido  o interesse por ela: "Nem João XXIII concorda com aquele tipo de  ecumenismo social. Não adianta conciliar rico e pobre, o negócio é não haver distinção", diria ele em entrevista para a revista Realidade em 1967.

Gostando ou não, foi a primeira vez que suas composições puderam ser ouvidas em disco, embora na voz de outrem.

Era só treino. O jogo ainda estava por começar.


Texto de introdução do livro Chico Buarque - História de Canções, de Wagner Homem, Editora Leya, São Paulo, 2009.

sábado, 30 de novembro de 2024

Diante do Senhor (48)

          "Por que não entendeis a minha linguagem? Por não poderdes ouvir a minha palavra."                   - Jesus. (JOÃO, 8:43)


A linguagem do Cristo sempre se afigurou a muitos aprendizes indecifrável e estranha.

Fazer todo o bem possível, ainda quando os males sejam crescentes e numerosos.

Emprestar sem exigir retribuição.

Desculpar incessantemente.

Amar os próprios adversários.

Ajudar aos caluniadores e aos maus.

Muita gente escuta a Boa Nova, mas não lhe penetra os ensinamentos.

Isso ocorre a muitos seguidores do Evangelho, porque se utilizam da força mental em outros setores. Creem vagamente no socorro celeste, nas horas de amargura, mostrando, porém, absoluto desinteresse ante o estudo e ante a aplicação das leis divinas.

A preocupação da posse lhes absorve a existência.

Reclamam o ouro do solo, o pão do celeiro, o linho usável, o equilíbrio da carne, o prazer dos sentidos e a consideração social, com tamanha volúpia que não se recordam da posição de simples  usufrutuários do mundo em que se encontram, e nunca refletem na transitoriedade de todos os patrimônios materiais, cuja função única é a de lhes proporcionar adequado clima ao trabalho na caridade e na luz, para engrandecimento do espírito eterno.

Registram os chamamentos do Cristo, todavia, algemam furiosamente a atenção aos apelos da vida primária.

Percebem, mas não ouvem.

Informam-se, mas não entendem.

Nesse campo de contradições, temos sempre respeitáveis personalidades humanas e, por vezes, admiráveis amigos.

Conservam no coração enormes potenciais de bondade, contudo, a mente deles vive empenhada no jogo das formas perecíveis.

São preciosas estações de serviço aproveitável, com o equipamento, porém, ocupado em atividades mais ou menos inúteis.

Não nos esqueçamos, pois, de que é sempre fácil assinalar a linguagem do Senhor, mas é preciso apresentar-lhe o coração vazio de resíduos da Terra, para receber-lhe, em espírito e verdade, a palavra divina.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

terça-feira, 26 de novembro de 2024

O Receptivo

Uma vez Gil me disse que havia jogado o I Ching fazendo a seguinte pergunta: "O que eu sou, afinal?" A resposta do oráculo recaiu no hexagrama número dois, todo formado de linhas abertas - "O Receptivo", que tem como imagem "a terra" e como atributo "a devoção".

A nitidez daquilo me impressionou, por ser tão próximo da forma como o reconheço, como o reconhecem, como vários que ele próprio se reconhece. Talvez isso seja o que seja ser alguma coisa - o ponto onde todos esses olhares convergem.

Na verdade, a questão parecia se referir ao mais íntimo de seu íntimo. Mas em Gil isso não difere em nada da maneira como ele soa publicamente, de forma explícita, a cada canção, a cada verso de cada canção, a cada palavra de cada verso ou declaração; em cada palco, acorde, atitude.

Gil é o receptivo. Luz onde as sombras se assentam, e que lhes dá contorno. Clareza que abraça o mistério sem temor. O maleável. "Transcorrendo, transformando, tempo e espaço navegando todos os sentidos." A natureza, o princípio feminino ("a porção melhor que trago em mim agora"), o que recebe.

É assim que as palavras se articulam nos encadeamentos rítmicos, melódicos, semânticos de suas canções. O "abacateiro" que atrai "acataremos"; "bárbara bela que se torna "barbarela", ali onde Jeca Total vê Gabriela; o vermelho da rosa no sorvete; o sonho e o fim do sonho ao mesmo tempo dissolvendo a noite e a pílula, da "boca do dia" à "barriga de Maria"; a "dura caminhada" na "cama de tatame"; o "baú de prata" porque "prata é a luz do luar"; o "adeus" se dirigindo à "deusa", com o deslocamento cinematográfico do "a"; o tempo que vai e onde vai dar, menina, do perpétuo socorrei.

Tudo parece fazer sentido na medida em que deixa o sentido se fazer. O casual aberto ao intencional aberto ao casual, como círculos concêntricos se expandindo a partir da pedra, atirada com mira sobre a água sem alvo. Água cristalina não porque reflete, mas porque corre. Onde a limpidez do sentido vem de sua adequação ao ritmo, à linha melódica; clareza vindo da fluência. Cadência.

Como a letra de "Batmacumba" (parceria com Caetano), que condensa tantos significados enquanto parece estar apenas traduzindo onomatopaicamente a batida do tambor. Ali onde fala da tribo também faz dançar.

Gil deixa que as palavras se digam, se liguem umas às outras, imantadas pela música, para dizer o que ele tem a dizer.

Que baixe o santo, que a musa cante, que o vento sopre, que desça a inspiração, que se creia na ideia de inspiração. Que se cumpra o pedido da "deusa música", e se deixe "derramar o bálsamo, fazer o canto, cantar o cantar". Que o destino e a vontade, ação e inação, coincidam, colidam no mesmo gesto. "Mesmo porque tudo sempre acaba sendo o que era de se esperar." Que haja fé, sem esforço, pois nenhum esforço possível pode gerar a fé. Que a raiz seja a antena e o cesto a parabólica. Que descobrir seja inventar e que a meta dessa "metade do infinito" seja "simplesmente metáfora".

Essa entrega, esse espírito aberto ao mundo, essa leitura pessoal da exigência de cada circunstância e sua transformação em autoexigência, como traço da personalidade de Gil, acabaram se traduzindo, sem paradoxo, em intervenção radical, convicta, afirmativa das questões que foram compondo seu ideário. Gil teve sempre a coragem de dizer as coisas em que acreditava nos momentos precisos. Seja ao cantar "miserere nobis", ou "o melhor lugar do mundo é aqui e agora", ou "manda descer para ver Filhos de Gandhi"; ou "quanto mais purpurina, melhor"; ou ainda "sou um punk da periferia", assim na primeira pessoa - tocando pontos nevrálgicos de contextos muitas vezes adversos, aos quais  respondeu com integridade e paciência. "Eu não sou essa quietude, eu sou a minha quietude, não a deles", afirmava ele em 1979, em entrevista ao Folhetim.

Sua quietude inquieta deu conta de abordar e abraçar, com lucidez visionária, questões tão diversas como a contracultura, o sincretismo religioso, a negritude, a valorização da informação cultural africana e oriental entre nós, a ecologia, a política, a tecnologia, o carnaval, a macrobiótica, a cultura pop, a ciência, a meditação, as relações familiares, as relações de amor e amizade, as relações sociais, as relações de trabalho, a ancestralidade, o mundo moderno e a consciência primitiva - em formas que transitam livremente entre o baião, o funk, o rock, o afoxé, o samba, o reggae etc. e ao mesmo tempo sem ser nada disso; cumprindo apenas o sotaque particularíssimo de seu violão.

É assim que Gil foi construindo seu nicho de linguagem. Seria pouco apontar o quanto a moderna música popular do Brasil deve a ele tudo que conquistou em termos de construção, acabamento, atitude. Melhor notar o quanto nele se aprofundou a afinidade com a natureza da própria música. Pois não há como não pensar que essa reverência é uma condição dela; que a relação de qualquer um com a música é a de um ser receptivo. E por isso Gil é esse banho, essa aula, essa tradição viva; não pelo que fez, mas pelo que faz. Pela capacidade de manter potente sua linguagem, atualizando fisicamente o passado, a cada nova onda que ele espraia de seu convés, até banhar nossos pés, na praia.


Texto de Arnaldo Antunes retirado do livro Gilberto Gil Todas as Letras, organização de Carlos Rennó, Companhia das Letras, São Paulo, 2003.

domingo, 24 de novembro de 2024

14. Língua de sinais é um tipo de mímica

Muitos pensam que Línguas de Sinais são como mímica, isto é, gestos que imitam propriedades dos objetos a que fazem referência. Mas não basta imitar o movimento, a forma ou outra propriedade de algo. Para serem eficazes, os sinais têm de ser compartilhados e estruturados numa sintaxe comum.


Texto de Ataliba T. de Castilho, professor da USP.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.


13. Os escritores são a referência da gramática

A chamada norma padrão é um ideal de Língua que se baseia em boa parte do registro de grandes escritores do passado. Mas são os escritores que mais rompem com os padrões de um Idioma. Quando tomados como exemplos do Português padrão, comete-se uma injustiça com eles, e instaura-se um comando de autoridade precário.


Texto de Ataliba T. de Castilho, professor da USP.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.


12. Só há uma gramática no Brasil

Para a maioria, só há uma gramática usada no Brasil. A Língua se resume à gramática tradicional, de caráter normativo, que estabelece a forma como se deve falar ou escrever. Mas há mais de uma gramática circulante nas bocas e páginas brasileiras. Não só divergências entre gramáticos sobre os casos que analisam, as doutrinas que adotam. Mas de gramáticas concorrentes para os mesmos casos (a concordância, por exemplo, com o núcleo do sujeito em "a maioria das pessoas é", com o termo mais próximo em "a maioria das pessoas são", com interferência semântica, em que coletivos e nomes em plural levam a concordância ao plural, em "a maioria são"). Mesmo o que se considera desvio da gramática padrão pode obedecer a uma gramática própria.


Texto de Ataliba T. de Castilho, professor da USP.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

sábado, 23 de novembro de 2024

Autolibertação (47)

 "... Nada trouxemos para este mundo e manifesto é que nada podemos levar dele." - Paulo.         (I TIMOTÉO, 6:7.)


Se desejas emancipar a alma das grilhetas escuras do "eu", começa o teu curso de autolibertação, aprendendo a viver "como possuindo tudo e nada tenho", "com todos e sem ninguém".

Se chegaste à Terra na condição de um peregrino necessitado de aconchego e socorro e se sabes que te retirarás dela sozinho, resigna-te a viver contigo mesmo, servindo a todos, em favor do teu crescimento espiritual para a imortalidade.

Lembra-te de que, por força das leis que governam os destinos, cada criatura está ou estará em solidão, a seu modo, adquirindo a ciência da autossuperação.

Consagra-te ao bem, não só pelo bem de ti mesmo, mas, acima de tudo, por amor ao próprio bem.

Realmente grande é aquele que conhece a própria pequenez, ante a vida infinita.

Não te imponhas, deliberadamente, afugentando a simpatia; não dispensarás o concurso alheio na execução de tua tarefa.

Jamais suponhas que a tua dor seja maior que a do vizinho ou que as situações do teu agrado sejam as que devam agradar aos que te seguem. Aquilo que te encoraja pode espantar a muitos e o material de tua alegria pode ser um veneno para teu irmão.

Sobretudo, combate a tendência ao melindre pessoal com a mesma persistência empregada no serviço de higiene do leito em que repousas. Muita ofensa registrada é peso inútil ao coração. Guardar o sarcasmo ou o insulto dos outros não será o mesmo que cultivar espinhos alheios em nossa casa?

Desanuvia a mente, cada manhã, e segue para diante, na certeza de que acertaremos as nossas contas com Quem nos emprestou a vida e não com os homens que a malbaratam.

Deixa que a realidade te auxilie a visão e encontrarás a divina felicidade do anjo anônimo, que se confunde na glória do bem comum.

Aprende a ser só, para seres mais livre no desempenho do dever que te une a todos, e, de pensamento voltado para o Amigo Celeste, que esposou o caminho estreito da cruz, não nos esqueçamos de advertência de Paulo, quando nos diz que, com alusão a quaisquer patrimônios de ordem material, "nada trouxemos para este mundo e manifesto é que nada podemos levar dele".


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.