Mais que verdade. Um pouco de assunto para a gente ter coragem de escafeder-se por aí por esse Brasil mundão grande afora.
- Senta, Niquinha.
- Num havera eu de sentar?
- E pra quê essa cara de muxoxo?
- Se incomode não.
- O Zeca veio?
- Veio coisa nenhuma aquele safado sem-vergonha metido a besta odiento fingido que eu gosto de doer.
- E então?
- Ara!
- Num vai me contar?
- Ara, ara!
- Pois num conte, uai. Fica aí sentada. Até a bunda arder. É capaz que chova agorinha.
Tia Natércia foi soprar fogo na cozinha. Niquinha revirou os olhos castanhos tristes fundos para as bandas da Rua Campo Formoso e quis chorar. Era mais que verdade. Pra lá de muito mais.
- Ô Niquinha!
Era a menina Miroca chamando de outro lado da rua. Os cabelos de Miroca voavam. Seu sorriso esquentou o frio de Niquinha.
- Que é, Miroca?
- Vamo catar gabiroba lá no mato do corgo?
Niquinha espichou as pernas no degrau da varanda. Baixou os olhos e viu uma borboleta branca alvinha e pequetita em cima de um copo de leite do jardim.
- Tô com querência pra isso não.
- Deixa de ser boba... Resmungou Miroca amarrando o laço de uma sandália vermelha que lhe soltara do pé.
Niquinha esqueceu-se da borboleta branca e escutou a voz de Tia Natércia cantando na cozinha. Lembrou-se do Zeca. Desembestou a chorar alto sacudindo o corpo todo.
Miroca veio até ela e seus cabelos ainda voavam.
- Êta Niquinha pamonha! Chorando desse jeito por causa de home!
- Cala a boca, Miroca! Cê num sabe o que é amor.
Miroca sentou-se no peitoril da varanda e começou a roer unha.
Niquinha olhou para ela e se arrependeu da malcriação.
- Me desculpa, Miroca. Num liga pro que eu falo não.
- Num ligo não, Niquinha. Só queria te enterter um tiquinho.
- Me enterter?
- A gente bem que podia catar gabiroba...
- Tô sem vontade nenhuma...
- Ia ser bom procê!
- O Zeca num me sai do juízo, aquele desgraçado, aquele diabo, aquele merda.
- Num apareceu mais não?
- Havera de aparecer por um acauso?
- A gente achava que o Zeca tava doidinho por ocê.
- Pois é. Até a tia já tava gostando do jeitão dele...
Niquinha soltou um choro fino comprido que parecia não ter mais fim. Miroca se ajoelhou perto dela e falou com voz de alegria quase:
- E se a gente fosse ver o trem na Estação. Êta que chega cada baita home bonito lá!
Mas Niquinha não se contentou nem um pouco. Levantou-se do degrau da varanda e foi para dentro de casa. Deu com a porta de seu quarto. Entrou. Suspirou uma horinha de frente para o espelho. Caminhou até à cozinha. Tia Natércia cozinhava mandioca no tacho. Na gamela sobre a mesa havia biscoitos de polvilho e uma caneca de café recebia tapinhas do sol que passava por cima da goiabeira bem em frente a porta da cozinha.
- Vamo ou num vamo catar gabiroba?
Gritou ainda Miroca lá da varanda.
Niquinha se lembrou do Zeca mais uma vezinha. Apalpou a barriga. Pensou na coisa bonita que estava dentro dela, coisinha miúda que ia crescer que nem abóbora moranga.
- Quer tomar café? Perguntou Tia Natércia com o rosto quente de fogo da trempe.
Niquinha sentou-se no tamborete:
- Esses biscoitos tão cheirando... Acho que vou deixar a gamela vaziinha de tudo
Tia Natércia riu da fomeagem dela. Depois foi buscar mais uma gamelada de biscoitos de polvilho que já estava fora do forno, aquele quintal de tanta árvore e de tanta fruta, batido pela gostosura do sol, com cheiro de coisa boa e limpa.
A chuva nem tardou.
Conto de Stela Maris Rezende Paiva retirado do livro Dentro das Lamparinas, Horizonte Editora, Brasília, 1979.