sábado, 5 de maio de 2012

Preciso de Você

                Márcio Greyck


Cansado, vejo a vida passar
Meu lugar ao sol já cansei de esperar
O tempo faz promessas e eu vou
Ando à toa, eu sei
Pois me falta você
Porque todo mundo precisa de alguém
E eu preciso é de você
Pra comigo andar
E para me entender
Eu preciso é de você
Pra continuar
E pra não me perder
Entenda, é preciso saber
Sem motivação é difícil viver
A vida me ensinou a querer
Um motivo só 
E eu vou lhe dizer
Porque todo mundo precisa de alguém
E eu preciso de você
Pra comigo andar
E para me entender
Eu preciso é de você
Pra continuar
E pra não me perder
Porque todo mundo precisa de alguém
E eu preciso é de você
Pra comigo andar
E para me entender
Eu preciso é de você
Pra continuar
E pra não me perder.

Canção do CD Agora, de Verônica Sabino, gravado em 2002.

Minha Herança: Uma Flor

                            Vanessa da Mata


Achei você no meu jardim entristecido
Coração partido
Bichinho arredio
Peguei você pra mim
Como a um bandido
Cheio de vícios
E fiz assim, fiz assim:

Reguei com tanta paciência
Podei as dores, as mágoas, doenças
Que nem as folhas secas vão embora
Eu trabalhei

Fiz tudo, todo o meu destino
Eu dividi, ensinei de pouquinho
Gostar de si,
Ter esperança e persistência sempre

A minha herança pra você é uma flor
Um sino, uma canção, um sonho
Nenhuma arma ou uma pedra eu deixarei
A minha herança pra você é o amor
Capaz de fazê-lo tranquilo, pleno
Reconhecendo no mundo o que há em si

E hoje nos lembramos sem nenhuma tristeza
Dos foras que a vida nos deu
Ela com certeza
Estava juntando você e eu

Achei você no meu jardim

Música do CD Sim, gravado em 2007 por Vanessa Da Mata.

Preciso do seu sorriso

               João Silva/Enok Virgulino




Preciso desse teu amor
Ai, amor, mas como preciso
Não posso mais viver
Sem teus beijos
Teu sorriso

Não posso ficar sem você
Pois viver sem você
É viver pra chorar

Fala, meu amor
Diga, meu amor
Que não vai judiar comigo

Espera, meu amor
Fica, meu amor
Então me leva pra morar contigo

E onde quer que você vá
Seja onde for
Me leva
Me leva

Diz, amor, que eu vou
Me leva, me leva
Seja como for seu mundo, se você
Me levam eu vou

Gravação novíssima da cantora Mariana Aydar com participação especial de Dominguinhos. Faz parte do repertório de seu mais recente CD, o terceiro, intitulado Cavaleiro Selvagem Aqui Te Sigo, de 2011.

Amor da minha vida

                  Raul Sampaio/Benil Santos


Amor da minha vida
Tão longe estás de mim
Meus olhos te procuram
Ânsias me torturam
Sofro tanto assim
Meus dias são tão tristes
As noites muito mais
E desde que partiste
A amargura existe 
Me roubando a minha paz

Ó luz dos olhos meus,
Metade do meu ser
Que amarga diferença
Sem tua presença
Nesse meu viver

Amor da minha vida
Estou na solidão
Trocaste por saudade
A felicidade do meu coração.

Música antiga do repertório de Luiz Gonzaga e regravada em 2008 por Zizi Possi com um arranjo muito bonito e diferente...

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Cantoria

                  Ivan Lins/Vitor Martins


Nossa cantoria
Nosso coração
Nosso bloco 
Nossa folia
Contra a solidão

Nossa teimosia
Nossa louvação
Nosso fogo
Nossa magia
Contra a escuridão

Somos aroeira
Madeira dura de se cortar
Mesmo depois de morta ela brota
Só pra desafiar

Somos a correnteza
Que começa num gotejar
Mesmo que se represe ela segue
E vai transbordar o mar

Música antiga da dupla Ivan Lins/Vitor Martins e resgatada pelo trio feminino Folia de 3 em um CD intitulado Pessoa Rara, dedicado à obra do músico.

Retrato da Vida

                Dominguinhos/Djavan

Esse matagal sem fim
Essa estrada, esse rio seco
Essa dor que mora em mim
Não descansa e nem dorme cedo
O retrato da minha vida
É amar em segredo

Não quer saber de mim
E eu vivendo da sua vida
Deus no céu e você aqui
A esperança é quem me abriga

Esses campos não tardam em florir
Já se espera uma boa colheita
E tudo parece seguir
Fazendo a vida tão direita

Mas e você o que faz
Que não repara no chão
Por onde tem que passar
E pisa em meu coração

O seu beijo em meu destino
Era tudo o que eu queria
Ser seu homem, seu menino
O ser amado de todo dia

Composição do CD de estreia do trio feminino Amaranto, intitulado Retrato de Vida, apenas com composições de Djavan. Foi lançado em 2000.

Non, je ne regrette rien

                  Michel Vaucaire/Charles Dumont


Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
Ni le bien quön m'a fait
Ni le mal, tout ça m'este bien égal

Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
C'est payer, balayer, oublier
Je m'ai fous du passé

Avec mes souvenirs
J'ai allumé le feu
Mes chagrins, mes plaisirs
Je n'ai plus besoin d'eux

Balayés mes amours
Avec leurs trémolos
Je repars a zéro...

Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
Car ma vie, car me joies
Pour aujourd'hui
Ça commence avec toi

Não! Nada de nada
Não! Eu não lamento nada
Nem o bem que me fizeram,
Nem o mal, isso tudo me é igual!

Não! Nada de nada
Não! Eu não lamento nada
Está pago, varrido, esquecido
Não me importa o passado.

Com minhas lembranças,
Acendi o fogo,
Minhas mágoas, meus prazeres,
Não preciso mais deles.

Varridos os amores,
E todos os seus tremores
Varridos para sempre
Recomeço do zero

Não! Nada de nada
Não! Não lamento nada
Nem o bem que me fizeram
Nem o mal, isso tudo me é igual

Não! Nada de nada
Não! Não lamento nada
Pois minha vida,
Pois minhas alegrias
Hoje, começam com você!


Gravação original feita por Edith Piaf. Segundo consta, a música foi composta em 1956 e gravada por ela em 10 de novembro de 1960.
Cássia Eller fez uma emocionante releitura em seu CD Acústico MTV de 2001.

domingo, 29 de abril de 2012

Mãe

                  Domingos Pellegrini Jr.




O filho chegou estremecendo as tábuas do assoalho. Respira forte; cheiro de abobrinha cozida, fritura, sabão de coco; a camisa azul suada, os sapatos chocos; mas a mãe repara: não choveu - em que madrugadas foi o filho buscar chuva? No útero dela,, o avental úmido; na cara dele, a barba de três dias. Ele vai até o tanque no fundo do quintal, afasta os tinhorões, lava a cara, a nuca, os cabelos; a mãe desconfia: espantando sono, espantando temores. E fica vendo que fica no vento, magro e duro, fitando algum horizonte pralém dos lençóis no varal.

Quando a mãe chama - Vem almoçar, meu filho - ele não vem logo; ela engana a aflição espantando dos pratos uma poeira, tão fina que não existiria se o filho não continuasse mirando muito além dos lençóis molhados.

- Vem, meu filho, vem - e a cachorra continua estirada com as tetas nos ladrilhos. Já vou, mãe, já vou. A ninhada desmamou, as tetas da cachorra estão descansadas, a cachorra está descansada; os filhotes estão no mundo com garras e dentes.

- Vai esfriar na mesa, meu filho.
- Já vou, mãe, já disse que já vou.

Mas o que é que esse menino tanto vê nesse varal, o que é que tanto lê nesses lençóis, meu Deus do céu? Só pode ser coisa desses livros, esses livros que ele traz e esconde lá em cima do guarda-roupa, lê, devolve, traz outros, lê, devolve e nunca termina de pensar.

Abobrinha, arroz, feijão; e carne moída.

O filho mastiga os pensamentos de boca bem fechada; e a mãe não pode abrir a boca do filho e arrancar essas pedras; e sabe que ele vai cuspir de repente as palavras, retas, vão ficar encravadas na parede e sempre que ela olhar, pelo resto da vida, vai ver a decisão do filho ali do lado de São Jorge matando o dragão, eternamente repetindo entre as moscas e as lagartixas:

- Mãe, vou sumir.

Não mata sua mãe, meu filho - ela quase mas não diz; sabe que o filho não é ruim, não há de ser, não pode ser - e por que seria? É bonito, tem saúde, não desgosta de trabalho nem passou fome um dia que fosse na vida: então que motivo pode ter pra essa raiva tão contra tudo?

- Por que, meu filho, que te falta?
- Pra mim, nada, mas não sou só eu no mundo, mãe.

Ela fica só balançando a cabeça, o prato ainda vazio. Ele molha miolo de pão no caldo de carne, joga no chão e a cachorra disputa com o último filhote que nenhum vizinho pediu. O filhote avança, a cachorra rosna e ameaça, ele não recua, ela morde, ele vai se encolher num canto, ela come depressa. A mãe fica olhando e balançando a cabeça.

- Não entendo, meu filho. Por que tanta preocupação com os outros?

- A gente não é cachorro, mãe - ele passa outro pedaço de pão no prato, joga para o filhote.

Ela levanta os olhos do prato, vê a ponta de um livro lá em cima do guarda-roupa. Suspira como se tivesse comido muito, começa a tirar a mesa e leva também o prato limpo, de tão acostumada a lavar dois pratos.

Depois uma nuvem cinza acompanha o filho enquanto mexe nas gavetas, junta as calças e camisas, e a mãe sabe em cada uma onde está cada cerzido, e que botões precisam ser reforçados; e se arrasta com agulha e linha atrás do filho estremecendo a casa de gaveta em gaveta: - Minha certidão de nascimento, mãe, cadê?

- Aqui, meu filho, aqui, mas pra quê? - ela abre a boca mas a pergunta não sai, fica ecoando da garganta até as varizes. - Pra que de repente a certidão de nascimento se tem tantos outros documentos?

Mas ela sabe em que canto de fundo de gaveta está o papel, e pega com tanto cuidado como se pudesse quebrar; mas ele rasga - e pergunta também das fotos.

- Preciso sumir mesmo, mãe, sem deixar nada pra trás. Pro meu próprio bem.

Ela entrega o maço de fotos amarrado com cadarços - Do seu primeiro par de sapatos, meu filho, mas é pro seu próprio bem...

Ele revê as fotos uma por uma, rasga umas, devolve as de menino e ela fica olhando com olhos perdidos no tempo. Mesmo de costas enchendo a mala, ele sente o cheiro de aflição e de sabão de coco da mãe; e se apressa: esse cheiro cresce e pesa nas costas; e enfia a escova de dentes entre meias e cuecas. A mãe então senta com o peso das fotos no colo, e com a confirmação de todos os pressentimentos: é verdade, o filho vai sair fugido; só podem ser os livros, as companhias, essas madrugadas fora de casa, as unhas sujas de tinta e os olhos secos de sono.

Sente um cansaço de se afundar no chão, mas não consegue ficar sentada; zonzeia pela casa atrás do filho e as tábuas rangem, rangem mais ainda porque o filho nada fala, embrulha pão com queijo; e os chinelos da mãe se martirizam das tábuas para os ladrilhos, dos ladrilhos para as tábuas, procurando se achar entre a sala e a cozinha. Mas, de repente, em quatro passos o filho alcança a porta da frente, a mão na maçaneta destampa a casa para o vento. E ele pega a mala depressa, a outra mão larga a maçaneta e abraça - Até, mãe - mas ela sempre sentirá a mão do filho quando pegar na maçaneta; e enquanto ele desaparece entre os alecrins, o vento vem e vai com a voz dele, vai e vem - Eu volto, mãe.

- Deus queira, meu filho - ela fala tão baixinho que nem se escuta. O filho não olha para trás e ela não fecha a porta, fica na varanda com o vento e o cheiro dos alecrins, muito tempo na varanda com o cheiro suado e azul dos alecrins.

Agora experimenta descruzar as mãos sobre a garganta, nem se lembra quando foi que colocou as mãos ali; tinha vontade de chorar mas não chorou, apertou a garganta e assim ficou até agora. Agora consegue andar na varanda e reparar em quem passa, uns ladeira abaixo, outros ladeira acima na direção do filho. E todo dia nessa hora acostuma olhar a rua, principalmente rua acima por onde o filho partiu quando as azaléias ainda não tinham florido. Agora rega o antúrio e não mais se preocupa em cortar as folhas secas, o tempo há de fazer tudo que deve ser feito. Depois entra e, da ponta do corredor, vê o filho lá na pia do banheiro, curvado com a cara respingando e esticando a mão pra toalha. Agora ela já passa pela porta do quarto e vê o filho sentado na beira da cama, a cabeça enfiada no livro porque está anoitecendo; e dá uma tristeza de ver o filho lendo assim porque estraga a vista.


Depois ela ouve um estalo como se fosse mas não é a maçaneta; continua tirando os chinelos e calçando os sapatos, foi só uma tábua que estalou com o calor. Agora já está entregando na pensão os lençóis lavados e passados, uma pilha tão alta nos braços que mal consegue ver por onde anda; deixa tudo junto com um suspiro e fica esfregando a dor nas costas e amolecendo os braços endurecidos; e  respondendo que não, ainda não tem notícia nenhuma do filho, a arrumadeira sempre pergunta, ela sempre responde do mesmo jeito, e assim, nessa hora parece sempre um dia repetido. Mas não: o filho pode até ter voltado, pode estar em casa esperando a janta, então ela diz que tem de voltar logo.


Vai costurar com o rádio ligado e quase não ouve quando batem na porta os dois que, agora, já estão revistando a casa e perguntando. A senhora não tem mesmo notícia nenhuma dele? Nem uma fotografia?


E agora ela acompanha os dois homens na noite, as mãos cruzadas sobre o útero.


Agora sentada, o olhar perdido num cinzeiro duma escrivaninha, escuta mais perguntas, repete respostas,  trançando e apertando os dedos. Repete que o filho é bom, podem acreditar, nunca foi farrista, nunca foi briguento, um primor de moço, só vendo. Os homens riem, dizem que ela não conhece o próprio filho, que ele é um perigo pra todas as famílias. Ela balança a cabeça como se uma mola disparasse no pescoço, não, não, não, não é possível, devem estar confundindo com algum outro, outra mãe, outro filho; pois o dela até o dinheiro que ganhava com tanto sacrifício, coitado, queria dar todo em casa; de modo que só pode ser confusão, ela conhece bem o filho. Mas dizem que não, que conhecem melhor; e não querem falatório, querem respostas, disparam as perguntas uma atrás da outra. Quem ia em casa. Com quem ele andava. Nomes. Fotografias. Conhece este? E este, já viu alguma vez?


Ela olha através das fotos, só repete que não, não e não. Mas ele saía à noite? Viajava? Trazia livros? Embrulhos? Falou de algum endereço alguma vez? Tinha arma?


Não, não. Não, de jeito nenhum, não conhecem o filho dela, só podem estar confundindo com outro.


Os homens dão murros na mesa, ela não se assusta. Essa dona é escolada, dizem, essa velha esconde leite; mas ela diz que não, não sabe de nada do que estão perguntando, só sabe que o filho era e decerto continua sendo bom. Vê fotos dos amigos dele e repete que não, nunca viu nenhum, só podem  mesmo estar confundindo com outro, e isso vai enervando tanto os homens que acendem um cigarro no outro, ela tosse na sala enfumaçada.


Quando vê, tem um amigo do filho ali na frente dela, a cara inchada de apanhar; mas nem precisa apanhar mais pra dizer que sim, que reconhece essa mulher como mãe do - e diz um outro nome; ela levanta da cadeira: - Não falei? Estão confundindo meu filho com outro - mas recebe um safanão e cai sentada de novo.


- Senta aí, sua cadela, e só responde o que for perguntado.


E ela continua respondendo não, não e não e, quando perguntam se nunca tinha ouvido o nome de guerra do filho, responde que só podem estar confundindo com outro, o filho dela não é de guerra, é um moço bom. Então perguntam de novo se ela não conhece mesmo o amigo dele, ali de cara inchada e olhar no chão. - Hem, conhece ou não conhece, sua cadela? - e ela responde mais uma vez  que não; pode até ter conhecido mas é muito esquecida, e aproveita pra dizer baixinho que estão mesmo confundindo, não é uma cadela, não é uma cadela não, senhor.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Um guarda-chuva no parque

                                  Sylvia Orthof

Lá estava a velha: muito magrinha, com o seu guarda-chuva vermelho, num vestido de bolinhas brancas sobre fundo azul-marinho. Magrinha e velha. Será que eu já disse que ela era velha? Devo ter dito, tenho mania de repetir as coisas, como aquele animador de programas de tevê: Engraçado, coloquei dois pontos pra dizer como o animador falava, aí me deu um branco, esqueci. As bolinhas eram brancas, sobre fundo azul-marinho, mas quem olhasse ia jurar que o vestido era preto. Todas as velhinhas magras geralmente usam preto, sobretudo quando desenhadas em livros. É o óbvio.

Mas havia o guarda-chuva vermelho. Será que guarda-chuva tem hífen? Vou olhar no Aurélio.

Deu preguiça. Abri na palavra " gorduroso ". Ora, isso nada tem a ver com a velha magra! Ela rodava o guarda-chuva, vermelho, insolitamente rubro, como os lábios de Marilyn.

Não chovia, mas o guarda-chuva girava sobre a cabeça da velha magra, de vestido de bolinhas, fundo azul da noite. O azul da noite era um tecido, fulgurante de falsas estrelas, sabia? Local: um parque de diversões. Onde? Qualquer lugar, contanto que...

A velha girava o guarda-chuva e sorria a sua dentadura branca sobre o fundo azul da noite e tudo piscava, inclusive a roda-gigante. Aliás, o guarda-chuva girava no mesmo ritmo, só agora que me dou conta de que a velha estava ali, e que a velha sou eu.

Comprei o guarda-chuva vermelho por causa de uma professora (isso foi há mais de meio século) - que teve um ousado guarda-chuva grená. Naquele tempo, os guarda-chuvas todos eram negros e bem compotados. Escrevi compotados, de compota, mas você entendeu. Os erros, adoro os erros... eros... era uma vez...

Era uma vez uma velha magrinha, de guarda-chuva escarlate, como os lábios rubros de um beijo. Era eu, ali, no parque, e a roda girava. Se eu parar de girar o meu guarda-chuva, tenho certeza absoluta de que enguiço a roda-gigante. É preciso tomar tento, girar, rodar, tal qual uma ciranda de moto-perpétuo. Meu nome é Perpétua, sabia? Acho que foi por causa deste nome que continuo viva, enquanto os outros vão morrendo, morrendo. Eu me chamo perpetuamente assim e sou eu que comando a roda-gigante, luzes brancas que piscam sobre a noite azul-marinha... ou azul-marinho?

A menina está ali: cabelos louros, rindo, sentada na roda-gigante. Eu a olho, tomo conta, é minha neta, sabia? Linda. Eu sou avó de Linda. Ela é eternamente, perpetuamente linda, com seus cachos enroladinhos, que parecem molas. Linda gira, por causa do meu guarda-chuva que rege a roda. Preciso girar em ritmo certo, que é para não assustar a minha netinha Linda, que está num grupo de crianças, mas só ela é que se destaca, nem vejo as outras, todas cinzentas, comuns. Minha neta parece uma estrela e sorri. Linda.

Já é tarde para crianças ficarem no parque de diversões. No meu tempo, os guarda-chuvas eram negros, as crianças na cama logo depois da janta.

A gente brincava na calçada, brincava, brincava. As mães vinham e chamavam:

- Hora do banho!

O banho com sabonete cheiroso, depois o talco, o vestido engomado para jantar com a família. Tinha reza antes do jantar, minha avó era muito religiosa.

Tomávamos sopa. Eu odiava sopa de macarrão, que era pra engrossar as pernas. Gordura é formosura, dizia o pai, olhando para a minha magreza, apreensivo. Magra não casava, ficava para tia.

Mas eu, mesmo magra, casei. Era lindo o meu marido, naquele uniforme de major do exército!

Agora estou viúva... há quanto tempo? O tempo é um ponteiro que gira, preciso ficar atenta, perpetuamente comandando a roda-gigante.

Meu Deus! Fiquei rememorando, esqueci de girar o guarda-chuva e a roda parou!

Onde está minha neta? Onde? Onde?

Novas pessoas estão embarcando... Fecho o guarda-chuva e corro, procurando sua cabecinha de cachos.

É noite. É tão difícil achar uma criança, santo Deus, é noite e vejo, ali no fundo, o trem-fantasma, com seus anúncios de caveiras requebrantes.

Sou velha e magra, mas ainda não sou caveira, se não encontrar minha neta, vou ter um ataque do coração, sinto as palpitações me impedindo de respirar direito e grito:

- Linda! Linda!

Tropeço sobre o guarda-chuva e caio. A senhora está bem? Estou mal, perdi minha neta, seu guarda, minha neta neste parque, ela é loura, veja o retrato dela, procure-a, pelo amor de Deus!

Alto-falantes chamam por Linda. Perpétua, eu, quase desfalecida de horror e medo. Pegaram meu endereço, uma criança sumiu, vão telefonar para a minha filha... onde está o meu guarda-chuva? Perdi minha sombrinha vermelha, seu guarda... chuva... lindamente perpétua é a imagem da fotografia da menina, de cachos louros.

Minha filha chega, apressada, chamada pelo telefonema.

- Filha, perdi... perdi...

- Ela perdeu a netinha loura, a menina desta foto, ela estava na roda-gigante.

Minha filha olha o retrato, abana a cabeça e diz:

- Ela não tem neta. O retrato é dela, da minha velha, quando menina.

Silêncio. Todos me olham.

- Mas eu era linda, gente! Eu me perdi, eu me procuro, entendem? Esta velha magra não sou eu: eu tenho cachos louros, estava na roda do tempo... mas me distraí. Vocês viram meu guarda-chuva?

conto do livro Papos de Anjo.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Aqueles Dois

                           Caio Fernando Abreu 

I

    A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a  repartição era como " um deserto de almas ". O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra - talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou.

Não chegaram a usar palavras como " especial ", " diferente " ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um  curso frustrado de Arquitetura. Talvez, por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.

Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um.
Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom final de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa - fados, astros, sinas, quem saberá? - conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois.

Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de " um deserto de almas ", para  não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los - ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.

II

Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste - e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade - de certa forma, também em nenhuma outra -, a não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro.

Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava.

Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficavam nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia.

Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mas frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse, entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.

III

Cruzavam-se silenciosos mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que traziam de longe. Do norte, do sul.


Até um dia em que Saul chegou atrasado e,  respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntou: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLaine, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme.


Outros filmes viriam, nos dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperanças e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva de meia-noite e  novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido.


Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabavam cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tu Me Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas.


Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tu Me Acostumbraste, entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual.


IV


Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta no sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto , nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, Tu Me Acostumbraste.  Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das nove, Saul de foi.


Na segunda, não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu os desenhos, olhando longamente e reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma.


Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinham. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava - vezenquando El Dia Que Me Quieras, vezenquando Noche de Ronda -, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram  com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis, saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda.


V


Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer  aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele e reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa.


No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora.


Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. À noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante, nessa semana. E teve um sonho:  caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto.


Raul voltou sem luto. Numa sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse vê-lo. A voz baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menina. Beberam muito nessa noite. Raul falou longamente da mãe - eu podia ter sido mais legal com ela, disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio, era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender.


Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes - ninguém, mundo, sempre - e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à  repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa, acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde.


VI


Depois, chegou o Natal, o Ano Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos  parecem beijos de quem nunca amou.


Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um em uma cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras.


Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias - e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro - ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como " relação anormal e ostensiva ", " desavergonhada aberração ", " comportamento doentio ", " psicologia deformada ", sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, entre outras coisas como a-reputação-de-nossa-firma,  declarasse frio: os senhores estão despedidos.


Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tempo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra de Tu Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio.


Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina.


Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.




conto do livro " Morangos Mofados ".