quarta-feira, 27 de julho de 2022

A Lebre na Lua

    Segundo alguns povos do Oriente, as manchas que aparecem na face da lua cheia se assemelham à figura de uma lebre. E diz a lenda que isto aconteceu assim...

    Há muitos milênios, viviam, à margem do rio Ganges, quatro bichos diferentes que eram amigos e companheiros: um macaco, uma lontra, um pequeno chacal e uma lebre, a mais virtuosa dos quatro.

    Um dia ela reuniu os amigos e lhes disse: "Amanhã será lua cheia, o dia que nós reservamos para meditar e fazer jejum. Não precisamos, pois, de comida, mas sugiro que cada um de nós saia à procura de alimentos necessários para dar de esmola caso alguém nos venha pedir".

    Os bichos concordaram e cada um foi se recolher para passar a noite, e no dia seguinte sair em busca de comida. O chacal subtraiu o almoço de um pastor distraído, que era uma gamela de coalhada com arroz. O macaco tirou algumas mangas maduras de uma mangueira próxima. A lontra apanhou alguns peixinhos esquecidos por um pescador. E a lebre, que passara a noite em profunda meditação, pensou consigo mesma: "Não vou preparar nada. Se algum necessitado vier pedir comida, darei meu próprio corpo para ele se alimentar".

    Essa ideia tão generosa chamou a atenção dos mundos superiores, e um dos espíritos, o deus Sekra, decidiu descer até a terra, encarnando no corpo de um brâmane, para conferir em pessoa as dádivas dos quatro amigos animais. Primeiro, ele apresentou-se à lontra: "Minha filha lontra, estou com fome, desde ontem não como nada. Será que você poderia ceder-me algum alimento? Em troca, eu lhe darei as minhas bênçãos." A lontra entregou-lhe os peixinhos, e ele agradeceu, dizendo que voltaria logo mais para buscá-los. E foi falar com o pequeno chacal: "Amigo chacal, você não teria algum alimento para dar a um pobre faminto?" O chacal ofereceu-lhe a coalhada com arroz, e o brâmane agradeceu e disse que voltaria logo para buscar a comida. Então, foi procurar o macaco pendurado pelo rabo num galho de árvore e fez o mesmo pedido. O macaco ofereceu-lhe as mangas maduras. O brâmane agradeceu, dizendo que voltaria logo para buscá-las.

    Por último, o deus Sakra disfarçado em brâmane foi procurar a lebre que continuava a meditar à beira da sua toca, e tornou a fazer a mesma pergunta, à qual a lebre respondeu: "Meu santo homem, vou oferecer-lhe um lauto almoço. É um pedaço de carne fresca, que você só terá de assar numa pequena fogueira. Prepare o braseiro. Quando o fogo estiver alto, eu trarei a carne para o seu almoço."

    O brâmane juntou alguns gravetos, acendeu uma alegre fogueira ao lado da toca da lebre e perguntou então qual seria a carne que lhe serviria de almoço. "É o meu corpo", respondeu a lebre, e no mesmo instante pulou para o meio do fogo. Mas o fogo ardia e não queimava a lebre, que até reclamou: "Ó santo homem, o seu fogo não queima. Você vai ter de aumentá-lo, pois do jeito que está, chego a sentir frio".

    Em vez de responder, o brâmane desapareceu e no seu lugar surgiu um belíssimo e luminoso jovem, que se apresentou como o deus Sakra encarnado e disse: "Um ato tão nobre e generoso como este de ficar para sempre na memória dos homens." E, crescendo desmesuradamente, ele arrancou com a mão o cume de uma montanha próxima, amassou-o dentro do punho, e com essa massa lambuzou a face da lua cheia que acabava de surgir no céu, formando uma figura na forma de lebre. Esta figura apareceria aos homens a cada lua cheia para lembrar-lhes a bela ação daquela pequena lebre, que mostrou que quem dá uma esmola deve dá-la de todo o coração, dando tudo, e às vezes até o próprio corpo.


Lenda indiana recontada por Tatiana Belinky retirada da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita, Agosto de 1998.

terça-feira, 26 de julho de 2022

A tapeçaria de Aracne

    Há muito tempo, na Grécia Antiga, contavam que Palas, a deusa da sabedoria (que mais tarde os romanos chamariam de Minerva), ensinava todos os segredos de fiação e tecelagem a uma moça chamada Aracne.

    Aracne era de origem humilde, mas se tornou tão habilidosa com fios e tramas que até as ninfas dos bosques e dos rios vinham vê-la trabalhar. Não só porque os tecidos que fazia eram incomparáveis, mas até porque a graça de seus movimentos tinha a beleza de uma arte, desde que puxava os chumaços de lã ou cânhamo até quando fazia novelos e meadas. E, principalmente, depois, quando a linha macia e longa se convertia em belos panos num tear ou era ricamente bordada em desenhos divinos. Divinos, sim. Pois todos os que viam o trabalho de Aracne logo concluíam que ela aprendera seu ofício com Palas, e cobriam a deusa de louvores. Ora, quanto mais atenção atraía, mais Aracne se ofendia com os elogios a Palas e negava qualquer mérito à deusa. Até que certo dia acabou exclamando:

    Sou muito melhor tecelã que Palas! Se ela viesse competir comigo, todos iam ver isso. E, se me vencesse, poderia fazer comigo o que quisesse. Antes de aceitar o desafio, a deusa se disfarçou e veio visitar Aracne sob forma de uma velha, aconselhando-a a respeitar a experiência e a sabedoria dos anciãos e a reconhecer a superioridade dos deuses.

    - Se você arrepender de suas palavras e pedir perdão, tenho certeza de que Palas a perdoará - disse.

    - Você está é de miolo mole, sua velha. Quer dar conselhos? Vá procurar suas netas... Eu me defendo sozinha. Palas tem medo de mim. Se não tivesse, já teria vindo me enterrar.

    A velha deixou cair o disfarce e se revelou em todo o seu esplendor:

    - Pois Palas veio, sua tonta!

    As ninfas e todas as mulheres se prostraram diante da deusa, mas Aracne manteve seu desafio.

    Sem perder tempo, cada uma das duas foi para um canto do enorme salão, com seus novelos, meadas, fio e seu tear.

    Durante muito tempo, uma belíssima tapeçaria foi surgindo em cada tear. Palas fez questão de ilustrar em seu bordado todas as histórias de mortais que tinham desafiado os deuses e os terríveis preços que tiveram de pagar por isso. Aracne, por outro lado, mostrou em sua tapeçaria os inúmeros crimes que os deuses já tinham cometido, recriados com exatidão e minúcia de detalhes. Cada uma, ao final, rematou seu trabalho com uma preciosa moldura tecida.

    Ninguém se surpreendeu com a perfeição da obra de Palas. Mas quem ficou surpresa foi a deusa, pois, por mais que procurasse o mínimo defeito na obra de Aracne, não conseguiu encontrar uma única falha. Com raiva, bateu várias vezes com seu bastão na testa da tecelã.

    Não suportando a dor, Aracne passou um fio no pescoço para se enforcar. Mas Palas teve pena e a segurou, suspensa no ar, dizendo:

    - Você tem má índole e é vaidosa, mas tenho que respeitar sua arte. Não admito que morra. Porém, você e seus descendentes viverão sempre assim, suspensos o tempo todo.

    E, ao partir, borrifou-lhe uma poção que fez o cabelo da moça cair, a cabeça e o corpo encolheram, os dedos cresceram, e a transformou para sempre numa aranha, condenada a fabricar fio e teia até o final dos tempos. Sempre com perfeição incomparável.


Lenda grega recontada por Ana Maria Machado retirada da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita, Maio de 1998.


Navegar é preciso, contar também.

Relatos de naufrágio tornaram-se populares na Europa do século XVI ao narrar as aventuras e infortúnios das viagens dos portugueses além-mares, incluindo Brasil.


    Portugal lançava suas naus ao mar, com vistas para o mundo: África, América e, sobretudo, o Oriente. Estamos em meados do século VXI. Mesma época em que surge um língua portuguesa um gênero narrativo que ganha imediato prestígio e se espalha por toda a Europa, com grande sucesso. Trata-se dos relatos de naufrágio, notícias dos embarcados e de todo o universo de aventuras - e desventuras - que cercavam as viagens dos navios mercantes portugueses ao ultramar.

    De fato, desde a descoberta da rota das Índias por Vasco da Gama, em 1498, uma armada em direção ao Oriente deixava o porto de Lisboa, todos os anos, por volta de março ou abril. Composta de quatro ou cinco naus, saía do Tejo até o Atlântico, tomava-o na direção do sul, contornava a África e ganhava a costa do Malabar, Goa, Cochim, ou mesmo o Ceilão, portos em que os portugueses estabeleceram feitorias e entrepostos comerciais. Os navios iam em busca de pimenta, cravo e canela, além de outras novidades e objetos de luxo que exerciam grande atração sobre os mercados europeus. Mesmo com riscos, não se cogitava interromper as aventuras. Muitos barcos e vidas eram perdidos, mas havia consenso sobre a necessidade de continuar o comércio com o Oriente. "Náufragos não podem parar as navegações", o rifão era uma voz uníssona.

    As causas dos naufrágios eram bem conhecidas: embarcações velhas ou em mau estado, sobrecarga, arranjo desequilibrado das caixas no convés, falta de material de reposição, como cordas, velas e pregos. A explicação mística, porém, prevalecia: a culpa pelos pecados e o merecido castigo que chegava com o infortúnio do mar.

    Grande parte da população estava envolvida no projeto expansionista português: negociantes, banqueiros, contrabandistas, traficantes e "oficiais del Rei", como eram então denominados os funcionários da Coroa que ocupavam os muitos postos administrativos e técnicos na intrincada burocracia que então se formou. Surgiam instituições específicas para a execução de projeto. A começar pela Casa da Índia, em funcionamento desde 1502, que contratava homens para os trabalhos no interior dos navios assim como para tarefas em terra. Da mesma maneira, uma série de profissões diretamente vinculada às viagens marítimas estabelecia-se. Nesse cenário, não é difícil entender a grande popularidade alcançada por esses escritos de viagens acidentadas, que pode ser atestada pelas tiragens expressivas de mil exemplares em uma época em que um livro de sucesso não ultrapassava trezentas cópias.

    Todos os relatos conhecidos narram acontecimentos da rota do Oriente, à exceção de um deles, o do naufrágio da nau Santo Antônio, ocorrido em 1565, em que viajava Jorge d'Albuquerque Coelho. Esse, além de ser um dos mais bem elaborados, do ponto de vista literário, é raro, pois narra um capítulo da história colonial brasileira. Embora comece com uma referência à política da metrópole - "No tempo em que a rainha dna. Catarina, avó d'el Rei d. Sebastião, governava o Reino de Portugal por seu neto" -, o que se segue é uma descrição sobre a capitania de Pernambuco e a atuação da família dos Albuquerque Coelho na guerra  contra os índios Caetés.

    A narrativa reúne também informações sobre as histórias fantasiosas que corriam na boca do povo, no porto de Olinda, prognósticos de feitiçarias, milagres e acontecimentos fantásticos, tendo como pano de fundo uma questão marcante do período: a guerra das religiões que aparece ali em sua versão particularizada, encarnada em personagens rudes, marinheiros, soldados e piratas, com intuito de evidenciar o alcance social daquele cisma que dividiu a Europa entre protestantes e católicos. Nesse contexto, a nau Santo Antônio, em meio a uma bruma espantosa, é aprisionada, na altura das ilhas do Cabo Verde, por piratas franceses. Protestantes luteranos, eles praticavam todo tipo de heresia, quebrando imagens de santos, arrancando os terços e livros de missa dos portugueses, zombando de suas rezas. Essa nau sofre danos desde sua partida e, após sobreviver ao ataque dos franceses e a ventos e tormentas, chega meses depois, toda estraçalhada, à Roca de Sintra.

    Outros relatos do período fazem referência ao Brasil. Caso da nau São Paulo que saíta em direção à Índia, em 1560, mas, retardada por chuvas no golfo da Guiné, é obrigada a arribar ao porto da Bahia, onde atraca por 44 dias para reparos. O narrador, um boticário que ia para Goa, descreve a aventura com travo popular, humor ácido, povoado de ditados, citações e revelando também uma extraordinária capacidade de observação de costumes. Elogia a terra e suas belezas e segue afirmando que muitos homens que adoeceram de febres naquela viagem, ao chegarem ali ficaram logo curados pelos bons ares: "... por ser esta terra do Brasil mui sadia e de muitos bons ares toda em si, por extremo e ter muitos bons mantimentos e mui gostosos e sadios, assim os do mar como os da terra".

    A descrição prossegue com comentários sobre costumes indígenas, como a antropofagia, o resguardo dos homens, os códigos de honra; identifica graus de parentescos e os tabus que os regulam, tudo isso com uma invulgar capacidade de suspensão de valores, sem depreciar hábitos tão estranhos a um europeu. Retomando seu caminho para a Índia, apanha mares grossos e ventania, na altura das ilhas Tristão da Cunha, e naufraga nas proximidades do Cabo da Boa Esperança.

    Também na Bahia aportou a nau São Francisco. Dessa experiência nasceu um relato, bastante incomum, escrito por um padre jesuíta sob forma de carta, em que conta as aventuras do navio que, saído para o Oriente, é empurrado pelos ventos para as costas brasileiras, sofrendo três acidentes no Atlântico, todos sem drásticas consequências. O narrador não perde nunca seu senso de humor ao fazer o balanço de sua peregrinação que durou três anos. Confirma o viço da terra, rememora o bom passadio no Colégio da Bahia, encantado com as frutas desconhecidas (a banana, o abacaxi, a papaia, o jenipapo), sua beleza, perfume e sabor. Destaca as plantas curativas, o bálsamo, o óleo de copaíba e uma iguaria nova, uma erva santa, servida no fim dos banquetes: o tabaco. Erva tão cheia de virtudes, que os padres e leigos mal podiam esperar o fim da missa ou a comunhão para pitar e medicar o corpo.

    Essa escrita que realça os aspectos informativos, curiosos e pitorescos das viagens ao mar, poderia, por si só, explicar o sucesso daqueles pequenos livros. Porém, razões menos evidentes justificam a trajetória bem-sucedida dos folhetos: o fato de revelarem um sentimento de crise e de um estado de ânimo pessimista que tomava conta da Europa e, sobretudo, Portugal que perdera a primazia das navegações oceânicas e sentia os efeitos de uma forte crise política, além de catástrofes naturais, tremores de terra e enchentes, surtos de pestes e revoltas populares. 

    Outros motivos, no entanto, concorrem para a popularidade dos relatos de naufrágio, dentre eles, um de natureza técnica e material: a moda do texto impresso. Mesmo em um tempo em que a imprensa era recente, os livros, caros, e a população letrada, muito reduzida, o sucesso desses livrinhos confirmava que o mundo havia entrado de forma irreversível na era da escrita. Portugal, em particular, já contava com a imprensa apenas três décadas após a invenção dos tipos móveis, em 1448, por Gutemberg. Em meados do século XVI, já havia um movimento editorial intenso, em que algumas casas se dedicavam a imprimir obras luxuosas, enquanto outras, pequenas tipografias, publicavam, em verso e prosa, folhas soltas, em edições baratas e populares. Ali se encontravam as histórias mais estimadas do povo, vidas e milagres de santos, aventuras de bandidos célebres, romances de cavalaria - como os do ciclo do rei Artur ou de Carlos Magno - ou histórias cômicas e sentenciosas, em meio às quais passaram a ser encontradas também as histórias de viagens e batalhas marítimas, assim como as relações de naufrágios dos galeões e naus da Índia.

    É provável que muitas dessas histórias tenham se perdido. A principal documentação existente - uma coletânea com 12 relatos de naufrágio - resultou de um trabalho de edição e publicação, em dois volumes, em 1735 e em 1736, intitulado História trágico-marítima, de onde constam as narrativas dos naufrágios das naus Santo Antônio, São Paulo e São Francisco. A compilação foi feita pelo historiador oitocentista Bernardo Gomes de Brito, membro da Academia Real de História. Revela seu biógrafo, que ele teria como projeto a publicação de mais três volumes contendo relatos semelhantes. Não se conhece a razão de tanto interesse de Bernardo Gomes de Brito, num período em que a historiografia oficial, de cujo círculo fazia parte, privilegiava o estudo das genealogias das famílias reais, das batalhas e das biografias de personalidades, a prosopopeia; e temas religiosos, a vida dos santos, a hagiografia e a teologia.

    Não se sabe também por que interrompeu seu projeto e publicou apenas os dois primeiros volumes, dos cinco pretendidos. As causas podem estar nas dificuldades que encontrava à época qualquer livro pra ser publicado, entre elas a de ser submetido às muitas instâncias do Santo Ofício e do Paço. A história trágico-marítima demorou seis anos em tramitações burocráticas. Desde que foram iniciados, em 1729, os pedidos de licenças de praxe para sua publicação, até 1735, quando receberam finalmente a autorização, ou seja, o imprimatur.

    Não fosse a coletânea de Gomes de Brito ficaria perdido para sempre um material precioso de pesquisas, para a história e para a literatura, pois, sem dúvida, os relatos de naufrágio prenunciam, de muitas maneiras, as convenções do relato histórico, do ficcional e do etnográfico, que ali aparecem de forma imbricada e embrionária.

    Apesar das diferenças entre os relatos de naufrágio, eles são organizados segundo um modelo que traz na primeira parte a descrição da preparação para a viagem. Nela estão contidos os dados mais importantes sobre o organização da armada, datas, nomes, o porto de saída e o de destino. Após a partida, é narrada a vida a bordo, o trabalho, as rezas, os jogos, as calmarias letárgicas.

    A ameaça de um naufrágio abre a segunda parte. Uma cena se impõe, abruptamente: uma avalanche de ondas que dos píncaros cavam abismos, ventos cruzados, chuvas, nuvens escuras, relâmpagos e trovoadas. É a preparação para o naufrágio. Começa então a luta dos homens contra a natureza em fúria. Eles fazem de tudo para não perder o timão, para esgotar a água, limpar os escoadouros entupidos de pimentas. A situação agrava-se mais e mais e, então, para os navios ficarem mais leves e governáveis, torna-se necessário jogar as mercadorias ao mar.

    Os narradores descrevem um quadro fantástico: o mar coberto de barris e caixas, mercadorias caras, tapetes, tecidos, brocados; mirra e benjoim, riquezas que eram antes tão amadas por seus donos e que, no momento do perigo, são um estorvo, dificultando o equilíbrio dos navios. As cenas do naufrágio da nau São Tomé ilustram o tom desses relatos: "tudo quanto viam se lhes representava a morte; porque por baixo viram a nau cheia de água, por cima o céu conjurado contra todos, porque até ele se encobriu com a maior cerração e escuridão que se viu. O ar assobiava de todas as partes, que parecia que lhe estavam bradando morte, morte".

    São também descritas cenas que aconteciam no interior dos navios: os homens trabalhando, crianças e mulheres chorando, outros se confessando em voz alta, padres organizando rezas e ladainhas, tudo isso em uma linguagem exaltada e crivada de imagens altissonantes. Em torno da imagem poderosa do naufrágio, desenvolve-se uma profusão de motivos que preparam a ação: nuvens, chuvaradas e relâmpagos, elementos que estão ali não para reportar fenômenos atmosféricos, mas para configurar uma concepção trágica da existência, em que o mundo encontra-se arruinado pela cobiça e os personagens, pela culpa. Assim, desfila no texto um vasto repertório de alegorias que, em muitos aspectos, prenunciam o barroco, em sua obsessão por temas extraordinários.

    Na sucessão dos acontecimentos, passado o clímax do naufrágio, é dada a hora de buscar e contar os sobreviventes, em geral os que escaparam em barcos salva-vidas ou os que foram jogados, pelas ondas, nas praias da costa oriental da África.

Nesse ponto, inicia-se a terceira parte do relato: a perdição em terras desconhecidas, aventuras e encontros surpreendentes com reis mouros e africanos, sofrimentos, trabalhos e necessidades. Após o naufrágio, a narrativa retoma um tom mais informativo e traz descrições de hábitos e ritos, observações curiosas e depoimentos sobre a dificuldade de se comunicar, de resgatar água potável e alimentos, trocados, em geral, por pregos e pedaços de ferro que os portugueses conseguiam recuperar da nau destroçada.

    Tanto no auge do naufrágio quanto no momento que o sucede - quando os sobreviventes estão perdidos e necessitados -, os narradores lançam mão de imagens alegóricas muito impressionantes para figurar a desproporção entre as forças da natureza e a fragilidade humana, a inutilidade das riquezas acumuladas, a inversão da fortuna. Eles se valem também de recursos retóricos para ampliar o efeito da cena trágica sobre o leitor. Quando os portugueses iniciam sua caminhada pelas praias e sertões da África, fazem-na ordenadamente, em forma de uma procissão, com uma cruz à frente, como penitentes arrependidos, enrolados em cordas, purgando suas culpas. Tudo isso, como diz um narrador, para "manter a morte diante dos olhos" e levar as pessoas à piedade e à contrição.

    Ao ter o naufrágio como foco dramático principal, uma cena-fantasma na memória do narrador, o relato assume muitos outros papéis. Serve como um ex-voto, para agradecer a Deus o fato de ter sobrevivido, serve também para provocar um efeito catártico, "folgar com o fim daqueles males", e poder descansar do passado. Prenunciando as peças fúnebres da oratória do barroco, os epitáfios e as elegias, tão difundidos na cultura barroca europeia, os relatos de naufrágio apresentam uma coleção de temas para meditação. Alegorias sérias e silenciosas, personagens em luto, desenganados, modos trágicos de morrer no mar.


Texto de Maria Angélica Madeira. Professora e pesquisadora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

O segredo do casco da tartaruga

    Logo que aprendeu a ler, o menino começou a fazer descobertas. Um dia estava folheando um livro e se deparou com a palavra "réptil". Procurou no dicionário e se surpreendeu com o significado: animal que se arrasta. Cobras, por exemplo. Pensava que réptil tinha a ver com rapidez e era justamente o contrário. O pai riu de seu espanto e disse que as tartarugas também eram répteis. Aliás, uma lenda chinesa afirmava que Deus escrevera o segredo da vida no casco de uma tartaruga.

    O menino gostou dessa escrita de Deus, que utilizou o casco da tartaruga como se fosse uma folha de de papel. O pai lembrou que aprender a ler nos livros era só o começo. Com o tempo, o filho poderia ler no rosto de uma pessoa sua história inteirinha. E bastaria observar os olhos de um amigo para ver se neles brilhava a felicidade. Ou tocar as mãos de um homem do campo para conhecer seus sofrimentos.

    Mas o menino, curioso, queria mesmo era saber qual o segredo da vida. Por isso, começou a se interessar pela vida das tartarugas. Conheceu a tartaruga-de-couro, cujo casco parecia uma bola de capotão. A tartaruga-oliva, que lembrava o verde das azeitonas, e a tracajá, típica da Amazônia. Descobriu que a tartaruga-de-pente tinha esse nome porque de sua carapaça se faziam pentes, bolsas e aros para óculos. E aprendeu tudo sobre a tartaruga-cabeçuda, sobre a tartaruga-gigante, atração das Ilhas Galápagos, e sobre a Ridley, das praias d Costa Rica.

    Quanto mais estudava, mais o menino se convencia de que realmente poderia descobrir a escrita de Deus naquelas criaturas que carregavam a casa nas costas. Elas tinham carapaças misteriosas, com desenhos estranhíssimos, círculos coloridos, arestas longitudinais. Algumas até pareciam pintura. 

    O menino foi crescendo e se tornou especialista em tartarugas. Sabia distinguir uma adolescente de uma adulta e conhecia como ninguém a desova das espécies marinhas no litoral. Mas também descobriu que, assim como procurava o segredo da vida no casco das tartarugas, outras pessoas buscavam a mesma coisa em lugares diferentes: no pulsar das estrelas, no canto dos pássaros, no silêncio dos olhares, no cheiro dos ventos, nas linhas das mãos, no fim do arco-íris. Tudo ao redor podia ser lido, sorriu ele, lembrando-se das palavras de seu pai. E só o tempo, como um professor que pega na mão do aluno, ensinava essa lição, enquanto as pessoas iam fazendo suas descobertas bem devagarzinho - como as tartarugas. Talvez estivesse aí o segredo.


Conto de João A. Carrascoza retirado da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita, Abril de 1998.

sábado, 23 de julho de 2022

O Poder do Amor

Acredita no amor e vive-o plenamente.

Qualquer expressão de afetividade propicia renovação de entusiasmo, de qualidade de vida, de metas felizes em relação ao futuro.

O amor não é somente um meio, porém o fim essencial da vida.

Emanado pelo sentimento que se aprimora, o amor expressa-se, a princípio, asselvajado, instintivo, na área da sensação, e depura-se lentamente, agigantando-se no campo da emoção.

Quando fruído, estimula o organismo e oferece-lhe reações imunológicas, que proporcionam resistência às células para enfrentar os invasores perniciosos, que são combatidos pelos glóbulos brancos vigilantes.

A força do amor levanta as energias alquebradas, e torna-se essencial para a preservação da vida.

Quando diminui, cedendo lugar aos mecanismos de reação pelo ciúme, pelo ressentimento, pelo ódio, favorece a degeneração da energia vital, preservadora do equilíbrio fisiopsíquico, ensejando a instalação de enfermidades variadas, que trabalham pela consumpção dos equipamentos orgânicos...

Situação alguma, por mais constrangedora, ou desafio, por maior que se apresente, nas suas expressões agressivas, merecem que te niveles à violência, abandonando o recurso valioso do amor.

Competir com os não amáveis é tornar-se pior do que eles, que lamentavelmente ainda não despertaram para a realidade superior da vida.

Amá-los é a alternativa única à tua disposição, que deves utilizar, de forma a não te impregnares das energias deletérias que eles exalam.

Envolvê-los em ondas de afetividade é ato de sabedoria e recurso terapêutico valioso, que lhes modificará a conduta, senão de imediato com certeza oportunamente.

O amor solucionará todos os teus problemas. Não impedirá, porém, que os tenhas, que sejas agredido, que experimentes incompreensão, mas te facultará permanecer em paz contigo mesmo.

É possível que não lhe vejas a florescência, naquele a quem o ofertas; no entanto, a sociedade do amanhã vê-lo-á enfrutecer e beneficiar as criaturas que virão depois de ti. E isto, sim, é o que importa.

Quando tudo pareça conspirar contra os teus sentimentos de amor, e a desordem aumentar, o crime triunfar, a loucura aturdir as pessoas em volta, ainda aí não duvides do seu poder. Ama com mais vigor e tranquilidade, porque esta é a tua missão na Terra - amar sempre.

Crucificado, sob superlativa humilhação, Jesus prosseguiu amando e em paz, iniciando uma Era Nova para a Humanidade, que agora lhe tributa razão e amor.


Retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Do cacau do Brasil ao chocolate do mundo

A região amazônica foi o berço do cacau por causa das altas temperaturas e das chuvas abundantes, ideais para seu crescimento. Em meados do século XVIII, sementes foram levadas do Pará para o sul da Bahia, onde se desenvolveram muito bem devido a diversos fatores. Em primeiro lugar, o clima bastante similar ao do seu habitat natural facilitou o processo de adaptação do cacaueiro, que precisa da sombra oferecida por árvores de maior estatura. Como os engenhos de açúcar não vingaram ali, a selva nativa ficou praticamente intocada, à espera dos pés de cacau, que  cresceram pela Mata Atlântica. Essa adaptação perfeita escreveu um novo capítulo da história da região.

No século XIX, uma seca nos sertões da Bahia e de Sergipe levou muitos migrantes para a costa do Cacau, como hoje é conhecido o litoral baiano que se estende de Itacaré a Canavieiras. Eram pessoas humildes e semianalfabetas, que estabeleceram uma agricultura de base familiar. A partir de 1860, com as primeiras fábricas de chocolate da Europa e dos Estados Unidos, o fruto passou a ser muito procurado. Praticamente toda a safra era exportada. As primeiras manufaturas nacionais só apareceriam na virada do século XX, momento em que a cacauicultura vive seu ápice, o país se torna o maior produtor mundial - e a cidade de Ilhéus, o principal porto de escoamento da produção.

O Brasil chegou a ser responsável por 40 por cento da produção mundial de cacau, mas hoje produz apenas 4 por cento do total, enquanto o oeste da África responde por 65 por cento. Em termos de consumo, os países da Comunidade Europeia e os Estados Unidos encabeçam a lista, responsáveis por mais de 60 por cento das importações mundiais.


Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

Guilherme Tell

    Há muitos anos, antes de ser um país livre e soberano, s Suíça era governada por um regente autoritário chamado Gessler. Todos mundo tinha medo dele, porque quem desobedecesse às suas ordens era impiedosamente castigado. A única pessoa que não o temia era um bravo caçador das montanhas de nome Guilherme Tell, respeitado pelos seus conterrâneos por ser, além de homem de bem, um exímio arqueiro. Ninguém o superava na pontaria certeira com o arco e a flecha.

    O tirano Gessler, arrogante e vaidoso, gostava de aterrorizar a gente do povo. Por isso, mandou erguer na praça principal um poste no qual fez pendurar o seu chapéu. Diante desse ridículo símbolo de autoridade, todos os passantes deveriam se curvar. E todos obedeciam, de medo de ser cruelmente punidos. Todos, menos Guilherme Tell, que não se submetia àquela humilhação por considerá-la abaixo de sua dignidade. Até que um dia aconteceu de o próprio Gessler estar na praça quando Tell passou por ali com seu filho de 8 anos.

    Vendo que o caçador não se curvara diante do chapéu, Gessler ficou furioso e mandou que seus soldados o agarrassem, gritando:

    - Tell, tu me desafiaste, e quem me desafia morre. Mas tu podes escapar da morte se fizeres o que eu te ordeno.

    E o perverso Gessler mandou que encostassem o filho do caçador ao poste com uma maçã sobre a cabeça. Então, continuou:

    - Agora, Tell, terás de provar a tua fama de grande arqueiro acertando a maçã na cabeça do teu filho com uma única flechada. Se acertares, o que duvido, sairás livre. Mas, se errares, serás executado aqui, na frente de todo este povo.

    E Guilherme Tell foi colocado no ponto mais distante da praça, com o seu arco e uma flecha.

    - Cumpra-se a minha ordem!, bradou Gessler.

    - Atire, meu pai, disse o menino. Eu não tenho medo.

    Com o coração apertado, Guilherme Tell levantou o arco, apontou a flecha, esticou a corda e, de dentes cerrados, mirou em direção ao alvo. Zummmm! A flecha zuniu no ar, rapidíssima, e rachou ao meio a maçã sobre a cabeça da criança.

    Um suspiro de alívio subiu da multidão, que assistia horrorizada àquele cruel espetáculo.

    Nesse momento, Gessler viu a ponta de uma outra flecha escondida debaixo do gibão do arqueiro.

    - Para quê a segunda flecha, se tinhas direito a um só arremesso? urrou o tirano.

    Guilherme Tell respondeu, em alto e bom som:

    - A segunda flecha era para varar o teu coração, Gessler, se eu tivesse ferido meu filho.

    E pegando o menino pela mão, Guilherme Tell deu as costas ao tirano e foi embora.

    Anos mais tarde, o arqueiro foi um valoroso combatente pela independência da sua terra e pela liberdade de seu povo.


Lenda suíça recontada por Tatiana Belinky retirada da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita. Março de 1998.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Como se fosse

    De nada adiantou a couraça contra o fio da espada. O sangue jorrou entre as frestas metálicas e o jovem rei morreu no campo de batalha. Tão jovem, que não deixava descendente adulto para ocupar o trono. Apenas, da sua linhagem, um filho menino.

    Antes mesmo que a tumba fosse fechada, já os seus fiéis capitães se reuniam. A escolha de um novo rei não podia esperar. E determinaram que o menino haveria de reinar, pois a coroa lhe cabia de direito. Que começassem os preparativos para colocá-la sobre sua cabeça.

    Aprontavam-se as festas de coroação, enquanto os capitães instruíam o menino quanto ao seu futuro. Mas porque o rei seu pai havia sido muito amado pelo povo e temido pelos inimigos, e porque o rosto do menino era tão docemente infantil, uma decisão sem precedentes foi tomada.

    No dia da grande festa, antes que a coroa fosse pousada sobre os cachos do novo rei, a rainha sua mãe avançou e, diante de toda a corte, prendeu sobre seu rosto uma máscara com a figura do pai. Assim, ele haveria de ser coroado, assim ele haveria de governar. E os sinos tocaram em todo o reino.

    Muitos anos se passaram, muitas batalhas. O menino rei não era mais um menino. Era um homem. Acima da máscara, seus cabelos começavam a branquear. Seu reino também havia crescido. As fronteiras, agora longas, exigiam constante defesa.

    E, na batalha em que defendia a fronteira do Norte, perseguido pelos inimigos, o rei foi abatido no fundo de uma ravina, sem que de nada lhe valesse a couraça.

    Antes que fechasse os olhos, acercaram-se dele seus capitães. Retiraram o elmo. O sangue escorria da cabeça. O rei ofegava, parecia murmurar algo. Com um punhal, cortaram as tiras de couro que prendiam a máscara. Soltou-se pela primeira vez aquele rosto pintado ao qual todos se haviam acostumado como se fosse carne e pele. Mas o rosto que surgiu por baixo dele não era um rosto de homem. A boca de criança movia-se ainda sobre mudas palavras, os olhos do rei faziam-se baços num rosto de menino.


Conto de Marina Colasanti retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Dezembro de 1997.

O caminho de uma delícia

Do xocolatl asteca aos bombons europeus, o cacau originário da Amazônia foi produto rentável no Brasil colonial e se transformou no chocolate, adorado em todo o mundo.


    Quando os castelhanos fizeram contato com os astecas pela primeira vez, no início do século XVI, não era possível prever o quanto esse encontro mudaria o mundo. Populações seriam dizimadas, civilizações desapareceriam, a Europa conheceria um fluxo de metais preciosos capaz de mudar seus rumos, e seus hábitos alimentares passariam por transformações definitivas com a introdução à mesa de novos ingredientes, como a batata, o milho e o tomate. O cacau, uma outra novidade surgida desse encontro, levaria muito tempo até chegar à forma apreciada nos dias de hoje por crianças e adultos das mais diferentes nacionalidades: ele, o chocolate.

    Produto nativo da região amazônica, o cacau se espalhou pelas florestas tropicais da América, sendo consumido pelas populações indígenas do continente. Os maias do período clássico (séculos III-X) foram os primeiros a cultivar o fruto de forma sistemática: usavam as favas como moeda e descobriram que as secando, moendo e misturando com água se obtinha uma bebida - o xocolatl. O cultivo do cacau passou ao povo toltec (séculos X-XIII) e, posteriormente, aos astecas (séculos XII-XVI), que também o utilizavam como moeda e como bebida nutritiva consumida entre quente e morna, considerada fortificante e afrodisíaca, à qual juntavam baunilha, especiarias - como a pimenta - e farinha de milho.

    No Brasil, o cacau era inicialmente colhido pelos índios nas matas da Amazônia. Mas a Coroa portuguesa não demorou para perceber seu valor econômico e, assim, ordenou seu cultivo em ordem régia de 1º de novembro de 1677. Na verdade, desde os primeiros relatos dos descobridores, a planta do cacau e a bebida despertaram a atenção no velho continente. As referências e as descrições do cacau, do cacaueiro ou da utilização das amêndoas como moedas e as alusões ao consumo da bebida foram abundantes por parte de viajantes, cronistas e até médicos. A primeira carga chegou a Sevilha em 1585, como tributo sobre a produção mexicana. Logo os castelhanos esforçaram-se para intensificar a produção para atender a demanda do consumo de cacau que se espalhava por outros reinos europeus. Mas é apenas no século XVII que os castelhanos passam a ter uma "paixão obsessiva" pelo chocolate, quando a bebida já tinha sofrido diversas transformações. A mais importante, atribuída aos carmelitas de Oaxaca, no México, constituiu em acrescentar açúcar de cana ao cacau e à baunilha, ao mesmo tempo em que suprimiram as especiarias anteriormente misturadas.

    Antes de 1677, foram praticamente infrutíferas as tentativas da Coroa portuguesa em fazer com que os colonos no Brasil cultivassem o cacau. Mesmo assim, parece que, em 1665, o vice-rei d. Vasco de Mascarenhas pediu a Paulo Martins, capitão-mor da capitania do Pará, "garfos nascidos ou sementes de cacau, para que se pudesse plantar ou semear na Bahia". Não se sabe se o pedido foi atendido, já que as primeiras plantações da Bahia datam de períodos posteriores.

    Sabe-se, no entanto, que o consumo das delícias originárias do cacau cresciam consideravelmente entre os castelhanos no século XVIII, assim como a produção e a exportação do cacau, a partir de territórios sob o domínio português. Em 1717, um édito do governo de Madrid proibia a entrada do cacau do Maranhão, via Portugal. Essa proibição vigorou até o acordo de 1749, estabelecido entre Portugal e Espanha. Porém, a escassez de açúcar e cacau em solo espanhol facilitou a introdução furtiva daqueles bens pela fronteira portuguesa. Por volta de 1750, o cacau chegou a representar 90 por cento da carga da frota proveniente do Maranhão. A partir de 1760, com a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778) - que tinha o monopólio do comércio da região -, o cacau exportado via Belém representou 82 por cento do volume global das exportações.

    Na Europa, a moda de beber chocolate tornava-se uma saborosa realidade entre os grupos abastados. O cacau revolucionava a confecção de bebidas frias e quentes, assim como de bolos, biscoitos, cremes, pudins e gelado. O novo hábito de ingerir chocolate não passou despercebido aos estrangeiros que chegavam a Portugal, que descreviam a saborosa experiência em seus relatos. O guia do criado de servir, publicado em 1851, e O cozinheiro dos cozinheiros, cuja primeira edição é de 1870, testemunham o costume de beber chocolate no fim das festas.

    Essa moda implicou na criação de novos objetos. Acredita-se que foi nos conventos da Nova Espanha que as chocolateiras apareceram. Possuíam asa e tampa com buraco, no qual era introduzido um pau, um batedor ou molinete - de origem indígena - para bater a bebida. Inicialmente foram produzidas de forma grosseira em argila e em cobre, sendo posteriormente fabricadas em materiais nobres, como a prata e porcelana. Dessa forma, as chocolateiras aparecem nos inventários de bens dos mais abastados, como d. Catarina de Bragança, rainha viúva de Carlos II da Grã-Bretanha (1638-1705), e seu irmão, o rei d. Pedro II (1648-1706), que possuíam  requintados exemplares de prata. Ao longo do século XIX, surgiram serviços de chocolate em porcelana magníficos, que acompanhavam chávenas, pires e tabuleiros. No Brasil colonial também havia chocolateiras, algumas produzidas pelas mulheres índias do Pará. Junto com outros instrumentos de preparação e venda de alimentos, elas integravam o patrimônio de negras libertas de Minas Gerais, conforme documentado em vários testamentos.

    À medida que o tempo foi passando, os cozinheiros foram aproveitando outras potencialidades do cacau. Mesmo assim, a maneira de preparar a bebida era explicada por autores como Domingos Rodrigues (século XVII), Bluteau, Francisco Borges Henriques, João Daniel e outros do século XVIII. No primeiro livro de doçaria portuguesa - Arte nova e curiosa - figura uma receita de calda de chocolate para nevar. De fato, raramente encontram-se receitas de doces com o referido ingrediente - entre as exceções estão as conservas de café e chocolate e um creme de baunilha, chocolate e café, apresentados por Lucas Rigaud, um dos cozinheiros do rei de Portugal em 1780 - sucessivamente plagiado, pois essa mesma receita aparece no Cozinheiro Imperial, o primeiro livro de cozinha do Brasil, e nos de Constança Oliva de Lima e Anselmo Pinto de Queiroz.

    É a partir do século XIX que a situação se altera. Às receitas de chocolate para beber, juntam-se algumas pretensamente dietéticas, os chamados chocolates de saúde. Também surgem outras variações: além dos populares cremes de chocolate, presentes em mais de uma dúzia de livros de culinária, é possível encontrar também receitas de molhos, gelados e sorvetes, pudins, biscoitos, bolinhos, bombons, rebuçados, pastilhas e até de licores. Outros autores mais sofisticados do período, como Olleboma, apresentaram profiterolles, musses e suflês de chocolate. De dar água na boca!

    Se algumas famosas receitas europeias apareceram no século XIX - caso do bolo de chocolate austríaco Sachertorte, referenciado desde 1832 e criado em Viena por Franz Sacher (1816-1907), além do tronco de Natal francês, nascido por volta de 1870 -, em terras lusas a realidade foi bem diferente. Apesar da primeira receita portuguesa de bolo de chocolate conhecida datar de 1870 - Fofos de chocolate, apresentada em O Cozinheiro dos Cozinheiros -, só no século XX os bolos com esse ingrediente se generalizaram. Já no Brasil, a abundância do cacau levou até o especialista em insetos Gregório Bondar a fornecer diversas receitas: geléia, doce e licor de cacau, musselina de chocolate (um tipo de bolo), ensinando ainda a maneira de fabricar o chocolate em casa.

    Nas refeições festivas em Portugal, a análise dos menus revela a presença da guloseima. Num banquete servido pela confeitaria Parisiense (Lisboa), em 31 de janeiro de 1897, foi apresentada, entre outros doces, uma charlotte au chocolat. Num almoço, presumivelmente de casamento, fornecido pela Casa Ferrari (Lisboa), em 28 de maio de 1898, os comensais puderam degustar bombons fins de Paris, entre outras sobremesas. No Brasil, doces com chocolate podiam ser apreciados nas afamadas confeitarias, como a Cavé e a Colombo, no Rio de Janeiro do século XIX, e ainda hoje, nessas e em muitas outras casas em todo o país.

    Apesar de jamais ter cultivado cacau, a Europa foi se tornando a principal produtora e consumidora do chocolate até os anos de 1800. A sua importação, do Brasil e da América espanhola, e a posterior aclimatação da planta a outros espaços - em diferentes continentes, como por exemplo em São Tomé e Timor - permitiram que esse produto de luxo chegasse às bocas de diversas camadas da população europeia. O passo seguinte dessa trajetória - passar do beber ao comer chocolate - foi hábito incorporado no século XX e que continua a crescer deliciosamente no Brasil e em diversas regiões do mundo.


Texto de Isabel Drumond Braga. Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Missa do Galo - a celebração do sincretismo

    Todos os anos milhares e fieis católicos celebram a Missa do Galo na primeira hora do dia de Natal. Mas como surgiu essa tradição? Alguns atribuem sua criação a São Francisco de Assis (1181 - 1226). Contudo, a existência dessa celebração é muito anterior à época na qual São Francisco viveu. A partir de meados do século IV d.C., a Igreja de Roma passou a festejar o nascimento de Jesus a 25 de dezembro, dia do solstício de inverno romano. No dia em que o Sol, ao meio-dia, atinge seu ponto mais baixo no céu e tem-se o dia mais curto do ano e a noite mais longa, os pagãos festejavam o Natal do Deus-Sol (Natalis Invictus) e a posse do Deus-Imperador. No esforço de disseminação do cristianismo, o Imperador Constantino substituiu essa festa pagã pela celebração do Natal de Jesus Cristo, Sol da Justiça e Luz do Mundo. Na verdade, uma assimilação sincrética ao antigo culto solar. As Saturnais, festas pagãs celebradas entre 17 e 24 de dezembro que preparavam os fiéis para o culto ao Sol, foram substituídas pelo Tempo do Advento, época de júbilo pelo nascimento de Jesus.

    No século IV, a comunidade cristã de Jerusalém partia em peregrinação a Belém para celebrar a Missa do Natal na primeira vigília da noite dos judeus, na hora do primeiro canto do galo. Daí o nome Missa do Galo. No século seguinte, a cerimônia passou a ser celebrada na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, costume que foi seguido por outras paróquias europeias. Já o galo passou a simbolizar virtudes como a vigilância e a fidelidade aos princípios e valores cristãos. Por isso, no século IX, a ave tornou-se presença frequente no campanário de diversas igrejas.


Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005. Ministério da Cultura.