quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Os Lírios

 Certa madrugada fria

irei de cabelos soltos

ver como crescem os lírios.


Quero saber como crescem

simples e belos - perfeitos! -

ao abandono dos campos.


Antes que o sol apareça,

neblina rompe neblina

com vestes brancas, irei.


Irei no maior sigilo

para que ninguém perceba

contendo a respiração.


Sobre a terra muito fria

dobrando meus frios joelhos

farei perguntas à terra.


Depois de ouvir-lhe o segredo

deitada por entre lírios

adormecerei tranquila.


Poema de Henriqueta Lisboa retirado do livro Caminho da Poesia, série Literatura em minha casa, Volume 1, Global Editora, São Paulo, 2003.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

O Bicho

 Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.


Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.


O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.


O bicho, meu Deus, era um homem.


A triste e cruel representação do nosso momento atual...


Poema de Manuel Bandeira retirado do livro Caminho da Poesia, série Literatura em minha casa, Volume 1, Global Editora, São Paulo, 2003.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Canção de alta noite

 Alta noite, lua quieta,

muros frios, praia rasa.


Andar, andar, que um poeta

não necessita de casa.


Acaba-se a última porta.

O resto é o chão do abandono.


Um poeta, na noite morta, 

não necessita de sono.


Andar... Perder o seu passo

na noite, também perdida.


Um poeta, à mercê do espaço, 

nem necessita de vida.


Andar... - enquanto consente

Deus que seja a noite andada.


Porque o poeta, indiferente,

anda por andar - somente.

Não necessita de nada.


Poema de Cecília Meireles retirada do livro Caminho da Poesia, Volume 1, série Literatura em minha casa, Global Editora, São Paulo, 2003.

domingo, 30 de outubro de 2022

A Mulher Perdida

    Tinha onze anos e usava o primeiro uniforme de colégio, quando, alarmado, descobri a amante. Até ali, o impacto da palavra vibrava em mim no retalho de conversas entreouvidas, na tímida suspeição das fitas de cinema. Não tinha posto meus olhos em amante de carne, não era capaz sequer de imaginá-la, a mulher que sofresse hora a hora o estigma: amante. A palavra imantada cristalizara-se em mim com suas pontas, seus reflexos. Mas agora passava a existir a criatura impregnada de seu fogo. Eu, eu fremia de pânico e desejo de acabar com a fraude da infância e abrasar-me. Pensar na amante, saber que ela se mirava no espelho, que se mostrava aos olhos de homens que não tinham amantes, de mulheres que não eram amantes, isso vinha a ser mais fascinante do que todo o sumo de minha vida.

    Via, e não me cansava de ver, as jovens tuberculosas da cidade, mulheres magras que passavam as tardes nas varandas das pensões, contaminadas, mas tranquilas, sem demonstrar uma consciência mortal (eu esperava) do horror que as consumia. Trocavam à vezes o tristonho roupão das horas quase todas por um vestido, deixavam as chinelas, coloriam a palidez do rosto, saíam para a rua, tomavam o bonde, sumiam dentro do edifícios, reapareciam nas confeitarias, usavam xícaras de outras pessoas, retornavam às pensões antes de cair no sereno. Chegavam a rir no alto das varandas depois do jantar, e então, parando de entender o resto, eu respirava.

    Eram as fronteiras da minha vida. E eis que vinha morar perto de casa, na Paróquia de Santo Antônio, entre outras casas de débil estilo normando, uma amante, a amante. As tuberculoses se simplificaram na familiaridade dos fatos consumados. Que morte poderiam carregar consigo, comparadas à amante? A palavra amante era de um contágio mais galopante que a palavra tuberculose. Mas a cidade se recolhia cedo na cama, sem desconfiar da amante.

    Escondi o segredo perigoso. Falar a outro sobre a amante seria amputar o meu gosto de saber a verdade nua. Nunca descrevi do que amo ou me assusta para ninguém; só depois encontro o jeito de denunciar o que se passa comigo.

    Não me recordo de quando a vi pela primeira vez. Levei algum tempo construindo a coragem de vê-la de corpo inteiro, como quando a gente acorda com medo e só aos poucos assume a ousadia de investigar todo o aposento. Do estremecimento inicial à miopia da timidez, eu a vi devagar, como um pintor sem jeito receia reformar num gesto a figura feliz. Tinha de ser devagar a província do meu abandono.

    Um deputado era o amante da amante. Ao cair da tardinha, o automóvel reluzente pousava os pneus macios no calçamento alastrado de capim. Se eu odiasse o deputado, ele deixaria de ser o amante. Eu regressava do futebol, das construções, dos passarinhos, calçado de chuteiras, a cara em fogo, por um campo de flores amarelas. Se o carro estivesse, o bangalô ficaria todo fechado, como casa vazia. Sozinha, ela gostava de debruçar-se no portão de madeira, olhando. E eu passava, olhando.

    Era branca, imorredouramente limpa, e linda, e bem-cuidada, e loura e de olhos alumiados, e de uma serenidade que se entrechocava aos emboléus com o fragor sensual que fazia dentro de mim a palavra. Amante. Pois clamava, até mesmo aos olhos de um inocente, uma dedicação vagarosa na face da amante, nos movimentos meigos, nos vestidos bem-passados, nos pés cingidos de sapatos leves. Só os quadris eram um pouco desenhados demais para as mulheres familiares da época.

    Só a vi assim, correta, singela, concisa. Não perambulava pelas ruas como as tuberculosas, não tinha amigos, não falava aos vizinhos. Ela estava certa de que trazia na alma um contágio.

    Mas sorria para mim. Depois de algum tempo, começou a sorrir quando eu passava, e pensei, pensei com o tumulto que pode contaminar o corpo e o espírito, que a amante iria ser a minha amante. A mulher mais bela ia ser a amante do menino soturno.

    Ai, ai de que adianta um menino? Não era um menino, era um homem, e um homem quer morrer. As ventanias me arrastaram, dispersando-me nas várzeas, as tempestades me espatifaram, os crepúsculos me sufocaram, uma lua doente me envelheceu.

    E ela me sorria, doce, doce, como as amantes não sorriem. Como sorriem as águas escondidas. Estava me tornando menino outra vez na doçura sem malícia do sorriso. E uma tarde ela me pediu que entrasse, e eu entrei de chuteiras. E ela passou a mão nos meus cabelos e me deu um doce de elite, que eu comi, depois de responder, cara afogueada, que meu nome era Pedro. A amante queria ser minha mãe.

    Minha primeira complicada compaixão pelas mulheres.


Crônica de Paulo Mendes Campos retirada do livro As Eternas Coincidências, da série Literatura em minha casa - Crônica & Conto - Volume 2, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

sábado, 29 de outubro de 2022

Instrumento da Vida

    Não te consideres indene à interferência perniciosa das Entidades perversas, que ainda se comprazem gerando perturbação e sofrimento.

    Utilizando-se das imperfeições morais dos homens, insinuam-se através dessas brechas e instalam centros de desordem, estabelecendo conflitos e distorcendo os enfoques da realidade, por meio de lentes defeituosas.

    Estás destinado a realizações superiores para o teu bem e o bem geral.

    Procedes da ignorância e rumas para a Grande Luz.

    Anelas pela claridade futura, no entanto, movimentas-te ainda entre sombras  remanescentes...

    Cuida-te mais, a fim de que a tua usina psíquica não ofereça energia pra utilização prejudicial a ti próprio.

    Um pequeno incidente, um acontecimento sem importância, uma querela sem valor, um ato que te parece de desconsideração, ligeira dificuldade no relacionamento familiar, afetivo ou social, uma desconfiança, e estão prontos os condimentos para o acepipe da desarmonia, do mal-estar...

    Indispensável redobrares a vigilância e perseverares no bom humor.

    Quem abraça o Evangelho do Cristo encontra-se mais bem equipado para enfrentar as vicissitudes e lutar contra as próprias imperfeições.

    Certamente tens problemas e dificuldades. Todavia, o mundo é escola de aperfeiçoamento, e, quantos nele se movimentam, com raríssimas exceções, padecem das mesmas injunções.

    O que não podes é desmerecer a confiança do Senhor, que te encarregou das tarefas que deves desempenhar com alegria.

    A conquista da felicidade real é um desafio de alto porte. Somente o logram aqueles que se empenham sem desfalecimento na superação dos empeços.

    Crês que podes ser útil em qualquer lugar, e, não especificamente, neste ou naquele onde te encontras.

    É certo que sim. Sem embargo, toda vez que abandonamos um labor, mesmo que para encetarmos outro, fracassamos naquele que dependia de nós, e , qualquer insucesso que disso decorre, a responsabilidade é do desertor.

    Em períodos de problemas, faz-se mais imperiosa a dedicação.

    O cristão decidido dá-se, serve e confia.

    Quando espera retribuição, destaque, projeção, sem dúvida que se está servindo da tarefa, e não atuando em favor do serviço.

    Não arroles, pois, queixas, nem exigências.

    O erro sempre perturba a quem o pratica.

    Sê tu aquele que avança sempre, sem pressa, porém sem pausas prolongadas ou mediante marchas e contramarchas.

    Deixa-te, desse modo, conscientizar de que edificação moral, renovação espiritual e construção do bem no mundo são empreendimentos de grande porte que a vida te enseja, considerando que, antes, fazias parte do grupo que perturbava e afligia, sendo, agora, instrumento da vida para a  glorificação do bem, em nome dAquele que é o Sumo Bem.


Texto retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª edição, 2014.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Diálogo à beira da cova

    Cheguei um pouco atrasado no cemitério e precisava perguntar na recepção, ou que melhor nome tenha, por onde andava o meu defunto. O funcionário prestava no momento umas informações a uma senhora, uma senhora de uns quarenta e poucos anos, já meio amarelecida em seu princípio de outono. Ela  acabava de formular a seguinte pergunta:

    - Qual dois dois o senhor acha melhor? Pode falar com toda a franqueza.

    - Mas é mesmo para a senhora? - quis certificar-se o empregado, um sujeito gordo, de bigodes opulentos e tisnados, de um sorriso familiar e complacente, nada fúnebre.

    - Sim, é para mim mesma - ela confirmou com naturalidade.

    Ele, vagamente galante, ponderou sem convicção:

    - Mas a senhora, tão moça, tão forte e já pensando nessas coisas...

    - É do meu temperamento - cortou a dama, toda de preto vestida.

    - No fundo, talvez a senhora tenha razão - comentou misteriosamente o funcionário.

    - Resolvi deixar tudo arrumadinho. Isso de estar forte não significa coisa nenhuma. A gente nunca sabe quando vem a bicha.

    - É isso mesmo - voltou ele com o mais gordo de seus sorrisos. - A senhora está dizendo uma coisa que é pura verdade: a gente nunca sabe.

    Seu modo de falar era absolutamente sincero, sem qualquer ironia: trabalhando com os mortos, aquele homem não tinha tempo de pensar na morte e ouvia com admiração aquelas palavras banais a respeito da insegurança da vida. Para ele, os mortos morriam na hora, chegavam na hora, eram enterrados na hora. Se acaso um cadáver se atrasava ou se antecipava, isso estava errado. Ela arrematou o seu pensamento:

    - Coisa que não suporto é dar amolação a parentes. Só por isso é que resolvi escolher a minha cova, pagar por ela e ficar em paz.

    - Bem, como é para a senhora mesma, vou ser muito franco. O da quadra 16 é melhor. Mas muito melhor.

    - Ué, por quê? Aquele perto do muro me pareceu que não tinha nenhum inconveniente. O senhor quer saber de outra? Coisa que me dá aflição é ficar no meio do bolo. Nunca fui de carnaval. Aliás, desde menina que sempre preferi viver no meu cantinho, onde ninguém pode me amolar...

    - Mas...

    - Não é preciso dizer. Estou viva, mas nem depois de morta suporto confusão. Além do mais, sou louca por flores... Gostei tanto daquelas, tão bonitas, tão amarelinhas...

    - A senhora não me leve a mal - insistiu o funcionário -,  mas as flores não querem dizer nada.

    - Como assim?

    - É claro, madame. Nem sei como aquelas plantas nasceram por ali. Mas amanhã elas morrem e fica tudo pelado que dá gosto. Sou empregado aqui e não posso dar com a língua nos dentes, mas se a senhora quiser ouvir um bom conselho, fique com o da quadra 16, que estará muito bem servida.

    - Ah, mas o senhor tem de me contar o motivo. Pode dizer.

    - Madame, para bem entendedor, meia palavra basta.

    - O senhor não repara não, mas sou danada de teimosa. Lá em casa até me chamam de Maria Teimosa. Enquanto o senhor não me confessar por que o da quadra perto do muro não serve, não arredarei o pé daqui (Pausa e sorriso coquete). Daqui não saio, daqui ninguém me tira...

    O funcionário olhou para os lados, deu com a minha cara cem por cento distraída, inclinou-se um pouco, vencido, disse em voz baixa:

    - Se a senhora me promete segredo...

    - Claro, serei um túmulo.

    O gordo, num sussurro, quebrou o segredo profissional:

    - Aqueles todos ali perto do muro dão água.

    - Dão água?!

    - Quer dizer, têm infiltração.

    - Muita?

    - Muita.

    - Água... água...

    Por um segundo esperei com espanto e admiração que ela citasse Shakespeare: Water is o sore decayer of your whoreson dead body*. Mas, em vez de Shakespeare, ela preferiu um suspiro:

    - Ah, realmente com água é meio desagradável. Ai, ai! Nada nesta vida sai como a gente quer. Pois bem, então vou ficar com o da quadra 16, que hei de fazer! Mas o senhor nem pode imaginar minha tristeza. Achei aquele perto do muro, aquele das florzinhas amarelas, tão simpático, tão repousante! E ando tão cansada, tão enjoada de tanto barulho, tanta confusão...


* A água é um cruel decompositor do seu miserável corpo morte.


Crônica de Paulo Mendes Campos retirado do livro As Eternas Coincidências, da série Literatura em minha casa - Crônica & Conto - Volume 2, Bertand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

História do Brasil

    E o Senhor disse:

    Agora criarei o mais estranho de todos os países. E ele será verde-amarelo e atenderá no concerto das nações pelo nome de Brasil. E ele nunca saberá com certeza o motivo de seu nome. Pois com o Brasil pretendo mostrar aos homens que os caminhos do Senhor são desconhecidos.

    E erguerei do barro um poeta que dirá: "O Brasil é uma república federativa com muitas árvores e gente dizendo adeus". E o Brasil viverá do improviso, que não é o vento do espírito, mas a mesmo força que dormia no caos, antes que a Terra fosse criada.

    E darei a esse povo um rei português, ocioso, gordo, incapaz e grande comedor de frangos, mas que irá criar as primeiras coisas importantes, a fim de que o povo do Brasil se acostume a não entender mais nada. E ao filho desse rei caberão duas missões: primeiro, inventar a juventude transviada; segundo, separar Portugal do Brasil. Depois disso, farei com que ele embarque para Portugal, onde será rei dos portugueses. Pois é preciso que o povo do Brasil receba com naturalidade aquilo que não tem explicação. Aí, eis que vou criar um terceiro rei. E esse deverá escrever os piores sonetos da língua portuguesa. E amará as línguas mortas. A fim de que se acrescente a confusão. Então, em uma transparente manhã de novembro, criarei de repente a república federativa com muitas árvores e gente dizendo adeus. A meu comando, um soldado triste bradará: "Viva a República!" E a república será vivada. E os barões serão os mais fiéis republicanos. E os republicanos derramarão lágrimas e escreverão muitas cartas com saudade do rei que escrevia sonetos. E a confusão será maior. E o brasileiro será o irmão do vento, que ninguém entende.

    E a esse povo darei o açúcar. Depois, por tortos caminhos, farei trazer do outro lado do mundo o café. Pois está escrito que o Brasil deve viver da mistura do branco e do preto, e da mistura do doce com o amargo, para que os escribas possam chamar esse país de terra dos contrastes.

    E criarei para o Brasil oradores eloquentes; a estes darei a ambição, mas não a sabedoria; e criarei uns poucos homens sábios; e a estes não darei nem a ambição, nem a eloquência. A fim de que as discussões se prolonguem e que o povo se perca pela boca dos oradores.

    E sobre grandes veios de ouro levantarei montanhas de ferro, mas o povo viverá da cultura da mandioca; e as bananeiras agitarão suas crinas nas tardes morosas dos quintais; e esse país imenso e despovoado só derramará sangue por causa de terras; e o brasileiro não saberá se Lampião foi um flagelo de Deus ou um ótimo sujeito, porque não entende a mais velha das contendas, que é a briga pela terra.

    E o povo amará a cachaça e o pastel; e inventará a cuíca e o samba; e bebendo cachaça, comendo pastel, tocando cuíca e sambando esquecerá que o Brasil é uma pobre república federativa com muitas árvores e gente dizendo adeus.

    Então, eis que, em uma ilha frígida, a fim de que os corpos se aqueçam, inventarei o futebol. E o tórrido Brasil amará o futebol acima de pai e de mãe. Então criarei a Copa do Mundo. E um dia o Brasil perderá esse galardão na última batalha, dentro de seus próprios muros, quando lhe bastaria o empate. Quatro anos depois caberá aos comunistas eliminar os brasileiros para que se aumente a confusão. E para que se aumente a confusão criarei uma comissão técnica que não entenda nada de futebol. E esta será bicampeã do mundo. E o tórrido Brasil, chorando de alegria, beberá muita cachaça, e comerá muito pastel, e tocará muita cuíca. Aí, eis que farei o Brasil perder o Tri, e a Taça, e a Alegria para Portugal. Pois assim está escrito

    Para que o brasileiro continue na sua confusão, irmão do vento, que ninguém entende.


Crônica de Paulo Mendes Campos retirada do livro As Eternas Coincidências, da série Literatura em minha casa - Crônica & Conto - Volume 2, Bertand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Futebol de Veteranos

    O espetáculo começa quando eles chegam, aí por volta de duas e meia das tardes de sábado. O campo tem pouco menos de 50 metros de comprimento, cabendo seis de cada lado, um louco no gol, dois zagueiros, dois na frente e um armando pelo meio. Olhos luzindo, eles calçam os sapatos de tênis ou basquete. Três ou quatro senhores, sempre suspeitos, confabulam a um canto, escalando, conforme a frequência, três ou quatro times para o torneio vesperal.

    - O meu está uma droga.

    - O seu, perto do meu, é um escrete.

    - E o meu! Nelson e Mauricinho juntos! Essa não!

    - O meu está mais ou menos, mas só tem jogador de defesa.

    Logo depois do par-ou-ímpar é preciso recondicionar os times. Todos estão descontentes ou fingem descontentamento, até que um deles se abraça com a bola e, gesticulando com o outro braço, brada:

    - Vamos começar, gente! Anda escurecendo cedo.

    Todos resmungam, mas acabam concordando, e há uma aparência de calma. Antes que se dê a saída, são indispensáveis mais duas brigas: a primeira, dentro de cada time, pois ninguém quer começar no gol; a segunda, envolvendo todos, é sobre o juiz.

    - Se o Zé Catimba apitar, eu não jogo.

    - Por quê?

    - Porque ele tem cisma comigo.

    - O Lúcio não veio hoje?

    - Está em casa tocando trombone.

    - Apita você, Armandinho.

    - Nem por vinte mil cruzeiros.

    - E você, Tavares?

    - Só apito se ninguém reclamar.

    - Prometo que do meu lado ninguém reclama.

    - Eu nunca reclamo mesmo.

    Prometem, mas não cumprem. Todos reclamam de tudo e de todos, do juiz que não viu mão, do adversário que cometeu obstrução, você que me trancou pelas costas, do companheiro que não passou, essa nem o Garrincha tenta fazer, do goleiro que papou um frango.

    - Você não viu que eu não consegui matar a bola?

    - Vi: você está sem revólver.

    As partidas se sucedem, a gana de vencer é feroz, o suor escorre, os corações disparam, há cruentos suspiros de fadiga, as mãos esfregam os rins quando a bola vai fora, as botinadas vão e vêm, recíprocas. Mas não esmorecem, é preciso não esmorecer, pois aqui ninguém mais é criança.

    Mas aqui somos todos uma crianças, crianças de 30 e poucos, de 30 e muitos, de 40, os mais velhos aí pelos 50. Crianças numa pelado crepuscular, que pode ser a última de nossa vida, o cemitério, a orfandade de nossos filhos. Mas é por isso mesmo que não podemos perder, é por isso mesmo que fazemos das tripas coração, é atrás duma nesga da infância que andamos a correr, é a maturidade irremediável que estamos tentando driblar, é contra o tempo que perseguimos o gol.

    Visto de fora, sobretudo por uma pessoa que já arqueje ao correr para pegar o ônibus, nosso espetáculo pode ser triste e ridículo. De dentro, dou minha palavra de honra, trata-se duma vivência bonita e alegre. Um viciado em leituras psicanalíticas diria que estamos querendo provar a nós mesmo que... ainda não ficamos velhos. E diria a verdade. Ignorando no entanto que, de antemão, já sabemos derrotados; aí reside uma rejubilação de músculos e espírito que vai tangenciar a própria dramaticidade do tempo e a incapacidade humana de revertê-lo.

    Mais tarde, tomando uma cerveja, os cavalões estão vermelhos por fora e purificados por dentro. Pudicamente, um dirá que a pelada ajuda a manter a forma; outro alega que deseja perder um pouco de peso; outro cinicamente acha que não há nada como esse exercício para fazer boca para uma cervejinha estupidamente gelada.

    Mas no fundo, em segredo, sabem todos que a pelada é boa porque dar um chute bonito faz um bem extraordinário à alma do homem. Sobretudo se o homem é brasileiro.


Crônica de Paulo Mendes Campos retirado do livro As Eternas Coincidências, da série Literatura em minha casa - Conto & Crônica - Volume 2, Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

domingo, 23 de outubro de 2022

Perfeição

 Vamos celebrar a estupidez humana

A estupidez de todas as nações nações 

O meu país e sua corja de assassinos

Covardes, estupradores e ladrões

Vamos celebrar a estupidez do povo

Nossa polícia e televisão

Vamos celebrar nosso governo

E nosso Estado, que não é Nação

Celebrar a juventude sem escola

As crianças mortas

Celebrar nossa desunião

sábado, 22 de outubro de 2022

Buscando e Encontrando

A busca de Deus deve constituir uma ação constante e motivadora para qualquer existência feliz.

As definições a respeito d'Ele, mesmo quando satisfaçam ao intelecto, não conseguem atender às imensas necessidades do coração.

Ao mesmo tempo, a interpretação racional da Sua Grandeza apenas oferece dimensão para que o homem compreenda a sua infinita limitação em torno da Transcendente Realidade, impossível de ser globalizada em uma síntese apreensível.

Quando se pretende explicar o Universo sem a necessidade de Deus, utilizando-se de equações que remontam à grande explosão, que seria a sua causa inicial, somente se constatam efeitos, porquanto as forças aglutinadoras das moléculas têm as suas origens no insondável do tempo preexistente.

Sem que se apele para a Razão Incausada, as fórmulas para solucionar o enigma do infinito perdem as potências, se não apoiadas na ação consciente de um Criador.

É humano e natural que a mente deseje interpretar o Incognoscível.

As tentativas, no entanto, têm resultado, somente, na apreensão dos limites, que se ampliam ante a percepção do que é Ilimitado.

Todavia, quando se sente Deus, sem necessidade de O verbalizar intelectualmente, de O exteriorizar, basta para facultar o preenchimento do vazio interior.

Conceitos há, uns que O Personalizam e outros que O liberam de toda e qualquer possibilidade de entendimento. As suas variações são inumeráveis, de acordo com cada povo, cultura e mente.

Não obstante, seja qual for a forma para externar a ideia, isso, na prática, deveria alterar em profundidade os indivíduos, sua conduta, sua vida.

Deus se encontra insito no ser humano, tanto quanto onipresente em todas as coisas. 

Jazendo como uma força encarregada de fomentar a vida, aguarda que a vontade consciente do homem desenvolva as potencialidades que ali estão, exteriorizando-as, a fim de plenificar a criatura.

Vibrando no âmago do Espírito, é a força propulsora graças à qual este atinge a sua perfeição relativa

Não cesses de buscar Deus, conscientizando-te das responsabilidades que advirão após o encontro.

Filho amado, dispões de todos os recursos para conseguires a meta sublime.

Esforçando-te, conseguirás desvelá-lO nos sentimentos profundos e apresentá-lO através de atos compatíveis com a felicidade que te dominará.

Enriquecido pelo Seu amor, distenderás a ternura e a bondade por todos quantos te cerquem, repetindo o júbilo que te domina, assim  aquecendo as vidas com a esperança.

Deus te aguarda e enseja-te a oportunidade de entendê-lO e senti-lO.

Não te detenhas na busca, prosseguindo de ânimo robusto.

Buscá-lO, já é uma forma de encontrá-lO


Retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2014.