sábado, 16 de dezembro de 2023

Tornar-se Pessoa

Lançado em 1961, o livro de Carl Rogers "Tornar-se Pessoa" sintetizou o trabalho de mais de trinta anos do famoso psicoterapeuta. Ganhou o mundo. Foi traduzido em diversos idiomas e vendeu mais de um milhão de cópias.


Foi nesta obra máxima, que Carl Rogers expôs de maneira clara, simples e objetiva a sua teoria, seu aprendizado ao longo de mais de três décadas de terapias com os mais variados tipos de pessoas. O livro foi tão impactante que serviu de inspiração não apenas para a psicólogos ou pessoas ligadas ao setor, mas a donas de casa, empresários, pedagogos, publicitários, enfim, a todo e qualquer ser humano interessado em melhorar-se como pessoa.

Na época do lançamento, Rogers escreveu: "Esta obra foi elaborada para ajudar aos psicólogos, psiquiatras, educadores, conselheiros escolares, conselheiros religiosos, assistentes sociais, terapeutas do ontologia, diretores ou gestores, especialistas de organização do trabalho, homens dedicados às ciências políticas, para que todos eles possam encontrar no meu trabalho uma relação direta com os seus problemas profissionais. Sinceramente, é a eles que dedico esta minha obra. Existia ainda um outro motivo, mais complexo e pessoal: a busca de um público que ouvisse o que eu tinha para dizer: o comum, pois ele se refere à pessoa e à sua mudança num mundo que parece ignorá-la ou diminuí-la. Há ainda uma última razão para publicar este livro, um motivo que tem para mim uma enorme importância. Trata-se da grande, da desesperada necessidade do nosso tempo de adquirir o máximo de conhecimentos de base e a maior competência possível para estudar tensões que ocorrem nas relações humanas. [...] Espero que se torne evidente que esses conhecimentos, aplicados preventivamente, poderão ajudar no desenvolvimento de pessoas maduras, não defensivas e compreensivas que possam enfrentar de uma maneira construtiva as tensões que se lhes deparem no futuro. Se eu conseguisse tornar patente a um significativo número de pessoas os recursos por utilizar dos conhecimentos já disponíveis no domínio das relações  interpessoais, considerar-me-ia amplamente recompensado".

As expectativas do autor foram amplamente superadas. A repercussão do livro foi tamanha, que ele passou a ser conhecido como o "psicólogo da América". Sua teoria e algumas expressões usadas por ele na obra entraram definitivamente para as escolas da psicologia. A noção de empatia, por exemplo, tornou-se importantíssima na psicanálise.

Alguns pesquisadores acreditam que muitas teorias de Rogers praticamente se diluíram nas inúmeras escolas. Muitas de suas ideias foram amplamente aceitas apesar de algumas serem revolucionárias para a época. É dele também que vem a importância dada à autoestima. Suas ideias prevalecem até os nossos dias, dentro das profissões de saúde mental. Ele colocou a pessoa como arquiteto de sua própria transformação e capaz de ver dentro dela os próprios valores e conquistas.

Na introdução do livro, o psiquiatra Peter D. Kramer (65 anos), especialista em depressão, destaca que "para Rogers, o homem é 'incorrigivelmente socializado em seus desejos'. Ou, como ele coloca o problema repetidamente, quando o homem é mais plenamente homem, ele é merecedor de confiança. Rogers foi, na classificação de Isaiah Berlin, um porco-espinho: Ele sabia uma coisa, mas o sabia tão bem que poderia fazer disso um mundo. A escola de psicanálise de ponta atualmente é chamada de 'psicologia do self', um nome que Rogers poderia ter cunhado. Como a terapia centrada no cliente, que Rogers desenvolveu na década de 40, a psicologia do self entende a relação, mais do que o insight, como sendo central à mudança; e como a psicoterapia centrada no cliente, a psicologia do self sustém que o nível ótimo de frustração deva ser 'o menor possível'. A postura terapêutica em psicologia do self não podia estar mais próxima à consideração positiva incondicional".

Kramer finaliza dizendo que a abertura do livro pelo autor, intitulada: "Este sou Eu" não precisaria de qualquer introdução, pois contrasta com a postura defendida por seu colegas, que acreditavam que o terapeuta deve se apresentar como uma lousa em branco. "A opinião predominante era de que Rogers poderia ser repudiado, pois não era sério. Esta opinião esconde e revela uma visão estreita do que é sério ou intelectual. Rogers era um professor de universidade e um doutor amplamente publicado, tendo a seu crédito dezesseis livros e mais de duzentos artigos. O próprio sucesso do livro Tornar-se Pessoa pode ter prejudicado a reputação acadêmica de Rogers; ele era conhecido pela argumentação direta e simplicidade".


Como tornar-se pessoa?


Esta é a questão levantada por Rogers no livro de 480 páginas. Nele está a síntese de sua teoria aplicada em vários "clientes", como ele passou a chamar seus pacientes. Seu conteúdo revela que ninguém nasce pronto ou acabado, que não existem modelos de perfeição que devem ser seguidos. Cada ser humano parte do nada e passa a vida tornando-se aquilo que é.

Rogers inicia a obra traçando seu próprio perfil. Mostrando-se por inteiro. Como começou, quando mudou seu modo de pensar, se deu conta de que o psicanalista freudiano estava distante demais de quem precisava ajudar e, finalmente, porque acredita que sua teoria na prática funciona.

Nas primeiras partes do livro ele acentua: "Este é um livro sobre o sofrimento e a esperança, a angústia e a satisfação na sala de todos os terapeutas. É sobre o caráter único da relação que o terapeuta estabelece com cada cliente, e, igualmente, sobre os elementos comuns que descobrimos em todas essas relações. Este livro é sobre as experiências profundamente pessoais de cada um de nós (...). É um livro sobre mim, sentado diante do cliente, olhando para ele, participando da luta com toda a profundidade e a sensibilidade de que sou capaz".

A seguir, vai descrevendo o seu aprendizado: "Nas minhas relações com as pessoas, descobri que não ajuda, em longo prazo, agir como se eu fosse alguma coisa que não sou. Não serve de nada agir calmamente e com delicadeza num momento em que estou irritado e disposto a criticar. Não serve de nada agir como se soubesse as respostas dos problemas quando as ignoro. Não serve de nada agir como se sentisse afeição por uma pessoa quando, nesse determinado momento, sinto hostilidade para com ela. Não serve de nada agir como se estivesse cheio de segurança quando me sinto  receoso e hesitante". Mais à frente ele destaca a necessidade de aceitação das outras pessoas de nosso convívio e como mudou a sua postura de como ajudar para como fazer esta pessoa se ajudar.

Já capítulo Como Tornar-se Pessoa, Rogers salienta que "um dos elementos da terapia de que mais recentemente tomamos consciência é o quanto ela é para o cliente, a aprendizagem de uma aceitação plena e livre, sem receio, dos sentimentos positivos de outra pessoa. Não é um fenômeno que ocorra com muita clareza em todos os casos de longa duração, mas, mesmo nesses, não se produziu uniformemente. No entanto, é uma experiência tão profunda, que fomos levados a perguntar se não se  trataria de uma direção muito importante no processo terapêutico, que, em todos os casos bem-sucedidos, talvez se verifique em certa medida, a um nível não verbalizado". Dito isso, o autor passa a trabalhar a afeição por si mesmo no cliente. Ou seja, a autoestima, importantíssima a seu ver para se chegar a qualquer lugar. A seguir, ele enfatiza a descoberta que norteia toda a sua teoria: "a descoberta de que o centro da personalidade é positivo". Mais à frente, o processo de tornar-se pessoa centraliza-se na resposta do cliente à pergunta: "Quem sou eu, realmente? Por trás da máscara, o processo de tornar-se é viável".

Quase no final, ele lembra as inevitáveis perguntas que todo ser humano se faz ao longo da vida: "Qual é o meu objetivo na vida?", "O que procuro?", "Qual é a minha finalidade?". No caso de seus clientes, Rogers diz que as respostas estão sempre envoltas em confusões sobre eles mesmos e cita um caso: "Vejamos o que diz um rapaz de dezoito anos, numa das primeiras entrevistas: 'Eu sei que não sou assim tão exuberante e tenho receio de que o descubram. É por isso que falo essas coisas... Qualquer dia, descobrem que eu não sou assim tão exuberante. Estou precisamente fazendo tudo para que esse dia seja o mais longínquo possível... Se me conhecesse como eu me conheço (pausa). Não vou lhe dizer que pessoa eu penso realmente que sou'."

Rogers finaliza focando os rumos da terapia sem antes enfatizar os resultados comprovados pela sua centrada na pessoa, na qual o cliente sente-se à vontade com o terapeuta e este totalmente aberto a ele. "Ela permite uma exploração em si mesmo de sentimentos cada vez mais estranhos, desconhecidos e perigosos, exploração que apenas é possível devido à progressiva compreensão de que é incondicionalmente aceito. Começa então o confronto com elementos da sua experiência, que no passado tinham sido negados à consciência como demasiado ameaçadores, demasiado traumatizantes para a estrutura do eu. Descobre-se vivenciando plenamente esses sentimentos na relação, de modo que, em cada momento, ele é o seu medo, a sua irritação, a sua ternura ou a sua força. E à medida que vive esses sentimentos variados, em todos os seus graus de intensidade, descobre que vivenciou a si mesmo, que ele é todos esses sentimentos. Depara com o seu comportamento mudando de uma forma construtiva em conformidade com o seu eu, do qual teve recentemente a experiência".


Aplicação abrangente


A ideia de servir de inspiração para os mais diversos segmentos da sociedade foi plenamente atingida pelo psicoterapeuta americano com o seu livro. A professora Maria do Céu Mota em artigo Tornar-se Pessoa (aventra.eu) diz que durante a sua licenciatura em Ensino de Música, o livro de Carl Rogers foi muito importante para ela. "É um livro cheio de ensinamentos não só para professores, mas para todos", opina. Segundo ela, juntamente com o indiano Krishnamurti, Rogers veio por associação, porque, no seu entender, ambos são semelhantes, não obstante estarem geograficamente tão distantes. "Penso que é uma ótima oportunidade de relembrar os seus ensinamentos e conhecer o que ele aprendeu na sua longa experiência como psicólogo, e psicoterapeuta por meio desta obra. Escolho à sorte algumas passagens, significativas: 'Não ajuda, em longo prazo, agir como se eu não fosse quem sou (...) tentar manter uma atitude de fachada (...) quando me aceito a mim mesmo como sou, estou a modificar-me. (...) todos nós temos medo de mudar'."

Mota alerta para o que considera a grande mensagem de Rogers no livro: "esta 'vida plena' não é para quem desanima facilmente. Implica em coragem de ser. Significa que se mergulha em cheio na corrente da via".

O professor Adolfo Pereira, mestrando em Desenvolvimento Sustentável e Qualidade de Vida pelo UNIFAE e especialista em Gestão de Pessoas pela PUC de São Paulo, concorda com Mota. No artigo "Líder elefante e líder escada" (www.rhportal.com.br), ele enfatiza que "a tendência das relações reais é mais para se modificarem do que para se manterem estáticas" é o que afirmou Carl R. Rogers no livro Tornar-se Pessoa (1961, p. 29). "Seguindo Rogers deveríamos, portanto, estar mais acostumados com as mudanças, especialmente no âmbito dos relacionamentos dentro das organizações. Mais especificamente, nas relações entre chefes e subordinados. Chefe ou líder, neste texto, representa aquele ou aquela profissional que está à frente de um setor, equipe ou empresa. Gostaria de tocar numa 'ferida' que, invariavelmente, insiste em se fazer presente nas organizações de todo porte, que é 'o medo do chefe de perder o seu cargo para outro (a) que faz parte da equipe ou está tentando ingressar na organização'. O problema se concretiza quando ele usa o seu poder para anular aquele (a) que lhe representa uma ameaça. Isso acontece nas organizações? Conheço mais de uma centena de casos. Eu chamo este tipo de chefe de 'líder elefante', porque sempre que alguém o ameaça, ele levanta a sua pata gigante e o esmaga como se pisasse sobre uma pequenina formiga. Isto é horrível! Ruim para todo mundo, mas acontece o tempo todo".

Flávio Souza, trainer coach da International Coaching, em Empatia Cibernética de Competência Inconsciente: Excelência na Comunicação para Profissionais do Século XXI (www.tecmeddeditora.com.br) ressalta: "(...) o sucesso profissional é primeiramente um produto da capacidade e tendência de empatia do indivíduo, seja em qualquer área de atuação, fazendo-se ainda mais presente nas profissões que se estabelecem uma relação de ajuda. Nesta esfera, a empatia cumpre funções de abrir caminho para a aproximação, informação, ensino/aprendizagem, motivação, liderança, influenciação, e para a ajuda. A empatia amplifica, intensificando essas atitudes, buscando aliviar as necessidades de si mesmo e do outro, exprimindo-se, assim, na forma mais ativa da abordagem centrada na pessoa, que segundo Rogers (1962), trata-se de 'uma filosofia, um modo de ser a vida, um modo de ser, que se aplica a qualquer situação onde o crescimento - de uma pessoa, de um grupo, de uma comunidade - faça parte dos objetivos'. Tomamos como conceito de empatia a capacidade de um indivíduo em se reconhecer no outro e compartilhar com ele os seus sentimentos, emoções, condição situacional e representações sensoriais e estruturas de mundo no momento em que se processa a comunicação; promovendo assim uma conexão e sintonia inconsciente entre as partes envolvidas neste processo do relacionamento, proporcionando compreensão, confiança, segurança e ternura aos indivíduos envolvidos neste sistema, permitindo uma comunicação eficaz e eficiente (...). Então para o estabelecimento de uma empatia autêntica".

Ainda sobre a obra de Carl Rogers, o editor Emanuel Oliveira Medeiros, do Jornal Correio de Açores (www.correiodosacores.net), ao recomendar o livro no suplemento educação, sintetiza a receptividade do público ao livro: "é um clássico contemporâneo. Foi um livro  publicado, inicialmente, em 1961. Depois foi traduzido e publicado em Portugal. Os bons livros, sempre falam à pessoa que somos ou queremos ser. Os tempo que correm, propícios às tensões nas relações humanas, suscitam razões acrescidas para ler este livro. Sobretudo vivê-lo, até onde é possível, a começar pelo título, aparentemente paradoxal! Um livro com rigor acadêmico a serviço de todos".


Texto de Denise Berto retirado da Revista/Encarte Grande Ícones do Conhecimento, número 07, Mythos Editora, São Paulo.

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