segunda-feira, 2 de abril de 2012

O Burro de Carga

No tempo em que não havia automóveis, na cocheira de um famoso palácio real, um burro de carga curtia imensa amargura, em vista das pilhérias dos companheiros de apartamento. Reparando-lhe o pelo maltratado, as fundas cicatrizes do lobo e a cabeça tristonha e humilde, aproximou-se formoso cavalo árabe que se fizera detentor de muitos prêmios, e disse orgulhoso: " Triste sina a que recebeste! Não invejas minha posição nas corridas? Sou acariciado por mãos de princesas e elogiado pela palavra dos reis! ". " - Pudera! " exclamou um potro de fina origem inglesa. " - Como conseguirá um burro entender o brilho das apostas e o gosto da caça? ". O infortunado animal recebia os sarcasmos, resignadamente. Outro soberbo cavalo, de procedência húngara, entrou no assunto e comentou: " - Há dez anos, quando me ausentei da pastagem vizinha, vi este miserável sofrendo rudemente nas mãos do bruto amansador. É tão covarde que não chegava a reagir, nem mesmo com um coice. Não nasceu senão para carga e pancadas. É vergonhoso suportar-lhe a companhia. " Nisto, admirável jumento espanhol acercou-se do grupo, e acentuou sem piedade: " Lastimo reconhecer neste burro um parente próximo. É animal desonrado, fraco, inútil... Não sabe viver senão sob pesadas disciplinas. Ignora o aprumo da dignidade pessoal e desconhece amor-próprio. Aceito os deveres que me competem até o justo limite; mas se me constrangem a ultrapassar as obrigações, recuso-me à obediência, pinoteio e sou capaz de matar... " As observações insultuosas não haviam terminado, quando o rei penetrou o recinto, em companhia do chefe das cavalarias: " - Preciso de um animal para serviço de grande responsabilidade. " - informou o monarca - " - Animal dócil e educado, que mereça absoluta confiança. " O empregado perguntou: " - Prefere o árabe, Majestade? " " Não, não " - falou o soberano - " É muito altivo e só serve para corridas em festejos oficiais, que não tem tanta importância. " " Não quer o potro inglês? " " - De modo algum. É muito irrequieto e não vai além das extravagâncias da caça. " " Não deseja o húngaro? " " - Não, não. É bravio, sem qualquer educação. É apenas um pastor de rebanho. " " - O jumento espanhol serviria? " - insistiu o servidor atencioso. " - De maneira nenhuma. É manhoso e não merece confiança. " Decorridos alguns instantes de silêncio, o soberano indagou: " - Onde está meu burro de carga? " O chefe das cocheiras indicou-o entre os demais. O próprio rei puxou-o carinhosamente para fora, mandou ajaezá-lo com as armas resplandecentes de sua casa e confiou-lhe o filho, ainda criança, para uma longa viagem... E ficou tranquilo, sabendo que poderia colocar toda a sua confiança naquele animal... Assim também acontece na vida. Somente auxiliam seguramente, somente estão preparados para desempenhar algumas tarefas, aqueles que já aprenderam a servir com humildade, sem pensar em si mesmo!

autoria desconhecida

domingo, 1 de abril de 2012

O Hóspede

                    Castro Alves

Onde vais, estrangeiro! Por que deixas
O solitário albergue do deserto?
O que buscas além dos horizontes?
Por que transpor o píncaro dos montes,
Quando podes achar o amor tão perto?...

Pálido moço! Um dia tu chegaste
De outros climas, de terras bem distantes...
Era noite!... A tormenta além rugia...
Nos abetos da serra a ventania
Tinha gemidos longos, delirantes.

Uma buzina restrugiu no vale
Junto aos barrancos onde geme o rio...
De teu cavalo o galopar soava,
E teu cão ululando replicava
Aos surdos roncos do trovão bravio.

Entraste! A loura chama do brasido
Lambia um velho cedro crepitante,
Eras tão triste ao lume da fogueira...
Que eu derramei a lágrima primeira
Quando enxuguei teu manto gotejante!

Onde vais, estrangeiro? Por que deixas
Esta infeliz, missérrima cabana?
Inda as aves te afagam do arvoredo...
Se quiseres... as flores do silvedo
Verás inda nas tranças da serrana.

Queres voltar a este país maldito
Onde a alegria e o riso te deixaram?
Eu não sei tua história... mas que importa?...
... Boia em teus olhos a esperança morta
Que as mulheres de lá te apunhalaram.

Não partas, não! Aqui todos te querem!
Minhas aves amigas te conhecem.
Quando à tardinha volves da colina
Sem receio da longa carabina
De lajedo em lajedo as corças descem!

Teu cavalo nitrindo na savana
Lambe as úmidas gramas em meus dedos,
Quando a  fanfarra tocas na montanha,
A matilha dos ecos te acompanha
Ladrando pela ponta dos penedos.

Onde vais, belo moço? Se partires
Quem será teu amigo, irmão e pajem?
E quando a negra insônia te devora,
Quem, na guitarra que suspira e chora,
Há de cantar-te seu amor selvagem?

A choça do desterro é nua e fria!
O caminho do exílio é só de abrolhos!
Que família melhor que meus desvelos?...
Que tenda mais sutil que meus cabelos
Estrelados no pranto de teus olhos?...

Estranho moço! Eu vejo em tua fronte
Esta amargura atroz que não tem cura.
Acaso fulge ao sol de outros países,
Por entre as balças de cheirosos lises,
A esposa que tua alma assim procura?

Talvez tenhas além servos e amantes
Um palácio em lugar de uma choupana,
E aqui só tens uma guitarra e um beijo,
E o fogo ardente de ideal desejo
Nos seios virgens da infeliz serrana!...

No entanto Ele partiu!... Seu vulto ao longe
Escondeu-se onde a vista não alcança...
...Mas não penseis que o triste forasteiro
Foi procurar nos lares do estrangeiro
O fantasma sequer de uma esperança!...


O Morcego

                         Augusto dos Anjos

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

Vou mandar levantar outra parece...
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Versos Íntimos

                     Augusto do Anjos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Pulsações (fragmento)

                             Clarice Lispector


A vida com letra maiúscula nada pode me dar porque vou confessar que também eu devo ter entrado por um beco sem saída com os outros. Porque noto em mim, não um bocado de fatos, e sim procuro quase tragicamente ser. É uma questão de sobrevivência assim como a de comer carne humana quando não há alimento. Luto não contra os que compram e vendem apartamentos e carros e procuram se casar e ter filhos mas luto com extrema ansiedade por uma novidade de espírito. Cada vez  que me sinto quase um pouco iluminado vejo que estou tendo uma novidade de espírito.

Toda vez que eu faço uma coisa com intenção não sai nada, sou portanto um distraído quase proposital. Eu finjo que não quero, termino por acreditar que não quero e só então a coisa vem.

O que me atormenta é que tudo é " por enquanto ", nada é " sempre ". A vida - a partir do momento em que se nasce - é guiada, idealizada pelo sonho.

Os brilhantes são pequenas alegrias em chuveiro de risos de crianças. São cascatinhas de água gelada em gargalhadinhas de tremor. Ai que frio. Eu prefiro brilhantes a diamantes. Não sei bem por quê: talvez porque a palavra " brilhante " parece brilhar mesmo com suas faíscas de luz oblíqua, é palavra que parece não se resumir a si mesma, a um brilhante, mas conter um chuveiro de brilhantes, como olhos iluminados e transparentes. Brilhantes são uma alegria da terra, são saltitantes e quando imóveis parecem estrelas. Aliás, brilhantes nunca são imóveis: sua luz cristalina é refratária à imobilidade. Um brilhante ilumina um ambiente e os olhos se tornam docemente aclarados. Mas um diamante é algo preso à terra, é sólido, e a palavra " diamante " é um pouco opaca apesar das duas primeiras sílabas: " dia ". E o final " amante " denuncia um amor carnal e imperecível. O brilhante é poeticamente irresponsável, enquanto o diamante-pedra é circunspecto e estável.

trecho do livro " Um Sopro de Vida " (Pulsações) de Clarice Lispector.

sexta-feira, 30 de março de 2012

E Agora?

                  Roberto Shynyashiki

Um grupo de etólogos japoneses fez uma série de estudos sobre o comportamento animal num arquipélago formado de minúsculas ilhas e pôde observar que os macacos da região comiam batatas sem lavar, ou seja, sujas de terra.

Certo dia, um macaco pequeno resolveu lavar sua batata antes de comê-la e gostou do paladar do tubérculo sem terra. Correu para mostrar a descoberta à sua mãe, que lhe deu uns petelecos.

Porém, o macaquinho não desistiu, e seguiu mostrando sua descoberta para outros filhotes. De vez em quando um deles resolvia experimentar e gostava da comida sem terra.

O grupo de macacos jovens que lavava suas batatas ia aumentando. Finalmente conseguiram convencer alguns de seus pais, que também experimentaram. Mas a tarefa era trabalhosa, pois poucos aderiram.

Um belo dia, os pesquisadores observaram que, de um momento para outro, todos os macacos daquela ilha começaram a lavar a batata antes de comê-la, e, para surpresa de todos, constataram que não somente os macacos daquela ilha, mas também de todo o arquipélago, aderiram à novidade.

Os observadores chegaram à conclusão de que o trabalho de conscientização inicialmente é demorado, poucos aderem, a maioria desqualifica. Mas quando um determinado número de elementos de um grupo social atinge a consciência - que no experimento eles denominam " o centésimo macaco " -, a energia que parte deles contagia toda a comunidade.

Assim como o primeiro macaquinho que fez sua descoberta, é importante que cada ser humano persista em sua revolução interior. O nosso planeta ainda vive atolado no egoísmo e no medo, apesar de todos os discursos e textos a respeito da necessidade de uma maior consciência e cooperação.

A nossa capacidade de transformação social vai aumentar quando mudarmos não só nosso discurso, mas principalmente nossos sentimentos, nossa postura e nossa compreensão da vida.

Conscientes do nosso mundo interior, o trabalho deve ser feito de dentro para fora. Só então poderemos participar verdadeiramente na criação do Novo Homem para o Novo Mundo.

Tomemos cuidado para não criar filhos competitivos sob o pretexto de que terão que enfrentar os desafios do mundo. Não iríamos colocá-los em um quarto cheio de fumaça a fim de prepará-los para viver na poluição ambiental, nem os deixaríamos numa redoma, para protegê-los. Isso os levaria à alienação.

Nem gladiadores insensíveis, nem eremitas solitários, mas pessoas concentradas, em interação com seus semelhantes.

A espécie humana percorreu um longo caminho desde que o primeiro primata resolveu apoiar-se somente sobre seus dois pés posteriores e ver o mundo de frente. O próximo passo é o  indivíduo centrado em seu ser com consciência de cooperação global.

A tarefa é ampla, mas é a única saída para esse caos atual. A meta será atingida á medida que cada pessoa aprender a lavar suas batatas, seus sentimentos e suas crenças e, com seu exemplo ajudar outros a atingirem a sua consciência até chegarmos ao " centésimo macaco ".

Se acreditarmos, acontecerá.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Ensaio Sobre A Amizade

                              Lya Luft


Que qualidade primeira a gente deve esperar de alguém com quem pretende um relacionamento? Perguntou-me o jovem jornalista, e lhe respondi: aquelas que se esperaria do melhor amigo. O resto, é claro, seriam os ingredientes da paixão, que vão além da amizade. Mas a base estaria ali: na confiança, na alegria de estar junto, no respeito, na admiração. Na tranquilidade. Em não poder imaginar a vida sem aquela pessoa. Em algo além de todos os nossos limites e desastres.

Talvez seja um bom critério. Não digo de escolha, pois amor é instinto e intuição, mas uma dessas opções mais profundas, arcaicas, que a gente faz até sem saber, para ser feliz ou para se destruir. Eu não quereria como parceiro de vida quem não pudesse querer como amigo. E amigos fazem parte de meus alicerces emocionais: são um dos ganhos que a  passagem do tempo me concedeu. Falo daquela pessoa para quem posso telefonar, não importa onde ela esteja nem a hora do dia ou da madrugada, e dizer: " Estou mal, preciso de você ". E ele ou ela estará comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns quarteirões a pé, ou simplesmente ficando ao telefone o tempo necessário para que eu me recupere, me reencontre, me reaprume, não me mate, seja lá o que for.

Mais reservado do que expansivo num primeiro momento, mais para tímido, tive sempre muitos conhecidos e poucas, mas reais, amizades de verdade, dessas que formam, com a família, o chão sobre o qual a gente sabe que pode caminhar. Sem elas, eu provavelmente nem estaria aqui. Falo daquelas amizades para as quais eu sou apenas eu, uma pessoa com manias e  brincadeiras, eventuais tristezas, erros e acertos, os anos de chumbo e uma generosa parte de ganhos nesta vida. Para eles não sou escritora, muito menos conhecida de público algum: sou gente.

Amizade é um meio-amor, sem algumas das vantagens dele mas sem o ônus do ciúme - o que é, cá entre nós, uma bela vantagem. Ser amigo é rir junto, é dar o ombro para chorar, é poder criticar ( com carinho, por favor), é poder apresentar namorado ou namorada, é poder aparecer de chinelo de dedo ou roupão, é poder até brigar e voltar um minuto depois, sem ter de dar explicação nenhuma. Amigo é aquele a quem se pode ligar quando a gente está com febre e não quer sair para pegar as crianças na chuva: o amigo vai, pega junto com os dele ou até mesmo se nem tem criança naquele colégio.

Amigo é aquele a quem a gente recorre quando se angustia demais, e ele chega confortando, chamando de " meu amigão ", mesmo que a gente esteja um trapo. Amigo, amiga, é um dom incrível, isso eu soube desde cedo, e não viveria sem eles. Conheci uma senhora que se vangloriava de não precisar de amigos: " Tenho meu marido e meus filhos, e isso me basta ". O marido morreu, os filhos seguiram sua vida, e ela ficou num deserto sem oásis, injuriada como se o destino tivesse lhe pregado uma peça. Mais de uma vez se queixou, e nunca tive coragem de lhe dizer, àquela altura, que a vida é uma construção, também a vida afetiva. E que os amigos não nascem do nada como frutos do acaso: são cultivados com... amizade. Sem esforço, sem adubos especiais, sem método nem aflição: crescendo como crescem as árvores e as crianças quando não lhes faltam nem luz nem espaço nem afeto.

Quando em certo período o destino havia aparentemente tirado de baixo de mim todos os tapetes e perdi o prumo, o rumo, o sentido de tudo, foram os amigos, amigas, e meus filhos, jovens adultos já revelados amigos, que seguraram as pontas. E eram pontas ásperas aquelas. Aguentei, persisti, e continuei amando a vida, as pessoas e a mim mesmo (como meu amigo Érico Veríssimo, " eu me amo mas não me admiro ") o suficiente para não ficar amargo. Pois, além de acreditar no mistério de tudo o que nos acontece, eu tinha aqueles amigos. Com eles, sem grandes conversas nem palavras explícitas, aprendi solidariedade, simplicidade, honestidade e carinho.

Nesta página, hoje, sem razão especial nem data marcada, estou homenageando aqueles, aquelas, que têm estado comigo seja como for, para o que der e vier, mesmo quando estou cansado, estou burro, estou irritado ou desatinado, pois à vezes eu sou tudo isso, ah!, sim. E o bom mesmo é que na amizade, se verdadeira, a gente não precisa se sacrificar nem compreender nem perdoar nem fazer malabarismos sexuais nem inventar desculpas nem esconder rugas ou tristezas. A gente pode simplesmente ser: que alívio, neste mundo complicado e desanimador, deslumbrante e terrível, fantástico e cansativo. Pois o verdadeiro amigo é confiável e estimulante, engraçado e grave, às vezes irritante; pode se afastar, mas sabemos que retorna; ele nos aguenta e nos chama, nos dá impulso e abrigo, e nos faz ser melhores: como o verdadeiro amor.

Travessia

                     Frei Betto

Lá vamos nós, ávidos pelos feriados que se avizinham, na busca frenética da casa de praia, do sítio, do hotel, da montanha, um lugar que nos distancie da cidade e nos faça merecer descanso, ausência de agenda de trabalho, telefonemas, dificuldades e inseguranças. Tudo cessa. A Bolsa de Valores, as intrigas políticas, o relógio que escraviza. Ainda que a estrada durma sob nossos pneus imóveis e os ônibus viajem entupidos e os aeroportos se transformem numa feira oriental, vale a ilusão de que haverá sol, as crianças se comportarão como anjos, não faltarão a mesa farta e os copos repletos. Sobretudo paz, fruto espiritual que insistimos em procurar alhures.

Nada mais profano em nossa sociedade que a Semana Santa, exceto o Carnaval. Eis a Modernidade iconoclasta, dessacralizando hábitos e calendários. Outrora, não havia janelas eletrônicas e as novelas eram transmitidas ao vivo nas ruas atulhadas de romeiros e procissões. Na igreja, a cerimônia do lava-pés sobressaindo-se à instituição da eucaristia. Na Sexta-Feira da Paixão, a música clássica das rádios compungidas, as imagens cobertas de roxo, o Senhor morto desfilando sobre os nossos pecados. Jejum e abstinência para uns, peixes e crustáceos para os mais abastados. No sábado, a espera da noite de Aleluia, que resgatava a alegria da Páscoa. Jesus ressuscitou! Domingo de missa alva e o alívio por saber que Ele venceu a morte.

Páscoa significa " passagem ", da opressão à libertação (a travessia do Mar Vermelho, no Êxodo) e da morte à vida (Jesus). Ainda que nada disso diga respeito ao nosso universo pessoal, tão centrado no próprio umbigo, orbitando na tríade família-trabalho-consumo, somos trespassados pela expectativa de uma travessia. Misteriosa espera de algo ou alguém que nos conduza da mediocridade ao meritório, do vazio à plenitude, da rotina ao sentido, do desencanto ao fascínio. O anjo selou-nos com a fome de transcendência. No mais íntimo, sabemos que do lado de fora de nosso ser nada pode aplacar essa sede de plenitude, exceto o amor e o mergulho despojado no silêncio interior, lá onde um Outro resgata a nossa verdadeira identidade.

Um dia um homem peregrinou pela Palestina revelando o que Deus gostaria de nos dizer. Muitos não fizeram caso, a própria família desconfiou de que ficara louco e o poder vigente condenou-o à morte na cruz para que não perturbasse o ordem do Império. Foi crucificado. Em seguida, apareceu vivo a seus discípulos, que nos transmitiram a fé em sua ressurreição.

José Lezama Lima, autor do belo e enigmático Paradiso , fez-se cristão por causa dessa afirmação de Tertuliano: " O filho de Deus foi crucificado: não é vergonhoso porque é infame; o filho de Deus morreu: é ainda mais digno de fé porque é incrível; e depois de morto, ressuscitou: é verdade porque é impossível ".

E, para nós, é vergonhoso crucificar ambições que nos roubam de nós mesmos, acreditar no mistério que ultrapassa a razão e renascer à vida interior e à solidariedade que instaura justiça? O caminho se faz ao caminhar, preveniu-nos Antônio Machado. Talvez renascer no decorrer da vida seja mais atemorizador do que a própria morte. É o lamento de Fernando Pessoa: " Fui o que não sou ". A Páscoa sinaliza que ainda há tempo. Contudo, é preciso não ter medo de ficar descalço, como na Quinta-Feira Santa, e de atravessar a noite escura da Sexta-Feira da Paixão. Então, conheceremos a verdade e a verdade nos libertará, assegura Aquele que é o paradigma.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Perséfone*

                      Flora J. Cooker


Deméter** tinha a seu cuidado todas as plantas, frutas e sementes do mundo. Ensinava os homens a arar os campos e a plantar as sementes. Ajudava-os nas suas colheitas. Eles amavam a bondosa mãe Terra e,  prazerosamente, lhe obedeciam. Gostavam também de sua filha - a bela Perséfone.

Perséfone passeava o dia todo entre as flores dos prados. Onde quer que fosse, os pássaros, cantando alegremente, voavam, em bandos, atrás dela.

O povo dizia: 
- Onde Perséfone estiver, estão os quentes raios de sol; quando ela sorri, as flores desabrocham. Ouçam a sua voz: é como um chilrear de passarinhos.

Deméter queria sempre que a filha estivesse a seu lado. Mas, um dia, Perséfone foi sozinha a uma campina, próxima ao mar. Fez uma grinalda de flores delicadas para os cabelos e colheu todas as que lhe couberam no avental.

Logo, do outro lado do prado, a jovem viu uma flor branca, resplandecente. Correu para ela e verificou que era um pé de narciso, muito mais bonito do que qualquer outro que houvesse visto. Em uma só haste havia umas cem flores. Perséfone procurou apanhar uma, mas a haste não se quebrou. Com toda força, procurou arrancá-la; lentamente, o narciso veio com raiz e tudo.

Ficou, na terra, uma grande cavidade que aos poucos foi aumentando. Logo Perséfone ouviu um reboar como o de um trovão, sob os pés. depois, viu quatro cavalos negros emergindo da cavidade em direção a ela. Atrás deles, vinha um carro feito de ouro e pedras preciosas. Nele estava sentado um homem moreno e  carrancudo. Era Hades.***

Ele vinha das profundezas do seu reino de trevas e protegia os olhos com as mãos. Hades viu Perséfone no campo ensolarado, bela entre as flores. Aproximou-se, tomou-as nos braços e colocou-a na carruagem a seu lado.

As flores caíram-lhe do avental.
- Oh! As minhas lindas flores! gritou. Perdi-as todas.

Então, ela olhou o rosto severo de Hades. Amedrontada,  estendeu as mãos ao gentil Apolo**** que conduzia sua carruagem pelo céu. Clamou por sua mãe, Deméter, para que a socorresse. Ninguém lhe respondeu.

Hades conduziu o coche para o seu lar escuro, nas profundezas da Terra. Os cavalos pareciam voar. Quando entraram nas trevas, Hades procurou consolar Perséfone. Falou-lhe das maravilhas de seu reino, de todo o ouro, prata e pedras preciosas que possuía. À luz mortiça, enquanto seguiam, Perséfone viu pedras luzindo de todos os lados, mas não se importou com elas e chorou amargamente.

- Tenho vivido muito só em meu vasto reino, disse-lhe Hades. Levo-a para o meu palácio a fim de fazê-la minha rainha. Você compartilhará de minhas riquezas.

Perséfone, porém, não queria ser rainha. Desejava apenas estar junto de sua mãe, do sol brilhante e das campinas docemente perfumadas.
Breve chegaram ao palácio de Hades. Perséfone achou-o muito escuro, desolado e também muito frio. Havia um festim preparado para ela, mas a jovem não quis comer coisa alguma. Sabia que aquele que comesse no palácio de Hades nunca mais retornaria à terra. Sentia-se infeliz, embora Hades tentasse, por todos os meios, agradar-lhe.

Tudo sobre a Terra estava triste também.
Uma por uma, as flores fecharam suas corolas e disseram:
- Não podemos desabrochar, porque Perséfone foi embora.
As árvores deixaram cair as folhas e lamentaram-se:
- Perséfone não volta mais, nunca mais.


Os pássaros voaram para longe , queixando-se:
- Não podemos cantar mais, porque Perséfone foi embora.


Deméter estava mais desesperada que todos. Ouvira o apelo de Perséfone e apressara-se a procurá-la. Em vão buscou a filha por todos os cantos da Terra.
Perguntava a todos que encontrava no caminho:
- Viram Perséfone? Onde está Perséfone?


A única resposta que recebia era:
- Foi-se embora. Perséfone não volta mais!


Em pouco tempo, Deméter se tornou uma velha, de rosto enrugado. Ninguém reconhecia nela aquela mãe bondosa que sempre sorria para todos. Envolvera-se de luto, dia e noite; suas grossas lágrimas caíam continuamente sobre o solo frio. Nada mais cresceu na Terra e tudo se tornou triste e estéril.

Era inútil o povo lavrar o solo. Era inútil plantar sementes. Nada poderia medrar sem o auxílio de Deméter e todos se tornaram preguiçosos e melancólicos.

Deméter perambulou por muitas terras e quando se certificou de que ninguém, no mundo, lhe poderia dar notícias de Perséfone voltou os olhos para o céu. Lá, viu Apolo na sua carruagem cintilante. Não ia tão alto como costumava ir, porque não queria ser encoberto pela névoa escura que, por muitos dias, não o deixara ser visto por pessoa alguma.

Deméter estava certa de que ele sabia onde se encontrava Perséfone, porque podia ver todas as coisas na Terra e no Céu.
- Ó grande Apolo! exclamou, tende piedade de mim e dizei-me onde está escondida minha filha.


Apolo, então, lhe disse que Hades a havia levado; que Perséfone estava com ele em seu palácio subterrâneo.
Deméter correu ao grande Pai Zeus***** que podia fazer todas as coisa. Pediu-lhe que mandasse alguém a Hades buscar sua filha. Zeus chamou Hermes******. Ordenou-lhe que fosse, tão depressa quanto o vento, ao palácio de Hades.

Hermes obedeceu, alegremente, e segredou a boa nova a todos os que encontrou no caminho.
Logo chegou ao escuro reino subterrâneo. Entregou a Hades a mensagem de Zeus. Falou das terras estéreis e de como Deméter se cobrira de luto pela filha. Disse que ela não deixaria nada medrar até que Perséfone voltasse.

- O povo morrerá de fome se ela não voltar logo, disse-lhe.

Quando Perséfone soube da visita de Hermes, chorou amargamente, porque, naquele mesmo dia, havia comido uma romã e engolido seis sementes, e lembrou-se de que quem houvesse comido no palácio de Hades não mais podeira voltar à Terra.

Mas Hades teve pena dela e disse:
- Vá, Perséfone, retorne à luz do sol. A lei, porém, deve ser obedecida: terá de voltar todos os anos e ficar comigo seis meses, porque foram seis as sementes que comeu. É só o que peço.


A alegria deu-lhe asas e, tão depressa como o próprio Hermes, Perséfone voou para a luz do sol.
Subitamente, as flores desabrocharam. Os pássaros formaram bandos e cantava; das árvores, nasceram folhas verdes e luzidias. Todos, grandes e pequenos, começaram a dizer, em sua própria linguagem:
- Sejamos felizes, pois Perséfone voltou! Perséfone voltou!


Deméter estava tão mergulhada em seu sofrimento que não atinou, de pronto, com aquelas vozes. Logo, porém, notou as grandes mudanças em redor e ficou confusa.
- Como pode a terra ser tão ingrata! Como pôde, em tão  pouco tempo, esquecer a minha doce Perséfone? disse Deméter.

Não demorou muito, entretanto, para se tornar radiante o seu rosto. Deméter voltou a ser a bondosa mãe Terra, porque tinha de novo, nos braços, a bem-amada filha.

Ao saber que Perséfone só poderia ficar em sua companhia metade do ano, trouxe-lhe os mais ricos tesouros. Sempre que Perséfone chegava, o mundo se enchia de beleza e alegria.

Quando ela se ia, Deméter cobria, cuidadosamente, os rios, os lagos, e estendia um leve lençol sobre a Terra adormecida...

* Perséfone: nome grego de Prosérpina.
** Deméter: nome grego de Ceres, a deusa da agricultura.
*** Hades: nome grego de Plutão, o rei dos infernos.
**** Apolo ou Febo: o deus-Sol.
***** Zeus: nome grego de Júpiter, o pai dos deuses.
****** Hermes: nome grego de Mercúrio, o mensageiro dos deuses.

domingo, 25 de março de 2012

Os Estatutos do Homem

             (Ato Institucional Permanente)
                                             Thiago de Mello


Artigo I: Fica decretado que agora vale a verdade,
             que agora vale a vida,
             e que de mãos dadas,
             trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II: Fica decretado que todos os dias da semana,
              inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
              têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III: Fica decretado que, a partir deste instante,
               haverá girassóis em todas as janelas,
               que os girassóis terão direito
               a abrir-se dentro da sombra;
               e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
               abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV: Fica decretado que o homem
               não precisará nunca mais
               duvidar do homem.
               Que o homem confiará no homem
               como a palmeira confia no vento,
               como o vento confia no ar,
               como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo Único: O homem confiará no homem
                           como um menino confia em outro menino.

Artigo V: Fica decretado que os homens
               estão livres do jugo da mentira.
               Nunca mais será preciso usar
               a couraça do silêncio
               nem a armadura de palavras.
               O homem se sentará à mesa
               com seu olhar limpo
               porque a verdade passará a ser servida
               antes da sobremesa.

Artigo VI: Fica estabelecida, durante dez séculos,
               a prática sonhada pelo profeta Isaías,
               e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
               e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII: Por decreto irrevogável fica estabelecido
                o reinado permanente da justiça e da claridade,
                e a alegria será uma bandeira generosa
                para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII: Fica decretado que a maior dor
                 sempre foi e será sempre
                 não poder dar-se amor a quem se ama
                 e saber que é a água
                 que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX: Fica permitido que o pão de cada dia
               tenha no homem o sinal de seu suor.
               Mas que sobretudo tenha sempre
               o quente sabor da ternura.

Artigo X: Fica permitido a qualquer pessoa,
              a qualquer hora da vida,
              o uso do traje branco.

Artigo XI: Fica decretado, por definição,
               que o homem é um animal que ama
               e que por isso é belo,
               muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII: Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
                Tudo será permitido,
                inclusive brincar com os rinocerontes
                e caminhar pelas tardes
                com um imensa begônia na lapela. 

Parágrafo Único: Só uma coisa fica proibida:
                           amar sem amor.

Artigo XIII: Fica decretado que o dinheiro
                 não poderá nunca mais comprar
                 o sol das manhas vindouras.
                 Expulso do grande baú do medo,
                 o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
                 para defender o direito de cantar
                 e a festa do dia que chegou.

Artigo Final: Fica proibido o uso da palavra liberdade,
                    a qual será suprimida dos dicionários
                    e do pântano enganoso das bocas.
                    A partir deste instante
                    a liberdade será algo vivo e transparente
                    como um fogo ou um rio,
                    e a sua morada será sempre
                    o coração do homem.