sexta-feira, 28 de outubro de 2022

História do Brasil

    E o Senhor disse:

    Agora criarei o mais estranho de todos os países. E ele será verde-amarelo e atenderá no concerto das nações pelo nome de Brasil. E ele nunca saberá com certeza o motivo de seu nome. Pois com o Brasil pretendo mostrar aos homens que os caminhos do Senhor são desconhecidos.

    E erguerei do barro um poeta que dirá: "O Brasil é uma república federativa com muitas árvores e gente dizendo adeus". E o Brasil viverá do improviso, que não é o vento do espírito, mas a mesmo força que dormia no caos, antes que a Terra fosse criada.

    E darei a esse povo um rei português, ocioso, gordo, incapaz e grande comedor de frangos, mas que irá criar as primeiras coisas importantes, a fim de que o povo do Brasil se acostume a não entender mais nada. E ao filho desse rei caberão duas missões: primeiro, inventar a juventude transviada; segundo, separar Portugal do Brasil. Depois disso, farei com que ele embarque para Portugal, onde será rei dos portugueses. Pois é preciso que o povo do Brasil receba com naturalidade aquilo que não tem explicação. Aí, eis que vou criar um terceiro rei. E esse deverá escrever os piores sonetos da língua portuguesa. E amará as línguas mortas. A fim de que se acrescente a confusão. Então, em uma transparente manhã de novembro, criarei de repente a república federativa com muitas árvores e gente dizendo adeus. A meu comando, um soldado triste bradará: "Viva a República!" E a república será vivada. E os barões serão os mais fiéis republicanos. E os republicanos derramarão lágrimas e escreverão muitas cartas com saudade do rei que escrevia sonetos. E a confusão será maior. E o brasileiro será o irmão do vento, que ninguém entende.

    E a esse povo darei o açúcar. Depois, por tortos caminhos, farei trazer do outro lado do mundo o café. Pois está escrito que o Brasil deve viver da mistura do branco e do preto, e da mistura do doce com o amargo, para que os escribas possam chamar esse país de terra dos contrastes.

    E criarei para o Brasil oradores eloquentes; a estes darei a ambição, mas não a sabedoria; e criarei uns poucos homens sábios; e a estes não darei nem a ambição, nem a eloquência. A fim de que as discussões se prolonguem e que o povo se perca pela boca dos oradores.

    E sobre grandes veios de ouro levantarei montanhas de ferro, mas o povo viverá da cultura da mandioca; e as bananeiras agitarão suas crinas nas tardes morosas dos quintais; e esse país imenso e despovoado só derramará sangue por causa de terras; e o brasileiro não saberá se Lampião foi um flagelo de Deus ou um ótimo sujeito, porque não entende a mais velha das contendas, que é a briga pela terra.

    E o povo amará a cachaça e o pastel; e inventará a cuíca e o samba; e bebendo cachaça, comendo pastel, tocando cuíca e sambando esquecerá que o Brasil é uma pobre república federativa com muitas árvores e gente dizendo adeus.

    Então, eis que, em uma ilha frígida, a fim de que os corpos se aqueçam, inventarei o futebol. E o tórrido Brasil amará o futebol acima de pai e de mãe. Então criarei a Copa do Mundo. E um dia o Brasil perderá esse galardão na última batalha, dentro de seus próprios muros, quando lhe bastaria o empate. Quatro anos depois caberá aos comunistas eliminar os brasileiros para que se aumente a confusão. E para que se aumente a confusão criarei uma comissão técnica que não entenda nada de futebol. E esta será bicampeã do mundo. E o tórrido Brasil, chorando de alegria, beberá muita cachaça, e comerá muito pastel, e tocará muita cuíca. Aí, eis que farei o Brasil perder o Tri, e a Taça, e a Alegria para Portugal. Pois assim está escrito

    Para que o brasileiro continue na sua confusão, irmão do vento, que ninguém entende.


Crônica de Paulo Mendes Campos retirada do livro As Eternas Coincidências, da série Literatura em minha casa - Crônica & Conto - Volume 2, Bertand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Futebol de Veteranos

    O espetáculo começa quando eles chegam, aí por volta de duas e meia das tardes de sábado. O campo tem pouco menos de 50 metros de comprimento, cabendo seis de cada lado, um louco no gol, dois zagueiros, dois na frente e um armando pelo meio. Olhos luzindo, eles calçam os sapatos de tênis ou basquete. Três ou quatro senhores, sempre suspeitos, confabulam a um canto, escalando, conforme a frequência, três ou quatro times para o torneio vesperal.

    - O meu está uma droga.

    - O seu, perto do meu, é um escrete.

    - E o meu! Nelson e Mauricinho juntos! Essa não!

    - O meu está mais ou menos, mas só tem jogador de defesa.

    Logo depois do par-ou-ímpar é preciso recondicionar os times. Todos estão descontentes ou fingem descontentamento, até que um deles se abraça com a bola e, gesticulando com o outro braço, brada:

    - Vamos começar, gente! Anda escurecendo cedo.

    Todos resmungam, mas acabam concordando, e há uma aparência de calma. Antes que se dê a saída, são indispensáveis mais duas brigas: a primeira, dentro de cada time, pois ninguém quer começar no gol; a segunda, envolvendo todos, é sobre o juiz.

    - Se o Zé Catimba apitar, eu não jogo.

    - Por quê?

    - Porque ele tem cisma comigo.

    - O Lúcio não veio hoje?

    - Está em casa tocando trombone.

    - Apita você, Armandinho.

    - Nem por vinte mil cruzeiros.

    - E você, Tavares?

    - Só apito se ninguém reclamar.

    - Prometo que do meu lado ninguém reclama.

    - Eu nunca reclamo mesmo.

    Prometem, mas não cumprem. Todos reclamam de tudo e de todos, do juiz que não viu mão, do adversário que cometeu obstrução, você que me trancou pelas costas, do companheiro que não passou, essa nem o Garrincha tenta fazer, do goleiro que papou um frango.

    - Você não viu que eu não consegui matar a bola?

    - Vi: você está sem revólver.

    As partidas se sucedem, a gana de vencer é feroz, o suor escorre, os corações disparam, há cruentos suspiros de fadiga, as mãos esfregam os rins quando a bola vai fora, as botinadas vão e vêm, recíprocas. Mas não esmorecem, é preciso não esmorecer, pois aqui ninguém mais é criança.

    Mas aqui somos todos uma crianças, crianças de 30 e poucos, de 30 e muitos, de 40, os mais velhos aí pelos 50. Crianças numa pelado crepuscular, que pode ser a última de nossa vida, o cemitério, a orfandade de nossos filhos. Mas é por isso mesmo que não podemos perder, é por isso mesmo que fazemos das tripas coração, é atrás duma nesga da infância que andamos a correr, é a maturidade irremediável que estamos tentando driblar, é contra o tempo que perseguimos o gol.

    Visto de fora, sobretudo por uma pessoa que já arqueje ao correr para pegar o ônibus, nosso espetáculo pode ser triste e ridículo. De dentro, dou minha palavra de honra, trata-se duma vivência bonita e alegre. Um viciado em leituras psicanalíticas diria que estamos querendo provar a nós mesmo que... ainda não ficamos velhos. E diria a verdade. Ignorando no entanto que, de antemão, já sabemos derrotados; aí reside uma rejubilação de músculos e espírito que vai tangenciar a própria dramaticidade do tempo e a incapacidade humana de revertê-lo.

    Mais tarde, tomando uma cerveja, os cavalões estão vermelhos por fora e purificados por dentro. Pudicamente, um dirá que a pelada ajuda a manter a forma; outro alega que deseja perder um pouco de peso; outro cinicamente acha que não há nada como esse exercício para fazer boca para uma cervejinha estupidamente gelada.

    Mas no fundo, em segredo, sabem todos que a pelada é boa porque dar um chute bonito faz um bem extraordinário à alma do homem. Sobretudo se o homem é brasileiro.


Crônica de Paulo Mendes Campos retirado do livro As Eternas Coincidências, da série Literatura em minha casa - Conto & Crônica - Volume 2, Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

domingo, 23 de outubro de 2022

Perfeição

 Vamos celebrar a estupidez humana

A estupidez de todas as nações nações 

O meu país e sua corja de assassinos

Covardes, estupradores e ladrões

Vamos celebrar a estupidez do povo

Nossa polícia e televisão

Vamos celebrar nosso governo

E nosso Estado, que não é Nação

Celebrar a juventude sem escola

As crianças mortas

Celebrar nossa desunião

sábado, 22 de outubro de 2022

Buscando e Encontrando

A busca de Deus deve constituir uma ação constante e motivadora para qualquer existência feliz.

As definições a respeito d'Ele, mesmo quando satisfaçam ao intelecto, não conseguem atender às imensas necessidades do coração.

Ao mesmo tempo, a interpretação racional da Sua Grandeza apenas oferece dimensão para que o homem compreenda a sua infinita limitação em torno da Transcendente Realidade, impossível de ser globalizada em uma síntese apreensível.

Quando se pretende explicar o Universo sem a necessidade de Deus, utilizando-se de equações que remontam à grande explosão, que seria a sua causa inicial, somente se constatam efeitos, porquanto as forças aglutinadoras das moléculas têm as suas origens no insondável do tempo preexistente.

Sem que se apele para a Razão Incausada, as fórmulas para solucionar o enigma do infinito perdem as potências, se não apoiadas na ação consciente de um Criador.

É humano e natural que a mente deseje interpretar o Incognoscível.

As tentativas, no entanto, têm resultado, somente, na apreensão dos limites, que se ampliam ante a percepção do que é Ilimitado.

Todavia, quando se sente Deus, sem necessidade de O verbalizar intelectualmente, de O exteriorizar, basta para facultar o preenchimento do vazio interior.

Conceitos há, uns que O Personalizam e outros que O liberam de toda e qualquer possibilidade de entendimento. As suas variações são inumeráveis, de acordo com cada povo, cultura e mente.

Não obstante, seja qual for a forma para externar a ideia, isso, na prática, deveria alterar em profundidade os indivíduos, sua conduta, sua vida.

Deus se encontra insito no ser humano, tanto quanto onipresente em todas as coisas. 

Jazendo como uma força encarregada de fomentar a vida, aguarda que a vontade consciente do homem desenvolva as potencialidades que ali estão, exteriorizando-as, a fim de plenificar a criatura.

Vibrando no âmago do Espírito, é a força propulsora graças à qual este atinge a sua perfeição relativa

Não cesses de buscar Deus, conscientizando-te das responsabilidades que advirão após o encontro.

Filho amado, dispões de todos os recursos para conseguires a meta sublime.

Esforçando-te, conseguirás desvelá-lO nos sentimentos profundos e apresentá-lO através de atos compatíveis com a felicidade que te dominará.

Enriquecido pelo Seu amor, distenderás a ternura e a bondade por todos quantos te cerquem, repetindo o júbilo que te domina, assim  aquecendo as vidas com a esperança.

Deus te aguarda e enseja-te a oportunidade de entendê-lO e senti-lO.

Não te detenhas na busca, prosseguindo de ânimo robusto.

Buscá-lO, já é uma forma de encontrá-lO


Retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2014.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Ideal de Moça

    Sua mãe tinha sido muito pobrezinha - cozinheira - veterana da cozinha do Dr. Pacheco. Fogão e tacho, toda sorte de comida, toda espécie de doces, jantares e almoços e aniversários e comidas "foradoras" e hóspedes. A roda viva da cozinha. Nada de ajantarados, como hoje, e cozinheiras na folga. Essas coisas só vieram, muito mais tarde, quando Sá Riqueta já tinha morrido. Tudo ela fazia pela sua filha Totinha, que já estava na escola. Aí, quando ficou doente, ruim mesmo, pediu à comadre, mulher do Dr. Pacheco, madrinha da menina, que tomasse conta da afilhada e não a tirasse da escola.

    Sá Riqueta teve seu enterro de pobre; gente pobre acompanhando; sepultura rasa no cemitério. Mas a madrinha foi boa e passou a menina para o Colégio e ali conseguiu anos e mais anos.

    Moça já, voltou com sua pouca sabedoria para casa dos padrinhos. Foi aprender serviço de casa, à espera do casamento. Tinha seu fiozinho de voz bem aproveitado pelo colégio. Aprendeu um pouco de música e os cânticos da Capela. Fazia parte do coro. Deixando o colégio, passou a cantar no coro da Igreja, sempre pronta, quieta, modesta Filha de Maria, com seu vestido branco, sua fita azul, seu livro e seu terço branco. Efetiva no coro, na mesa da comunhão. Nenhuma saliência de sua pessoa - os anos de colégio deram-lhe um jeito de noviça, com seu vestido largo, suas mangas compridas.

    Veio o casamento, um dia um olhou para ela: precisava de uma mulher. Falou com o padrinho. Esse perguntou se ela queria casar. Ela disse que sim, sem saber, sem conhecer quase o homem. Aquela vida presa, sujeita... Teria sua casa, pensou, o marido... Seria mulher casada. E casou.

    Teve filhos e sem mais nem menos o marido a deixou. Trabalhou, pelejou, lavou roupa; limpava tripa, barrigada no rio. Ia vivendo, desejando fazer, como fez a Mãe, dar leitura aos filhos. Sempre humilde, pequenina, ocupando pouco lugar na vida da cidadezinha. Já não estava no coro. Só moças ali. Nunca pediu nada. Nunca reclamou. Só aquele desejo brando, constante, de que os filhos tivessem leitura e aquela sombra do rio para casa, da casa para o rio, com sua bacia de roupa na porta da casa. O ferro de brasa, passando a roupa lavada.

    Passava sempre, pela sua casa, cumprimentava, parava, puxava conversa. Conversinha curta, que ela fazia sem largar o ferro. Um dia entrei. Sentei. E quis conhecer aquele espírito fechado, naquela aparência igual, conformada todos os dias. Não haveria ali uma aspiração, um plano, um desejo, um estímulo, uma queixa, uma esperança?

    Dei tempo e dei linha.

    Um dia, conversa vai, conversa vem, perguntei:

    - A senhora é bem feliz da vida, tão conformada, trabalhando sempre. Tem filhas já na escola e vai realizando seus desejos...

    Ela suspendeu o ferro.

    - Eu só tive um desejo na vida, que nunca foi realizado.

    - Qual foi, Totinha? Me conte esse segredo.

    - Eu conto, mas a senhora não vai rir de mim.

    - Não, de jeito nenhum.

    - Meu maior desejo foi quando eu era moça nova, Filha de Maria, e cantava no coro da Igreja. A senhora não queria saber que vontade eu tinha de ter um desmaio na Igreja e descer do coro carregada pelos colegas... A coisa que eu achei mais bonita foi um dia que uma das moças teve vertigem e desceu carregada de lá...

    - Mas você podia inventar - disse eu.

    - Não, eu não tinha coragem de mentir. Eu queria era ter um desmaio de verdade...


Crônica de Cora Coralina retirada do livro O Tesouro da Casa Velha, Global Editora, seleção de Dalila Teles Veras, São Paulo, 1989.

domingo, 16 de outubro de 2022

Dois mais dois

    O Rodrigo não entendia por que precisava aprender matemática, já que a sua minicalculadora faria todas as contas por ele, pelo resto da vida, e então a professora resolveu contar uma história. Contou a história do Supercomputador.

    Um dia, disse a professora, todos os computadores do mundo serão unificados num único sistema, e o centro do sistema será em alguma cidade do Japão. Todas as casas do mundo, todos os lugares do mundo terão terminais do Supercomputador. As pessoas usarão o Supercomputador para compras, para recados, para reservas de avião, para consultas sentimentais. Para tudo.

    Ninguém mais precisará de relógios individuais, de livros ou de calculadoras portáteis. Não precisará mais nem estudar. Tudo que alguém quiser saber sobre qualquer coisa estará na memória do Supercomputador, ao alcance de qualquer um. Em milésimos de segundo a resposta à consulta estará na tela mais próxima. E haverá bilhões de telas espalhadas por onde o homem estiver, desde lavatórios públicos até estações espaciais. Bastará ao homem apertar um botão para ter a informação que quiser.

    Um dia um garoto perguntará ao pai:

    - Pai, quanto é dois mais dois?

    - Não pergunte a mim - dirá o pai -, pergunte a Ele.

    E o garoto digitará os botões apropriados e num milésimo de segundo a resposta aparecerá na tela. E então o garoto dirá:

    - Como é que sei que a resposta é certa?

    - Porque Ele disse que é certa - responderá o pai.

    - E se Ele estiver errado?

    - Ele nunca erra.

    - Mas se estiver?

    - Sempre podemos contar nos dedos.

    - O quê?

    - Contar nos dedos, como faziam os antigos. Levante dois dedos. Agora mais dois. Viu? Um, dois, três, quatro. O Computador está certo.

    - Mas, pai, e 362 vezes 17? Não dá para contar nos dedos. A não ser reunindo muita gente e usando os dedos das mãos e dos pés. Como saber se a resposta d'Ele está certa?

        Aí o pai suspirou e disse:

    - Jamais saberemos...

    O Rodrigo gostou da história, mas disse que, quando ninguém mais soubesse matemática e não pudesse pôr o Computador à prova, então, não faria diferença se o Computador estava certo ou não, já que a sua resposta seria a única disponível e, portanto, a certa, mesmo que estivesse errada e...

        Aí foi a vez de a professora suspirar.


Conto de Luis Fernando Veríssimo retirado do livro O Santinho, da série Literatura em minha casa, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.

O Diamante

    Um dia, Maria chegou em casa da escola muito triste.

    - O que foi? - perguntou a mãe de Maria.

    Mas Maria nem quis conversa. Foi direto para o seu quarto, pegou o seu Snoopy e se atirou na cama, onde ficou deitada, emburrada.

    A mãe de Maria foi ver se Maria estava com febre. Não estava. Perguntou se Maria estava sentindo alguma coisa. Não estava. Perguntou se estava com fome. Não estava. Perguntou o que era, então.

    - Nada - disse Maria.

    A mãe resolveu não insistir. Deixou Maria deitada na cama, abraçada com o seu Snoopy, emburrada. Quando o pai de Maria chegou em casa do trabalho, a mãe de Maria, avisou:

    - Melhor nem falar com ela...

    Maria estava com cara de poucos amigos. Pior. Estava com cara de amigo nenhum.

    Na mesa do jantar, Maria de repente falou:

    - Eu não valo nada.

    O pai de Maria disse:

    - Em primeiro lugar, não se diz "eu não valo nada". É "eu não valho nada". Em segundo lugar, não é verdade. Você valhe muito. Quer dizer, vale muito.

    - Não valho.

    - Mas o que é isso? - disse a mãe de Maria. - Você é a nossa filha querida. Todos gostam de você. A mamãe, o papai, a vovó, os tios, as tias. Para nós, você é uma preciosidade.

    Mas Maria não se convenceu. Disse que era igual a mil outras pessoas. A milhões de outras pessoas.

    - Só na minha aula tem sete Marias!

    - Querida... - começou a dizer a mãe. Mas o pai interrompeu.

    - Maria - disse o pai -, você sabe por que um diamante vale tanto dinheiro?

    - Porque é bonito.

    - Porque é raro. Um pedaço de vidro também é bonito. Mas o vidro se encontra em toda parte. Um diamante é difícil de encontrar. Quanto mais rara é uma coisa, mais ela vale. Você sabe por que o ouro vale tanto?

    - Por quê?

    - Porque tem pouquíssimo ouro no mundo. Se o ouro fosse como areia, a gente ia caminhar no ouro, ia rolar no ouro, depois ia chegar em casa e lavar o ouro do corpo para não ficar suja. Agora, imagina se em todo o mundo só existisse uma pepita de ouro.

    - Ia ser a coisa mais valiosa do mundo.

    - Pois é. E em todo o mundo só existe uma Maria.

    - Só na minha sala são sete.

    - Mas são outras Marias.

    - São iguais a min. Dois olhos, um nariz..

    - Mas esta pintinha aqui nenhuma delas tem.

    - É...

    - Você já se deu conta de que em todo o mundo só existe uma você?

    - Mas, pai...

    - Só uma. Você é uma raridade. Podem existir outras parecidas. Mas você, você mesma, só existe uma. Se algum dia aparecer outra você na sua frente, você pode dizer: é falsa.

    - Então eu sou a coisa mais valiosa do mundo.

    - Olha, você deve estar valendo aí uns três trilhões...

    Naquela noite a mãe de Maria passou perto do quarto e ouviu Maria falando com o Snoopy:

    - Sabe um diamante?


Conto de Luis Fernando Veríssimo retirado do livro O Santinho, da série Literatura em minha casa, Objetiva Editora, Rio de Janeiro, 2001.

sábado, 15 de outubro de 2022

Deus e o Homem

Só há um Deus, Único e Verdadeiro, Causa Incausada do Universo.

Sustenta a vida e se expressa em toda parte, não se humanizando jamais.

A condição de humanidade é via de ascese aos Cimos Gloriosos, de que Ele não necessita.

Inacessível ao entendimento da criatura, por ser o Todo que jamais se fragmenta, é o Incomparável Pensamento gerador de tudo.

Onipresente e onipotente, encontra-se em toda parte qual força aglutinadora de moléculas, e qualquer tentativa de compreendê-lO, como de defini-lO, representa uma forma de limitá-lO, tirando-Lhe a grandeza inimaginável.

Por isso, o culto que Lhe devemos há que ser em espírito e verdade, respeito e amor, não pronunciando o Seu nome vãmente, mesmo a pretexto de fixar o pensamento na Sua realidade.

Notícias mitológicas afirmam que aquele que desencarna, chamando-Lhe pelo nome, emancipa-se do jugo das reencarnações...

Fantasias religiosas asseveram que morrer, neste ou naquele lugar sagrado, é suficiente para ganhar-Lhe a graça e ser perpetuamente feliz...

Se assim fora, quão grave seria a Sua injustiça em relação aos que se tornam vítimas de paralisia e demência, ou se encontram em pontos distantes dos sítios privilegiados por Ele ali colocados!

O Amor transcendente de Deus alcança igualitariamente todas as Suas criaturas, de alguma forma manifestação d'Ele próprio.

Algumas culturas orientais, ricas de lenda e ingenuidade, informam que periodicamente Deus toma forma humana para ajudar os homens a crescerem, a reformularem os hábitos doentios, a moralizarem-se, como se fora necessário, para tanto, medida simples de tal porte.

Seus embaixadores aparecem e ressurgem em todos os lugares, seja Krishna ou Buda, Moisés ou Zoroastro, Lao-tsé, Hermes Trismegisto ou Maomé, Sócrates ou Agostinho, Lutero ou Allan Kardec, entre outros inumeráveis... Todavia, superando-os em pureza e abnegação, veio Jesus de Nazaré ensiná-lO os homens e vivê-lO como jamais qualquer um o houvera feito ou venha a fazê-lo.

Não te impressiones com aqueles que se dizem manifestação divina, o próprio Deus em carne e osso nas sombras da Terra...

Respeita-os como missionários que são, emocional e culturalmente próprios para os países onde renascem com objetivos nobres e superiores.

Ouve-lhes as mensagens, no entanto, observa se unem as palavras aos atos, se são simples, bons e misericordiosos, tolerantes e caridosos, abnegados até a morte e pacientes, demonstrando sua sabedoria e evolução.

Sê grato a Deus por colocar-te próximo a esses Espíritos missionários.

Jamais os adores ou anules o teu pensamento sob a indução deles.

Raciocina e logica.

Teus irmãos, mais adiantados que são, convidam-te à reflexão e ao progresso.

Tem em conta que, acima de todos eles, conheces Jesus, que se sacrificou e apenas te pede que ames e ames, fazendo da tua vida um Evangelho de feitos para o teu e o bem da Humanidade da qual és membro.


Retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Vitor e seu irmão

    Não era prevenção. A professora tinha o cuidado de tratar todos os seus alunos da mesmo maneira. Pelo menos, se esforçava para isto. Mas, como Vitor, ela sempre estava com um pé atrás. O Vitinho era um caso à parte.

    - Qual é a população do Brasil?

    Um aluno levantou a mão e leu a resposta que estava no livro.

    - Cento e vinte milhões.

    O Vitor levantou a mão. A professora sentiu um vazio na barriga. Lá vinha ele.

    - O que é, Vitinho?

    - Cento e vinte e um milhões.

    - Por que, Vitinho?

    - Minha mãe teve um filho esta semana.

    Uma risadinha correu pela sala, mas o Vitor ficou sério.

    Estava sempre sério.

    - Quantos filhos a sua mãe teve, Vitor?

    - Até agora?

    - Não, desta vez.

    - Um. Mas dos grandes.

    Outra risadinha, como marola na superfície de um lago.

    - Então não são cento e vinte e um milhões. São cento e vinte milhões e um.

    E a professora escreveu o número no quadro-negro.

    Depois apontou para o um no fim do número e disse:

    - Este aqui é o seu irmãozinho, Vitor.

    Depois, antes mesmo do Vitor falar, ela se deu conta de como aquele um parecia solitário, no fim de tantos zeros.

    - Coitadinho do meu ermão.

    - Irmão, Vitor. E é claro que este número não é exato. Tem gente nascendo e morrendo a todo momento...

    - Lá no hospital tava cheio de crianças. Será que já contaram?

    - Não sei, Vitor, eu...

    - Bota mais uns dois ou três pra acompanhá meu ermão, tia.

    Ela teve que rir junto com os outros.

    Você, hein, Vitinho? Com você eu tenho que ficar sempre com um pé atrás.

    - Cuidado pra não caí pra frente, tia.

    - Chega, Vitor!

    Outro caso era o da Alicinha, que se espantava com tudo. Era só a professora dizer, por exemplo, que a capital do Brasil era Brasília e a Alicinha arregalava os olhos e exclamava:

    - Brasília?!

    - É, Alice. Por quê?

    - Nada.

    Depois ficava com aquela cara de que só ela era certa no mundo de loucos, onde se viu a capital do Brasil ser Brasília, mas era melhor deixar pra lá.

    Um dia a professora disse que o Brasil tinha 8.000 km de costa marinha e ficou esperando a reação da Alicinha.

    Nada.

    - O Brasil é banhado pelo Oceano Atlântico.

    - Atlântico?!

- É, Alice.

- Desde quando?

- Desde sempre, Alice.

- Eu, hein?

"Eu, hein" era mortal. "Eu, hein" era de matar, mas a professora precisava se controlar. Entre o Vitinho e a Alicinha ainda acabaria louca.


Conto retirado do livro O Santinho, de Luis Fernando Veríssimo, da série Literatura em minha casa, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Santinho

    Lembro-me com clareza de todas as minhas professoras, mas me lembro de uma em particular. Ela se chamava Dona Ilka. Curioso: por que escrevi "Dona Ilka" e não Ilka? Talvez por medo de que ela se materializasse aqui do meu lado e exigisse o "Dona", onde se viu tratar a professora pelo primeiro nome, menino? No meu tempo ainda não se usava o "tia". Elas podiam ser boas e até maternais, mas decididamente não eram nossas tias. A Dona Ilka não era maternal. Era uma mulher pequena com um perfil de passarinho. Um pequeno passarinho loiro. E uma fera.

    Eu era um aluno "bem-comportado". Era um vagabundo, não aprendia nada, vivia distraído. Mas comportamento, 10. Por isto até hoje faço verdadeiras faxinas na memória, procurando embaixo de tudo e em todos os nichos a razão de ter sido, um dia, castigado pela Dona Ilka. Alguma eu devo ter feito, mas não consigo lembrar o quê. O fato é que fui  posto de castigo. Que consistia em ficar de pé num canto da sala de aula, com a cara virada para a parede. (Isto tudo, já dá para ver, foi mais ou menos lá pela Idade Média.) Mas o que eu nunca esqueci foi a Dona Ilka ter me chamado de "santinho do pau oco".

    Ser bem-comportado em aula não era uma decisão minha nem era nada de que me orgulhasse. Era só o meu temperamento. Mas a frase terrível da Dona Ilka sugeria que a minha boa conduta era uma simulação. Eu era um falso. Um santo falsificado! Não vou dizer que todas as minha dúvidas existenciais datem do epíteto da Dona Ilka, mas, depois disso, pelo resto da vida, não foram poucas as vezes em que um passarinho imaginário com perfil de professora pousou no meu ombro e me chamou de fingido. Os santinhos do pau oco passam a vida se questionando.

    Já outra professora quase destruiu para sempre  qualquer pretensão minha à originalidade literária. Era para fazer uma redação em aula sobre a ociosidade, e eu não tinha a menor ideia do que era ociosidade. Se a palavra fora mencionada em aula, tinha certamente sido num dos meus períodos de devaneio, em que o corpo ficava ali, mas a mente ia passear. E então, me achando formidável, fiz uma redação inteira sobre um aluno que precisa fazer uma redação sobre a ociosidade sem saber o que é isso, sua agonia e finalmente sua decisão de fazer uma redação sobre a ociosidade, etc. A professora chamou a atenção de toda a classe para a minha redação. Eu era um exemplo de quem acha que com esperteza pode-se deixar de estudar e por isto estava ganhando um zero exemplar. Só faltou me chamar de original do pau oco.

    Enfim, sobrevivi. No ginásio, todos os professores eram homens, mas não lembro de nenhuma marca que algum deles tenha deixado. As relações com as nossas pseudo-mães, no primário, eram muito mais profundas. As duas histórias que eu contei não têm nenhuma importância. Mas olha as cicatrizes.


Conto de Luis Fernando Veríssimo retirado do livro O Santinho, da série Literatura em minha casa, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.