sábado, 13 de janeiro de 2024

Vassoura atrás da porta

Uma das fórmulas aconselhadas para abreviar as visitas intermináveis é colocar a vassoura atrás da porta. Com a palha para cima e o cabo para baixo, ao inverso da posição em que é usada.

As informações vêm de todo o Brasil, porque ninguém ignora essa curiosa técnica com que os importunos são despedidos, ou obrigados a sair por uma força de impulsão mágica e livrar as vítimas de uma presença monótona e sonolenta.

Naturalmente os indígenas e os escravos africanos não conheceriam esse processo aliviador dos amigos insensíveis ao valor do tempo e menos ainda atendendo ao trabalho dos pacientes visitados.

Tivemos a vassoura de Portugal e com ela o complexo supersticioso ainda mantido. Expedir as visitas de permanência indefinida é uma dessas  funções simbólicas. Não há quem desconheça essa aplicação da vassoura em qualquer recante do Brasil.

Negros e amerabas varriam suas moradas, mas não sabemos se possuíam crendices decorrentes. No Brasil houve, ou ainda há no interior do Maranhão, uma Nossa Senhora da Vassoura.

Em Portugal verifica-se o mesmo hábito e de lá recebemos a crença em que muita gente acredita, além e aquém Atlântico.

Quando alguém encontrar uma vassoura atrás da porta, convença-se de estar presenciando um ato supersticioso com mais de vinte séculos de existência. J.A. Hild, estudando o deus Silvanus, e M.L. Barré, analisando as lucernas de Pompeia, permitiram que tomasse faro e rumo para identificação do costume, através da quarta dimensão. Identificar a origem.

Silvanus, divindade campestre na campanha de Roma, confundia-se com Faunus, para introduzir-se nas moradas campesinas e praticar pequenos e grandes malefícios e diabruras desagradáveis, como o nosso Saci-Pererê. Para afastar Silvanus, informa Santo Agostinho, três deuses rurais socorriam família ameaçada. Cada uma dessas entidades compareceria conduzindo um atributo de sua função profissional. Bastaria o dono da casa dispor em lugar bem visível os três objetos representativos dos três deuses, para Silvanus fugir e não voltar, tentando as proezas malandras. Esses objetos eram um machado, uma mão de pilão e uma vassoura. Como Silvanus vivia a vida selvagem, primitiva e rústica, déteste ces outils hostiles à son empire*. Pilão, machado e vassoura são utensílios denunciadores de uma organização social regular, normal e acima dos costumes errantes de Silvanus. Era obrigado a deixar esse clima, bem acima e irrespirável para suas narinas de bosque umbroso e roçaria deserta. Restava-lhe apenas a fuga, afirma Hild. M.L. Barré, citando esse Silvano doméstico, autor de visões noturnas, aterrador de crianças, "et l'on croyait paralyser l'influence funeste de cette divinité en mettant un balai en travers de la porte de la maison"**. Paul Sébillot registra a vassoura atrás da porta, atravessada e sempre invertida, espavorindo as bruxas na Baviera, Hesse, França, etc. Essas bruxas tinham, coitadas, recebido a herança romana de Silvanus.

Hild e Barré morreram, sem saber da existência dessa vassoura supersticiosa no Brasil contemporâneo.

Mas a origem, até prova expressa e convincente em contrário, é essa que tomei a liberdade de expor...


* odeia essas ferramentas hostis à seu Império.

** e acreditava-se que paralisava a influência nociva dessa divindade ao colocar ao colocar uma vassoura na porta da casa.


Texto de Luís da Câmara Cascudo retirado do livro "Coisas que o povo diz", Global Editora, São Paulo, 2009.

Modo de Fazer (2)

 "De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus." - Paulo. (FILIPENSES, 2:5.)


Todos fazem alguma coisa na vida humana, mas raros não voltam à carne para desfazer quanto fizeram.

Ainda mesmo a criatura ociosa, que passou o tempo entre a inutilidade e a preguiça, é constrangido a tornar à luta, a fim de desintegrar a rede de inércia que teceu ao redor de si mesma.

Somente constrói, sem necessidade de reparação ou corrigenda, aquele que se inspira no padrão de Jesus para criar o bem.

Fazer algo em Cristo é fazer sempre o melhor para todos:

Sem expectativa de remuneração.

Sem exigências.

Sem mostrar-se.

Sem exibir superioridade.

Sem tributos de reconhecimento.

Sem perturbações.

Em todos os passos do Divino Mestre, vemo-lo na ação incessante, em favor do indivíduo e da coletividade, sem prender-se.

Da carpintaria de Nazaré à cruz de Jerusalém, passa fazendo o bem, sem outra paga além da alegria de estar executando a Vontade do Pai.

Exalta o vintém da viúva e louva a fortuna de Zaqueu, com a mesma serenidade.

Conversa amorosamente com algumas criancinhas e multiplica o pão para milhares de pessoas, sem alterar-se.

Reergue Lázaro do sepulcro e caminha para o cárcere, com a atenção centralizada nos Desígnios Celestes.

Não te esqueças de agir para a felicidade comum, na linha infinita dos teus dias e das tuas horas. Todavia, para que a ilusão te não imponha o fel do desencanto ou da soledade, ajuda a todos, indistintamente, conversando, acima de tudo, a glória de ser útil, "de modo que haja em nós o mesmo sentimento que vive em Jesus-Cristo".


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

A Miséria, pela mão da miserável

 Carolina de Jesus foi a primeira autora a contar como era a favela sob o ponto de vista de quem vivia nela


Depois de passar uma temporada morando na rua, com três filhos a tiracolo - o mais novo ainda bebê - a mineira Carolina Maria de Jesus conseguiu um teto para a família. Era um barracão de madeira às margens do Rio Tietê, na zona norte de São Paulo. Atrás da casa havia um lixão, onde um frigorífico jogava carne com creolina, para evitar que alguém comesse. Em dia de chuva forte, a lama do rio avançava para dentro da casa, junto com ratos, dejetos e todo tipo de lixo. Carolina gostava de tudo limpo. Vaidosa, criava os próprios colares e brincos, mas a ocupação de catadora de papel fazia com que andasse maltrapilha e suada pelas ruas, com um saco nas costas. O dinheiro mal dava para a comida dos filhos, que não tinham pai. Um dia, cansada, começou a escrever tudo que lhe acontecia.

Assim nasceu Quarto de Despejo, publicado em 1960, a partir de cadernos preenchidos com os "desabafos" de Carolina. Os registros vão de 15 de julho de 1955 a 1º de janeiro de 1960, época em que era uma das 50 mil moradores da Favela do Canindé, onde hoje está o Estádio da Portuguesa.

Aos 46 anos, ela revelou a miséria de sua comunidade, invisível para a sociedade. Carolina foi a primeira mulher negra, pobre, mãe solteira e semianalfabeta - ela não completou o primário - a publicar uma autobiografia. Onze mil exemplares foram  vendidos em uma semana. Seguiram-se duas reedições, traduções para 13 línguas e venda em mais de 40 países. Foi assunto de escritores renomados, como Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira.

Carolina era convidada para programas de auditório, palestras e até para almoçar na casa da tradicional família Matarazzo. "Saiu do lixo para o estrelato", diz o jornalista Audálio Dantas, que descobriu a autora e editou Quarto de Despejo, preservando o estilo de Carolina e até os erros ortográficos.

"Eu trabalhava como repórter e me ofereci a escrever sobre a favela que estava crescendo na bairro do Canindé", diz Dantas, que trabalhava para a Empresa Folha da Manhã, que hoje publica a Folha de São Paulo. "Disse ao chefe de reportagem que acompanharia, pelo tempo que fosse necessário, o dia a dia da comunidade". Dantas se embrenhou durante três dias nos labirintos dos barracos, "pisando o chão lamacento, sentindo o fedor das valas de esgoto, ouvindo lamentos, xingamentos e blasfêmias". Uma briga entre Carolina e um grupo de marmanjos, que insistiam em ocupar o parquinho das crianças, chamou a atenção do repórter. Ela queria que os grandalhões saíssem dali e, como não teve sucesso, gritou: "Vou botar o nome de vocês no meu livro". Aos poucos, os ocupantes foram se esgueirando por um canto com medo da ameaça. Todos sabiam que ela escrevia num caderno tudo o que acontecia na favela. "Ela olhou para mim e também disse que ia me colocar no livro dela. Estava mostrando que tinha força. E o livro era uma grande arma", diz o jornalista. Dantas quis saber o que ela estava escrevendo. Carolina então lhe mostrou mais de vinte cadernos guardados em seu barraco, num armário de caixotes.


POEMAS E TEATRO

Parte do material, primeiro, virou matéria de jornal, depois, numa edição mais cuidadosa e completa, Quarto de Despejo. Mas ela gostava mesmo  de fazer poemas, alguns inclusive já havia conseguido publicar em jornais, antes do encontro com o repórter. "Determinada, ela costumava andar pelas redações anunciando-se  poetisa", afirma Dantas.

Quando o livro foi publicado, muitos duvidaram que uma mulher com tão pouca instrução fosse capaz de escrever uma obra assim relevante e questionadora. Outros acharam impossível. O que não impediu que surgissem admiradores e defensores. O poeta Manuel Bandeira escreveu no jornal O Globo que o preconceito era a principal razão de as pessoas não acreditarem que uma "negra favelada" pudesse ter escrito Quarto de Despejo. Foi além, dizendo que ninguém seria capaz de "inventar" um texto como o de Carolina.

"Minha mãe era assediada na rua. Era uma loucura. Todo mundo queria falar com ela e pedir autógrafo", diz a filha caçula da autora, Vera Eunice de Jesus, de 61 anos, que hoje trabalha  como professora de Português na rede pública de São Paulo. "Durante três anos, minha mãe não parou em casa. Viajamos a convite para vários lugares do país. Minha mãe foi uma febre". Carolina carregava a filha caçula para qualquer lugar aonde fosse.

Em 1961, um ano depois do lançamento, o livro virou argumento para o teatro, e estreou com a atriz Ruth de Souza no papel de Carolina. No mesmo ano, a escritora lançou um disco de 12 faixas com sambas e marchinhas de sua autoria - Carolina Maria de Jesus, Cantando Suas Composições. A todo esse barulho seguiu-se o esquecimento. A escritora que havia chacoalhado o mundo literário morreu no anonimato e na pobreza, num sítio em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, em 1977. Os filhos tiveram de emprestar dinheiro de uma vizinha para comprar o caixão. "Ficamos com o modelo mais simples e barato, mas o dinheiro não deu para a coroa de flores. E, assim mesmo, demorei um ano para quitar o empréstimo", diz Vera Eunice.

No ano passado, os inúmeros tributos realizados pelo centenário de Carolina tinham um quê de resgate da autora. "As homenagens fizeram com que eu fosse melhor apresentada à Carolina escritora. Conhecia muito pouco a história da minha mãe", diz a filha, que participou da maioria dos eventos. Em um deles, Vera assistiu pela primeira vez o documentário alemão Favela: A Vida na pobreza, de 1971. O filme, dirigido por Christa Gottman-Elter, foi lançado em 1971.


PÉ NA ESTRADA

A escritora reproduziu uma visão de mundo inovadora, sem o filtro dos intelectuais, mas de forma pungente. Muito antes, em 1890, O Cortiço trouxe o retrato de uma vida de pobreza, com histórias de furtos e homossexualidade. O autor Aluísio Azevedo não pertencia ao mundo sobre o qual escreveu. Era formado em Artes Plásticas, e mais tarde virou cônsul.

Carolina compara a favela a um quarto de despejo, daí o nome do livro. "Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo". E sobre o centro de São Paulo: "Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita, com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo,(sic), almofadas de sitim (sic). Quando estou na favela, tenho a impressão que sou objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo". Na época do lançamento do livro, a TV era o mais novo meio de comunicação e os jornais traziam as notícias mais quentes. São Paulo tinha um terço da população atual, 4 milhões de habitantes, e surgia, sob a gestão de Adhemar de Barros - governador de 1947 a 1951, conhecido pelas grandes obras públicas e pelo mote "rouba, mas faz" -, como destino para migrantes que buscavam oportunidades de trabalho e uma vida melhor.

Carolina saiu de Sacramento (MG), aos 17 anos, a pé e decidida a nunca mais voltar. Vítima de preconceito e de abuso de autoridade, Carolina fora presa como suspeita de ter roubado dinheiro da igreja. Na delegacia apanhou da polícia. Não deu certo. Prenderam então sua mãe, que também foi surrada. As duas ficaram detidas até que o padre encontrou o dinheiro. Ao sair da cadeia, colocou o pé na estrada. Em cada cidade que chegava, arrumava um trabalho temporário, que rendia o dinheiro da comida, e pegava a estrada novamente. Isso se repetiu até alcançar o destino final, São Paulo.


DOMÉSTICA

"Quando minha mãe chegou a São Paulo, conseguiu uma vaga de empregada doméstica na casa de Euryclides de Jesus Zerbini (o cirurgião que em 1968 realizou o primeiro transplante de coração da América Latina)", conta a filha, Vera Eunice. O médico tinha uma excelente biblioteca. Carolina pediu e conseguiu permissão para ler as obras durante as folgas de fim de semana. Mas logo foi demitida. Vieram os namoros e quatro gestações indesejadas. O primeiro filho ela abortou. Era uma menina, que ganhou o nome de Carolina. Depois nasceram João José, José Carlos e Vera Eunice. A essa altura, Carolina já estava morando na rua. "Ninguém empregava mãe solteira. Então ela começou a catar papel para conseguir algum dinheiro", diz Vera. "Um dia, um político teve a ideia de 'limpar' a cidade. Um caminhão passou recolhendo todos os mendigos. Embarcamos na caçamba e, como dizia minha mãe, 'fomos despejados' às margens do Rio Tietê."

Carolina saiu à procura de madeira para levantar o próprio barraco. Conseguiu uma doação na Igreja Nossa Senhora do Brasil, nos Jardins, a 9 quilômetros da favela. Colocou as tábuas na cabeça e começou a caminhar, como estava acostumada. A extinta Canindé era uma favela com barracos construídos sobre a lama.

Na favela a família sofria todos os tipos de carência. "Sonhei que eu residia numa casa residível (sic), tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas, que há muito ela vivia pedindo... Sentei para comer... Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar o bife, despertei. Que realidade amarga!", escreveu em Quarto de Despejo.

A miséria era tanta que comida é uma questão do início ao fim do livro. "O dinheiro não deu para comprar carne, fiz macarrão com cenoura. Não tinha gordura, ficou horrível. A Vera é a única que reclama e pede mais. E pede: Mamãe, vende eu para a dona Julita, porque lá tem comida gostosa". Como atrás do barraco de Carolina tinha um lixão, na intenção de proteger os filhos, e sabendo da fome que todos passavam, vivia dizendo que ninguém podia pegar comida de lá. Mas, algumas vezes, não tinha  escapatória. "Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer".


POLÍTICOS

Carolina tinha de fato esperança que um dia os políticos dariam um jeito para mudar a vida dos pobres. Uma crença que, em parte, veio de uma experiência inusitada. "Quando minha mãe saía para catar papel, usava um saco na cabeça, segurava outro apoiado nas costas, e com o braço livre me carregava no colo", conta Vera. Não importava se estivesse fraca, por falta de comida, ou doente. Desde jovem, ela sofria com feridas que costumavam surgir nas pernas. "Uma vez, estava tão mal, quase se arrastando pela rua, comigo no colo, que um carro parou." Vera relata que um homem desce, perguntou o nome de sua mãe e pediu que ela entregasse a criança.

O homem disse que Carolina precisava ser levada a um hospital. Segundo Vera, era Jânio Quadros, então governador de São Paulo. O político internou Carolina em um hospital e deixou a menina aos cuidados de uma família até que sua mãe tivesse alta. A escritora gostava mesmo de Adhemar de Barros e deixou isso bem claro em Quarto de Despejo: "Eu sempre fui ademarista. Gosto muito dele, e de Dona Leonor. Florencia (vizinha de barraco) então perguntou a Carolina:

- Ele já te deu esmola?

- Já. Deu o Hospital das Clínicas".


APEDREJADOS

"Negrinha feia e chata." Com essas palavras, Carolina registrava como as pessoas se referiam a ela desde criança. Na Favela do Canindé não foi diferente. "As pessoas não gostavam muito dela", diz Dantas. Carolina não era como a maioria e não conseguia socializar. "Minha mãe tinha um vocabulário mais erudito. Nós (os filhos) muitas vezes não entendíamos direito o que ela dizia", diz Vera, que conta que os vizinhos chegaram a colocar fogo no barraco deles. "Eu me lembro até hoje que eu chorava que meu carrinho de boneca estava pegando fogo".

Quando Quarto de Despejo foi publicado, os moradores da favela não gostaram. "Muitos deles estavam registrados naquelas páginas, com nome e tudo, como ela havia ameaçado durante todo o período que moramos ali", conta a filha. A vizinhança chamava Carolina de "escritora vira-lata". O sucesso da edição aumentou a tensão na comunidade. "Acharam melhor tirar minha família da favela. No dia da mudança, fomos apedrejados. Meu irmão ainda tem a cicatriz perto do olhos", diz Vera. Os quatro foram levados para o porão de uma grande empresa de açúcar. "Era o máximo aquele porão. Os empregados levavam comida, que era ótima. Um dia serviram lagosta."


VIDA BURGUESA

Uma casa de alvenaria, no Alto de Santana, bairro de classe média na zona norte, foi o novo destino da família Jesus. O sucesso do livro tinha proporcionado um dos sonhos da autora, morar numa casa "residível", como escrevia sempre. Só que a adaptação não foi fácil, nem para a escritora e os filhos, nem para a vizinhança. "Ela reclamava que as pessoas não gostavam dela porque era negra", afirma Dantas. Havia outras questões além do preconceito. A fama da escritora tumultuou a rua pacata. "As emissoras de TV chegavam de ônibus, lotados de equipamentos para transmissão. Na porta de casa formava fila de gente pobre que surgia do nada para pedir coisas", diz Vera. Carolina ainda levava mendigos para dentro de casa, por pena. "A gente acordava e tinha um estranho dormindo na sala, que depois ainda roubava nossas coisas", afirma a filha. Os vizinhos reclamavam do som alto. Carolina escutava valsas no último volume e dançava até cansar. "Ela ficava com raiva e dizia que era inveja da vizinhança", diz Dantas. "Carolina tinha um gênio difícil. Não aceitava que ninguém dissesse o que devia fazer."

A vida em Santana se transformou no livro Casa de Alvenaria (1961) - depois ela ainda publicou Pedaços de Fome e Provérbios (1963). Três anos depois que a família estava enfim bem-acomodada e em residência própria, Carolina comunicou que havia comprado um sítio próximo a São Paulo, em Parelheiros, e que eles iriam se mudar. "O lugar era péssimo. Não tinha nem luz", conta Vera. "Então a vida começou a piorar muito. Meus irmãos ficaram revoltados. O dinheiro era curto."

A filha diz que a mãe não sabia administrar o que ganhava, e que também assinava muito papel em branco. "Ela deu um jeito para todo mundo estudar, mas não tínhamos como comprar coisas básicas, como sapatos. Íamos descalços para a escola. A professora colocava a gente no sol para esquentar", lembra Vera. "Também não havia dinheiro para óleo, café e manteiga. Só não passávamos fome porque criávamos galinhas e porcos. A vida voltou a ser dura".

Carolina estava novamente nas ruas recolhendo papel. "Não foi sensacionalismo, como disseram na época. Foi necessidade mesmo". Depois das morte da autora, foram publicados Diário de Bitita (1982) e Onde estaes felicidade (2014). Há mais de 5 mil páginas de textos inéditos de Carolina de Jesus.

No ano passado, até as escolas municipais festejavam a autora, o que fez com que os alunos de Vera, assim como os próprios estudantes, passassem a enxergá-la com outros olhos. "Foi engraçado. Parecia que eles estavam me vendo pela primeira vez. Numa reunião com os pais, uma das mães se levantou e disse que sentia muito orgulho de o filho ter como professora a filha da Carolina Maria de Jesus. Fiquei surpresa. Isso nunca tinha acontecido".

Apesar do sucesso efêmero, a escritora deixou um legado literário importante, objeto de estudo de pesquisadores no Brasil e no mundo. "Ela é precursora da Literatura Periférica", diz Fernanda Rodrigues de Miranda, da Universidade de São Paulo, uma das dezenas de pesquisadores cuja tese de mestrados tratou da autora. "Carolina traz o cotidiano periférico não somente como tema, mas como maneira de olhar a si e a cidade", diz Fernanda.


PERIFERIA

Hoje a periferia tem voz. A internet e as redes sociais ajudaram a democratizar o acesso à informação do que se produz longe dos olhos da parte rica das grandes cidades. Racionais MC's, grupo de rap formado em 1989, e o romancista Ferrez são exemplos de artistas da periferia da zona sul de São Paulo, que construíram a carreira longe do centro. O cotidiano dos jovens, a violência e a pobreza estão presentes nas músicas do Racionais e nos poemas e livros de Ferrez. Trata-se da chamada arte marginal, gênero que tem espaço e importância na construção da identidade cultural do país

Carolina foi pioneira do estilo, mas caiu no ostracismo. Por quê? "Ela se transformou em artigo de consumo, que as pessoas queriam ver e conhecer. Quase como algo curioso", diz Dantas, que acompanhou a escritora por vários anos. "E, como toda curiosidade, com o tempo perdeu a graça."


NO MORRO DAS FAVAS

As origens das favelas brasileiras

O dicionário define favela como conjunto de habitações toscas e miseráveis, geralmente em morros, onde habita gente pobre. A palavra surgiu com a Guerra de Canudos, no fim do século 19. Em Os Sertões, o jornalista e escritor Euclides da Cunha descreve o Morro da Favela, ponto estratégico da região do sertão baiano onde o beato e líder Antônio Conselheiro e seus fiéis estavam assentados. Favela é diminutivo de fava, planta abundante na encosta do morro. "Quando os veteranos do conflito voltaram ao Rio de Janeiro, pediram permissão ao Ministério da Guerra para construir casas no Morro da Providência", conta o sociólogo Nestor de Goulart Reis, professor da Universidade de São Paulo. "Talvez pela semelhança com o morro baiano ou pela posição geográfica estratégica que ocupava, os soldados apelidaram o local de favela." Consequência da má distribuição de renda e do crescimento das cidades, o processo de favelização é anterior à industrialização do Brasil. "Sempre houve problema problema de habitação nas regiões urbanas", diz Reis. Nas bordas de Salvador e Recife, por exemplo, moradias precárias já eram comuns desde o século 19. "Com teto de palha, as casas dos negros eram chamados de mucambos", diz Reis. Em São Paulo isso também aconteceu. As áreas inundáveis eram as terras mais fáceis de ser ocupadas pelos escravos. A Favela de Canindé, onde morou Carolina de Jesus, surgiu nas margens do Rio Tietê. Hoje, vivem em Comunidades, o nome politicamente correto que rebatizou as favelas, 11 milhões de brasileiros. Há 11 mil moradias em lixões, aterros sanitários e áreas contaminadas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.


Texto de Valéria França retirado da revista Aventuras na História, Editora Caras, São Paulo, Edição 139, Fevereiro de 2015.

domingo, 7 de janeiro de 2024

Aperto de mão elétrico

Em 1905, cientistas imaginaram cumprimento à distância


Foi há 110 anos. Impressionados com os avanços da eletricidade, alguns cientistas franceses começaram a especular como seriam as comunicações em um futuro próximo a 1905. Chegaram à conclusão que o mundo estava perto do "aperto de mão elétrico". Haveria, acreditavam, um aparelho semelhante ao telefone no qual, além de se ouvir a voz do interlocutor, seria possível sentir a pressão de um aperto de mão na hora de fechar um negócio.

A base para esse contato caloroso seria o rádio, recém-descoberto. Claro que o tal aperto nunca funcionou, mas os franceses começaram a trabalhar em uma máquina semelhante ao atual fax que atuaria como os aparelhos de transferência de dinheiro.

Se no começo do século passado os cientistas superestimaram o valor da cortesia, com certeza ficariam chocados com a transferência de imagens íntimas que circulam pelos smartphones. Ainda que não se sinta o toque alheio (há alguns dispositivos que insinuam isso, mas não exatamente o de um aperto de mão), fotos e selfies estão aí para mostrar que a proximidade, hoje, carece de distância.


Texto sem autoria identificada e retirado da revista Aventuras na História, Ano 12, número 3, Edição 139, Fevereiro de 2015, Editora Caras, São Paulo.

sábado, 6 de janeiro de 2024

10 Castelos Mal-Assombrados

 Há fantasmas em fortalezas de três continentes


01- Edimburgo - Escócia: Fortaleza militar do século 12, é conhecido como o castelo mais mal-assombrado do país. O fantasma do duque Alexander da Albânia, aprisionado nos calabouços, vaga por lá, acreditam. Lady Glamis, acusada de bruxaria em 1537 e queimada viva, supostamente ainda ronda os quartos. Soldados franceses e vítimas da Peste Negra são outros espectros.

02- Chillinglam - Inglaterra:  Em 1297, o líder escocês William Wallace atacou o local e ateou fogo à abadia, incinerando mulheres e crianças. Um panfleto de 1925, da Condessa de Tankerville, já fazia referência a almas penadas que habitam o castelo. A mais famosa, o "menino azul", pertence a um pajem incumbido de entregar documentos confidenciais à Armada Espanhola.

03- Houska - República Tcheca: Construído no século 13, sob ordens do regente da Boêmia Ottokar II, foi erguido para preencher uma falha geológica profunda que os moradores acreditavam ser um portal para o inferno. E, 1930, o local foi usado para experimentos nazistas. É onde supostamente há diversas aparições fantasmagóricas e demoníacas.

04- Belcourt - Estados Unidos: Foi encomendado em 1891 por um milionário para ser usado como residência de verão. Não há fantasmas no local, que é palco de atividades paranormais. Reúne artefatos como um coche que balança sozinho e uma armadura que, se acredita, solta um grito todo mês de março, época em que o antigo dono morreu com uma lança atravessada no olho.

05- Brissac - França: Com mais de sete andares e 200 salas remonta ao século 11, quando era residência dos condes de Anjou. No século 15, o castelo foi renovado pelo ministro Pierre de Breze. Seu filho o herdou e mudou-se para lá com a esposa, Charlotte, que tinha  reputação de infiel. Ela desapareceu, mas seus gemidos ecoam pelos corredores até hoje, de acordo com a lenda.

06- Bardi - Itália: Construído no século 9 para conter invasões húngaras, a fortaleza tem uma história digna de Shakespeare. A filha do dono apaixonou-se por um capitão. Esperando seu retorno, avistou o exército inimigo e optou por se matar. Na verdade, eram os locais, que usavam as cores dos derrotados para vangloriar-se. Ao ver o corpo da noiva, o capitão se matou.

07- Drags Holme - Dinamarca: Do século 12, abrigaria mais de uma centena de espectros. Um deles, o Lorde de Bothwell, foi aprisionado ali. Outro fantasma possui história mais trágica: a filha do dono do castelo foi cimentada viva como punição por amar um plebeu. Em 1930, um esqueleto foi achado. O vestido era igual ao de uma menina por vezes avistada a noite nos corredores.

08- Moosham - Áustria: Palco de centenas de decapitações, foi construído pelos regentes de Salzburgo no século 13. Entre 1675 e 1690, na histeria da caça às bruxas, pessoas foram julgadas e executadas ali, e é dito que muitas delas permanecem no lugar. Por volta de 1800, moradores da região registraram casos de mutilação de animais nas imediações do edifício.

09- Warwick - Inglaterra: Construído no século 10, foi palco de diversas batalhas durante a invasão normanda da Inglaterra. Um dos donos do castelo, sir Fulke Greville, foi assassinado em 1628 por seu empregado. Segundo a lenda, ele se materializa do seu retrato em noites frias. Além disso, um grande  cachorro negro de olhos vermelhos ronda o local.

10- Himeji - Japão: O castelo existe desde 1346, mas foi no século 17 que começou a maldição. A serva Okiku era apaixonada pelo nobre local. Quando descobriu uma conspiração para assassiná-lo ela revelou os planos. O arquiteto do golpe, por vingança, acusou-a de ter roubado um dos pratos do senhor. Foi torturada e seu corpo jogado no poço do castelo.


Texto sem autoria identificada e retirado da revista Aventuras na História, Ano 12, número 3, Edição 139, Fevereiro de 2015, Editora Caras, São Paulo.

Ante a lição (1)

 "Considera o que te digo, porque o Senhor te dará entendimento em tudo." 

- Paulo. (II TIMOTÉO, 2:7)


Ante a exposição da verdade, não te esquives à meditação sobre as luzes que recebes.

Quem fita o céu, de relance, sem contemplá-lo, não enxerga as estrelas; e quem ouve uma sinfonia, sem abrir-lhe a acústica da alma, não lhe percebe as notas divinas.

Debalde escutarás a palavra inspirada de pregadores ardentes, se não descerrares o coração para que o teu sentimento mergulhe na claridade bendita daquela.

Inúmeros seguidores do Evangelho se queixam da incapacidade de retenção dos ensinos da Boa Nova, afirmando-se ineptos à frente das novas revelações, e isto porque não dispensam maior trato à lição ouvida, demorando-se longo tempo na província da distração e da leviandade.

Quando a câmara permanece sombria, somos nós quem desata o ferrolho à janela para que o sol nos visite.

Dediquemos algum esforço à graça da lição e a lição nos responderá com as suas graças.

O apóstolo dos gentios é claro na observação.

"Considera o que te digo, porque, então, o Senhor te dará entendimento em tudo."

Considerar significa examinar, atender, refletir, e apreciar.

Estejamos, pois, convencidos de que, prestando atenção aos apontamentos do Código da Vida Eterna, o Senhor, em retribuição à nossa boa-vontade, dar-nos-á entendimento em tudo.


Texto retirado do livro Fonte Viva; Francisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Olho de Boi

 Brasil foi o segundo país a adotar sistema de postagem


O primeiro selo brasileiro foi criado em 1843, quase 200 anos após a criação do serviço de correio. Até o período da Regência, a entrega das correspondências era feita principalmente por escravos. Em 1835, o correio da Corte passou afazer a entrega de correspondência a domicílio. Até então, o serviço funcionava apenas para estabelecimentos  registrados, que pagavam uma anuidade.

"Até os selos entrarem em uso, se pagava um mensageiro para fazer a entrega e ele cobrava do destinatário. Mas havia dois problemas: quem recebia podia ler a carta e se recusar a pagar. Ou o mensageiro recebia e era assaltado na volta", afirma o comerciante filatélico Leão Marek. O sistema mudou em 1841, depois que Dom Pedro II, inspirado pelo primeiro selo do mundo, o penny black britânico, aprovou uma reforma postal. A inovação permitia maior controle sobre os pagamentos. Em 1843, o Brasil se tornou o segundo país a incorporar a medida nacionalmente - no mesmo ano, Zurique lançou um selo regional -, quando entrou em vigor o Olho de Boi, assim chamado pelo desenho oval. Disponível nos valores de 30, 60 e 90 réis, eram desenhados a pena e depois reproduzidos. Para usar, era necessário recortar e colar os selos, que ainda não vinham picotados.


SEM O ROSTO DO IMPERADOR


Dom Pedro II determinou que os primeiros selos não fossem estampados com sua efígie - achou que seria indigno ter o rosto carimbado. Posteriormente, o monarca mudou de ideia, mas os primeiros selos traziam apenas cifras.

O selo de 30 réis deveria ter uma primeira impressão de 6 mil unidades, mas a tiragem final foi de 1.148.994. Servia para distâncias curtas, dentro de uma mesma cidade. Hoje, um exemplar é avaliado em R$ 10 mil.

O Olho de Boi de 60 réis teve como tiragem final 1,5 milhão de selos e é, atualmente, considerado o menos valioso dos três modelos. Era usado para distâncias médias, entre províncias. O selo de 90 réis, usado para distâncias mais longas, teve uma impressão de 349.182 exemplares. Desses, 18 mil foram enviados para a Bahia, província que recebeu o maior volume de selos. Para correspondências despachadas para outros países, via navio, era necessário usar vários selos, de acordo com o peso do pacote e o trajeto. É hoje o mais raro dos Olhos de Boi, podendo valer mais de R$ 15 mil.


Texto sem autoria identificada e retirado da revista Aventuras na História, Ano 12, número 3, Edição 139, Fevereiro de 2015, Editora Caras, São Paulo.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Como fazíamos sem... Asfalto

 Animais fizeram primeiro piso de estradas


As primeiras vias foram feitas por animais de manada, como búfalos, zebras e elefantes. Era sobre essas trilhas que os homens pré-históricos caminhavam, evitando topadas, escorregões ou pisar em cobras escondidas na vegetação. Em Ur, no atual Iraque, surgiram as primeiras estradas parecidas com as que conhecemos, em 4 mil a.C. Eram feitas com calçamento de pedra.

Os romanos foram os maiores empreiteiros: abriram mais de 85 mil km de estradas. Sim, "todos os caminhos levavam à Roma". Vinte e nove grandes vias convergiam para a capital. Na Ásia, chineses e persas competiam com um sistema quase tão avançado. O motivo era principalmente bélico: impérios precisavam deslocar grandes exércitos. Mesmo assim, até o século 18 essas vias eram cheias de buracos e irregularidades. A pavimentação era feita com blocos de pedra ou madeira, tijolos, cascalho e areia, com água para dar liga.

O engenheiro John Metcalfe modernizou o processo de construção de estradas e, apesar de cego, pavimentou quase 290 km ao longo da cerreira. Em 1787, seu compatriota John McAdam desenvolveu um método que consistia em usar uma camada de peças de pedra quebrada e compactada coberta por uma superfície de pedregulhos menores. Era mais barato, mas retinha água da chuva e sujeira, como excrementos de cavalos. Baudelaire, ao falar sobre as ruas de Paris, menciona o "lodaçal de macadame" com repugnância.

O asfalto, uma substância natural também chamado de betume, é usado pelo homem desde 3 mil a.C., especialmente para vedação. Em 1824, a Avenida Champs-Elysées, em Paris, foi uma das pioneiras no uso do asfalto no solo - misturado com pedras e agregadores que se solidificavam como se fosse blocos de concreto. Um cruzamento do macadame com o betume. As estradas francesas também passaram a usar esses blocos como revestimento. O asfalto recebeu impulso final em 1896, quando New York passou a usá-lo como padrão de cobertura em suas ruas.


Texto sem autoria identificada e retirado da revista Aventuras na História, Ano 12, número 3, Edição 139, Fevereiro de 2015, Editora Caras, São Paulo.

domingo, 31 de dezembro de 2023

Mulheres ao Mar

 Nórdicas colonizaram ocupações vikings


A imagem de filmes e séries que mostram mulheres e crianças nórdicas se despedindo de pais e maridos guerreiros, que viajavam em busca de novas terras e pilhagens, não faz sentido, de acordo com pesquisadores suecos e noruegueses. Durante as longas viagens vikings entre os séculos 8 e 11, eles estavam nos barcos. Estudo publicado na revista Philosophical Transactions com base no DNA mitocondrial (só transmitido pelas mães) mostra que elas embarcaram rumo a Inglaterra, Irlanda, Islândia e  pequenas ilhas, como Orkney e Shetlands. "A pesquisa apoia a visão de que um significativo grupo de mulheres estava envolvido na colonização", diz Erika Hagelberg, da Universidade de Oslo, que participou do estudo. "Isso põe fim à ideia de que as viagens só envolviam estupros e pilhagens".

Os pesquisadores estudaram dezenas de esqueletos entre 950 e 1200 anos de idade. Compararam o DNA mitocondrial nórdico antigo com 5 mil amostras de indivíduos modernos da Noruega, Grã Bretanha, Islândia e outros países europeus. O resultado mostrou que o DNA materno dos vikings era muito próximo ao de moradores atuais da Islândia, das Orkney e Shetlands - ilhas isoladas do Atlântico Norte. "Mostramos que eles trouxeram as mulheres para colonizar a Islândia e outras áreas", disse a pesquisadora Maja Krzewinska.

Teorias mais antigas afirmavam que os vikings se fizeram ao mar em busca de mulheres, raras em suas terras originais, e que usaram garotas gaélicas para colonizar a Islândia.


Texto sem autoria identificada e retirado da revista Aventuras na História, Ano 12, número 3, Edição 139, Fevereiro de 2015, Editora Caras, São Paulo.

sábado, 30 de dezembro de 2023

Confusão de Origem

Afinal, quem foram os primeiros habitantes das Américas?


No final de 2014, a análise de DNA de dentes de dois crânios de índios botocudos, encontrados no acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, trouxe uma grande revelação: o genoma era polinésio. Os botocudos, ou aimorés, viviam na atual região de Minas Gerais e Espirito Santo, distantes mais de 7 mil km do polinésio mais próximo, os rapa nui da Ilha de Páscoa. Para chegar de um lugar ao outro, seus antepassados teriam de ter cruzado um bom pedaço do Oceano Pacífico e, depois, atravessado a Cordilheira dos Andes. "O que já era surpreendente se tornou intrigante", afirmou o pesquisador Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague e um dos autores do estudo. Em 2013, uma análise do DNA mitocondrial, que só a mãe transfere aos descendentes, havia apontado a origem polinésia das ossadas. Agora a certeza é quase absoluta. A tribo foi praticamente exterminada no século 19, e hipóteses como a de que seriam escravos vindos do Peru ou de Madagascar (as duas regiões receberam escravos polinésios) acabaram descartadas.

A nova evidência traz à luz uma antiga discussão: quem são os antepassados dos americanos? Durante muito tempo, acreditava-se que os indígenas do continente fossem descendentes de um único grupo asiático que cruzou o Estreito de Bering entre 20 mil e 15 mil anos atrás. O grupo seria o ancestral da chamada cultura Clóvis - com base em artefatos datados de 13 mil anos encontrados no Novo México, EUA. Nos últimos tempos, tal visão tem sido fortemente contestada, graças a novos achados arqueológicos e paleontológicos.

O biólogo mineiro Walter Neves batizou uma descoberta em Lagoa Santa (MG) de Luzia. O fóssil tem 13 mil anos e é negróide. Ou seja, teria vindo da África ou da Oceania. Para Neves, Luzia poderia ser explicada se tivesse ocorrido mais de uma leva migratória pelo Estreito de Bering - com populações de etnias diferentes.

A recente descoberta do botocudos polinésios só ajudou a embaralhar ainda mais a questão. "Acho que está na hora de ser humilde e declarar ignorância", admitiu Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais e um dos autores do artigo, publicado na revista científica Current Biology.

Ainda há um terceiro componente: as pesquisas da arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon na Serra da Capivara, no sul do Piauí. A arqueóloga encontrou artefatos humanos ali - e traços do que ela acredita serem fogueiras de 45 mil anos. Para outros grupos de pesquisadores, as evidências, datadas por carbono 14, podem ser apenas incêndios naturais, sem a participação de humanos. Se a hipótese de Niède Guidon estiver correta, tudo o que se sabe sobre o ocupação humana das Américas terá de ser revisado.


Texto sem autoria identificada e retirado da revista Aventuras na História, Ano 12, número 3, Edição 139, Fevereiro de 2015, Editora Caras, São Paulo.