sábado, 26 de abril de 2025
Cena de Fellini ao cair da tarde
Firmeza e Constância (69)
"Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão." - Paulo. (I CORÍNTIOS, 15:58.)
Muita gente acredita que abraçar a fé será confiar-se ao êxtase improdutivo. A pretexto de garantir a iluminação da alma, muitos corações fogem à luta, trancando-se entre as quatro paredes do santuário doméstico, entre vigílias de adoração e pensamentos profundos acerca dos mistérios divinos, esquecendo-se de que todo o conjunto da vida é Criação Universal de Deus.
Fé representa visão.
Visão é conhecimento e capacidade de auxiliar.
Quem penetrou a "terra espiritual da verdade", encontrou o trabalho por graça maior.
O Senhor e os discípulos não viveram apenas na contemplação.
Oravam, sim, porque ninguém pode sustentar-se sem o banho interior de silêncio, restaurado de energia sublime que fluem dos Mananciais Celestes.
A prece e a reflexão constituem o lubrificante sutil em nossa máquina de experiências cotidianas.
Importa reconhecer, porém, que o Mestre e os aprendizes lutaram, serviram e sofreram na lavoura ativa do bem e que o Evangelho estabelece incessante trabalho para quantos lhe esposam os princípios salvadores.
Aceitar o Cristianismo é renovar-se para as Alturas e só o clima do serviço consegue reestruturar o espírito e santificar-lhe o destino.
Paulo de Tarso, invariavelmente peremptório nas advertências e avisos, escrevendo aos coríntios, encareceu a necessidade de nossa firmeza e constância nas tarefas de elevação, para que sejamos abundantes em ações nobres com o Senhor.
Agir ajudando, criar alegria, concórdia e esperanças, abrir novos horizontes ao conhecimento superior e melhorar a vida, onde estivermos, é o apostolado de quantos se devotaram à Boa Nova.
Procuremos as águas vivas da prece para lenir o coração, mas não nos esqueçamos de acionar os nossos sentimentos, raciocínios e braços, no progresso e aperfeiçoamento de nós mesmos, de todos e de tudo, compreendendo que Jesus reclama obreiros diligentes para a edificação de seu Reino em toda a Terra.
Texto retirado do livro Fonte Viva; Francisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.
sábado, 19 de abril de 2025
Sementeira e Construção (68)
"Porque nós somos cooperadores de Deus; vós sois lavoura de Deus e edifício de Deus." - Paulo. (I CORÍNTIOS, 3:9.)
Asseverando Paulo a sua condição de cooperador de Deus e designando a lavoura e o edifício do Senhor nos seguidores e beneficiários do Evangelho que o cercavam, traçou o quadro espiritual que sempre existirá na Terra em aperfeiçoamento, entre os que conhecem e os que ignoram a verdade divina.
Se já recebemos da Boa Nova a lâmpada acesa para a nossa jornada, somos compulsoriamente considerados colaboradores do ministério de Jesus, competindo-nos a sementeira e a construção dele em todas as criaturas que nos partilham a estrada.
Conhecemos, pois, na essência, qual o serviço que a Revelação nos indica, logo nos aproximemos da luz cristã.
Se já guardamos a bênção do Mestre, cabe-nos restaurar o equilíbrio da vida, onde permanecemos, ajudando aos que se desajudam, enxergando algo para os que jazem cegos e ouvindo alguma coisa em proveito dos que permanecem surdos, a fim de que a obra do Reino Divino cresça, progrida e santifique toda a Terra.
O serviço é de plantação e edificação, reclamando esforço pessoal e boa-vontade para com todos, porquanto, de conformidade com a própria simbologia do apóstolo, o vegetal pede tempo e carinho para desenvolver-se e a casa sólida não se ergue num dia.
Em toda parte, porém, vemos pedreiros que clamam contra o peso do tijolo e da areia e cultivadores que detestam as exigências de adubo e proteção à planta frágil.
O ensinamento do Evangelho, contudo, não deixa margem a qualquer dúvida.
Se já conheces os benefícios de Jesus, és colaborador dele, na vinha do mundo e na edificação do espírito humano para a Eternidade.
Avança na tarefa que te foi confiada e não temas. Se a fé representa a nossa coroa de luz, o trabalho em favor de todos é a nossa bênção de cada dia.
Texto retirado do livro Fonte Viva; Francisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.
sexta-feira, 18 de abril de 2025
Sobre "eis que"
As acepções sobre o uso coreto da expressão "eis que" derivam da análise sobre a sua classificação
O jornal A Gazeta (ES) do dia 15.11.08 estampa, na página 22, uma frase dita por um advogado: "... o acusado afirma que somente viaja de carro, eis que tem fobia de avião." Domingos Paschoal Cegalla, no seu Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, alerta para o uso indevido de "eis que" com o sentido de "porque", erro frequente na linguagem jurídica. Normatividade à parte, parece que, se "eis que" é um verbete daquele dicionário, há de ser entendido, certamente, como uma locução. Nesse caso, seria uma locução adverbial temporal sui generis (com o sentido de "de surpresa", "repentinamente") e não uma locução conjuntiva, já que é possível analisar como período simples, oração absoluta, uma frase com "Eis que o anjo do Senhor anunciou à Maria". Vittorio Bergo, no seu dicionário Erros e Dúvidas de Linguagem (6. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro; Francisco Alves, 1986), chama "eis que" de "expressão designativa".
CLASSIFICAÇÕES
Normalmente, as locuções conjuntivas terminam com "que" (à proporção que, à medida que, por que, a fim de que etc.). No entanto, não deve causar estranheza o fato de "eis que" ser considerado locução adverbial e não locução conjuntiva, apesar desse "que". As locuções prepositivas terminam por preposição (apesar de, a respeito de, com relação a), mas, ainda assim, "não obstante" é uma locução prepositiva e não termina por preposição. Os dicionários de Língua registram "eis" como advérbio, o que é parcialmente adequado.
Pode ser, no entanto, que não se trate de uma locução adverbial. As gramáticas, à unanimidade, incluem "eis" como uma palavra pertencente ao grupo das "partículas denotativas". Partícula denotativa é o nome que classifica uma palavra "sem classificação", isto é, uma palavra que não pertence a nenhuma das dez classes (substantivo, adjetivo, pronome, verbo, advérbio, preposição, conjunção, interjeição, artigo, numeral). Ora, "eis" é um dêitico que poderia ser incluído não entre partículas denotativas (no caso, partícula de designação), mas entre os chamados verboides. Dêitico é o nome que se dá a um termo que se refere ao contexto situacional, isto é, um termo de significação ocasional, como, por exemplo, hoje, assim, este, eu... O termo "verboide", criado por Rudolph Lens, designa não apenas as formas nominais de verbo, que são efetivamente verbos, embora atemporais, mas também expressões que não são verbos, mas que se comportam sintaticamente como tais.
Reitere-se aqui o fato de que uma oração é dita principal não por conter a ideia principal, mas por ter um de seus termos transformado em outra oração. Assim, um período composto como "As coisas que ele quer são as coisas que eu quero" tem por oração principal uma aparente tautologia: "as coisas são as coisas". O determinante de "coisas", nas duas ocorrências, foi transformado em oração subordinada adjetiva. Em "Eis que o anjo do Senhor anunciou à Maria", é possível analisarmos "eis" como oração principal e "que o anjo do Senhor anunciou à Maria" como oração subordinada substantiva objetiva direta.
ANÁLISE
Apesar de seguir esse raciocínio, essa análise poderia apresentar um problema. As gramáticas e dicionários especializados definem frase como um enunciado dotado de sentido completo, e oração como uma frase ou parte de uma frase com estruturação sintática (isto é, com sujeito e verbo, explícito, como na maioria das orações, ou subentendido, como nas orações comparativas e conformativas, por exemplo). Assim, em "O homem saiu" temos uma frase e uma oração; em "Ele disse que viria", temos uma frase e duas orações. Numa oração dita sem sujeito, entende-se que se trata de um sujeito zero: "São duas hora" o termo "duas horas" é predicativo de um sujeito zero. Mas em "Ei-lo que chega", se "ei-lo" é uma oração (oração principal), a definição tradicional de oração talvez não seja adequada, pois em "ei-lo" não há uma estrutura sintática. Numa frase como "Eis que chega o homem" ou "Eis que o homem chega", é possível pensar numa paráfrase desta outra: "Eis o home que chega". Mas seria impossível parafrasear dessa forma uma frase como "Ei-lo que chega", já que seria agramatical a construção "eis que o chega", uma vez que "o" não é pronome sujeito.
O ideal, portanto, é analisar efetivamente "eis" não como partícula denotativa de designação, mas como verboide, seguido de um objeto direto, oracional ou não (Eis que o Anjo anunciou à Maria.). A mesma análise caberia em construções como "oxalá" e "tomara". As orações com verboides seriam consideradas orações com sujeito zero, isto é, orações sem sujeito, o que permitiria manter o conceito de oração como um enunciado ou parte de um enunciado dotado de estruturação sintática.
Os tais verboides
Seguindo a definição de Rudolph Lenz, em Português, seriam considerados verboides não apenas o Infinitivo, o Gerúndio e o Particípio, que se comportam como verbos, embora não conjugáveis (à exceção do infinitivo pessoal que é conjugável, embora permaneça atemporal, mas também expressões inadequadamente consideradas interjeições pelos dicionários de Língua, como oxalá, tomara, que não são verbos, mas têm objeto direto. Nesse caso, numa frase como "Ei-lo que chega", a oração "que chega" é uma subordinada adjetiva e, obviamente, "ei-lo" terá de ser classificado como oração principal, pois não existe oração subordinada sem uma principal. Afinal, uma oração subordinada é um termo de uma oração dita principal, transformado em outra oração, isto é, uma oração subordinada é sempre um termo oracional desenvolvido. Assim, em "Ele saiu, mas disse que voltaria", a oração "que voltaria" é um objeto direto da oração anterior, "mas disse", que é a oração principal do período, coordenada à primeira oração. Dessa forma, em "Tomara que tenhamos paz", "Oxalá tenhamos paz", a oração com verbo no subjuntivo (modo típico da subordinação) seria objeto direto de "tomara" ou de "oxalá". O conceito de verboide de Lenz pode ser considerado uma espécie de desdobramento de considerações sobre a morfologia do infinitivo, como a de Henrique da Rocha Lima em sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa (1972), que afirma que "o infinitivo é antes um substantivo" para justificar seu funcionamento sintético.
Texto de José Augusto Carvalho retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 21, Escala Educacional, São Paulo.
A crase não é um bicho-de-sete-cabeças
O Gramático Celso Pedro Luft dizia que, se os alunos erravam a crase além do razoável, era porque andavam lhes ensinando demais o assunto. É exatamente o que a experiência mostra: entra ano, sai ano, e a impressão é que se sabe cada vez menos sobre crase. E, apesar de fazer parte dos conteúdos programáticos desde as séries iniciais até a universidade, parece que a crase não tem sido devidamente compreendida por milhões de pessoas.
ENSINO DE MAIS, APRENDIZAGEM DE MENOS?
Arremesse um livro de gramática quem nunca, diante de um inofensivo a, numa redação escolar, num artigo para jornal ou mesmo num trabalho acadêmico, ficou suando para saber se aquele bendito recebia ou não acento. O desconhecimento é tão enorme que inunda o nosso cotidiano. Quem por acaso nunca leu num panfleto de pizzaria expressões como "forno à lenha", "entrega à domicílio" ou "de segunda à domingo"?
A situação fica pior quando os erros aparecem em material escrito proveniente de segmentos que deveriam, em tese, zelar pelo bom uso do idioma, como as instituições de ensino (para ficarmos somente aí):
* Viagem à New York (órgão informativo de um centro universitário);
* de 18 à 22 de junho (cartaz de congresso):
* 22 à 24 de maio (cartaz de congresso de fisioterapia).
QUESTÃO MORFOSSINTÁTICA
Em vez de "casos" em que não se usa o acento indicativo da crase, o assunto poderia ser reduzido a uma questão morfossintática apenas. Assim, na sequência "Vou à padaria", há crase porque houve a contração de dois "a", pois o primeiro a se refere ao verbo vou (pois quem vai, vai a algum lugar). Trata-se de uma questão de regência verbal, porque o verbo vou precisa ser completado pela preposição a; aliás, o verbo vou exige a presença da preposição a.
O segundo a se refere à palavras feminina padaria, que a acompanha, pois ela admite o artigo feminino a. Trata-se de uma questão de morfologia, porque a palavra feminina admite o artigo feminino a. A fusão do a do verbo ir + o a da palavra feminina padaria resulta no à.
Se o exemplo proposto não se encaixar no que acima foi apresentado, ficará claro que uma das situações para o uso do acento não foi observado. Daí resulta no que chamamos de "o segredo da crase".
O SEGREDO DA CRASE
Como sabemos, a crase é a contração da preposição "a" com o artigo feminino "a", por isso é condição essencial que ela ocorra com palavra feminina. É necessário também que a palavra dependa de outra que exija a preposição "a". E por último: é imprescindível que a palavra admita o artigo feminino "a" (eis o segredo).
Por exemplo, na frase "Eu fui a Mauá", não podemos acentuar o "a" que antecede "Mauá", porque a palavra não admite antes de si o artigo feminino "a". Dizemos: "Mauá é cidade linda", e não "A Mauá..." Isso prova que o "a" da frase "Eu fui a Mauá" é simples preposição, que faz parte do verbo "ir", pois o verbo exige a preposição "a" (quem vai, vai a algum lugar).
Texto de Sérgio Simka retirado do revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 15, Escala Educacional, São Paulo. (É um trecho do seu livro Crase não é um bicho-de-sete-cabeças, Editora Ciência Moderna, 2009).
domingo, 13 de abril de 2025
Transformar Informação em Conhecimento
Nasci em uma época na qual a informação não estava "à distância de um clique", em que ter todos os tomos da Enciclopédia Barsa era luxo de poucos e, por isso, grande parte dos estudantes tinha por hábito frequentar a biblioteca da escola. Diante das dificuldades que enfrentávamos, quando nos deparávamos com uma informação relevante nós a guardávamos a sete chaves, a esmiuçávamos, buscávamos entender tudo que estivesse relacionado a ela - refletíamos, elaborávamos, compreendíamos e, por fim, chegávamos à síntese da ideia e nos apropriávamos dela - ou seja, transformávamos informação em conhecimento.
Assim sendo, há duas perguntas que me perseguem:
1- Por que hoje, diante dos recursos tecnológicos a nosso dispor, os quais nos permitem acesso a informações sobre qualquer área do saber, os jovens vão perdendo ao longo de sua trilha o encanto e a alegria da descoberta, mostrados no início de seu caminhar, transformando-se em seres totalmente robotizados que repetem as informações adquiridas, sem a mínima elaboração de seu conteúdo ou consciência de seu significado?
2- Qual deveria ser o papel dos ditos formadores de opinião, entre deles os educadores, no despertar da consciência do jovem e na formação do ser ético e crítico?
De acordo com Celso Antunes (Como transformar informações em conhecimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 11), vivemos em um período histórico de extrema banalização de informações. Estas, que antes chegavam aos poucos, capazes de serem assimiladas, comentadas e, portanto, mantidas na lembrança, foram literalmente "atropeladas" por um avanço incontrolável dos meios de comunicação e das ferramentas tecnológicas que nos trazem de toda parte, a cada segundo, uma infinidade de saberes. Tal avanço, fez com que as informações ganhassem uma nova dimensão e incomensurável volume, alterando de forma substancial o papel da escola e a função do professor.
Não faz muito tempo, cabia ao professor transmitir aos alunos informações especializadas de sua disciplina e cabia aos pupilos assimilá-las. Hoje, essa tarefa não é imprescindível, pois as informações transitam por meios acessíveis a, praticamente, todos. No entanto, seu excepcional volume e a necessidade constante de sua atualização tornam primordial a intervenção de alguém que auxilie a transformação da informação em conhecimento, em habilidades, em práticas cívicas, éticas, cidadãs e, por fim, em sabedoria - ou que pelo menos ofereça as bases para que esta seja atingida.
Essa notável mudança de paradigma sobre a popularização da informação veio acompanhada de outra: o número crescente de estudos sobre o funcionamento da mente humana e dos meios que esta utiliza para assimilar conhecimentos.
As ciências cognitivas vieram para ficar, trazendo novas teorias sobre a mente e, por conseguinte, sobre a inteligência, a memória e a aprendizagem.
A convergência dessas duas mudanças demanda do professor uma nova postura - a de mediador cuja função é auxiliar o aluno a construir o conhecimento a partir das informações que estão a seu dispor. A sala de aula, assim como a escola, precisa assumir uma nova feição, deixar de ser vista como um espaço de conhecimentos e transformar-se em uma "academia de ginástica", onde o cérebro seja exercitado para receber estímulos e desenvolver inteligências, em um lugar onde conceitos, como ética, moral, empatia, cidadania e pensamento crítico deixem de ser mero idealismo e tornem-se parte da prática cotidiana.
Em suma, o extraordinário avanço da tecnologia e dos meios de comunicação e a popularização dos saberes, associado ao que hoje se sabe sobre como a mente humana aprende, reclamam por um novo professor - um profissional da educação que ensine seus alunos a colher informações, a organizá-las, a definir sua hierarquia e, sobretudo, os ajude a transformá-la em conhecimento, despertando-os para a importância de criar subsídios internos para a construção de saudáveis relações interpessoais.
Sem uma profunda e sensível reflexão sobre sua prática pedagógica, o profissional da educação pouco fará. Não há como lutar contra as drásticas mudanças ocorridas, recentemente, em nosso modus vivendi. Podemos usá-las a nosso favor e descobrir-nos como artesãos que criam soluções para os desafios impostos pela massificação da informação ou sucumbir a elas, mantendo-nos presos aos grilhões de práticas pedagógicas que já tiveram seus dias contados.
A escolha é nossa. A escolha é sua.
Texto de Cláudia S. Coelho retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 47, Editora Escala, São Paulo, 2014.
Ecologia Poética
Como pensar em ecologia sem incluir a preservação das palavras? E com a ecologia das palavras, quem se preocupa? E os lençóis subterrâneos da fala que são contaminados pelo sarcasmo, pelo cinismo e, sobretudo, pela indiferença, quem cuida de sua prevenção?
Corremos o risco de perder a natureza quando deixamos que a linguagem fale em nosso lugar e não mais falamos por ela. Quando somente transferimos a responsabilidade de dizer e de nomear pelo ato de repetir.
Não é o comportamento que condiciona as palavras. Mas as palavras formam o comportamento. As palavras são o comportamento. Somos palavras. De que adianta separar o lixo seco do orgânico se não separamos a linguagem orgânica da seca em nossa rotina? E a coleta seletiva da Língua, onde fica? De que vale cuidar do desperdício de água se não cuidamos também do desperdício de linguagem?
Não será igualmente criminoso usar palavras desnecessárias, sem entusiasmo, sem força de vontade, sem alegria? Por descaso ou descanso. Para ser compreendido e não pensar. Pela pressa, sendo que a pressa aumenta o esquecimento, inibe a lembrança.
Palavras são de vidro. Palavras são de metal. Palavras são de plástico. Palavras são de papel. Não se pode colocar todas com o mesmo peso, no mesmo destino. É preciso discerni-las.
Por dia, quantas palavras são reproduzidas desprovidas de sentido? Lançadas na terra como latas de alumínio, que demoram mais de um século para se decompor.
Um lugar-comum é tão poluente quanto pilhas e baterias de celular. Expressões que nada têm de pessoal, que não permitem a descoberta ou o deslumbramento, estancam a circulação do afeto. Cessam o gosto de falar. Interrompem o gosto de ouvir.
Quantos fósseis são abandonados no cotidiano do idioma, quantos verbetes esperam sua chance de tratamento no aterro sanitário do dicionário? Será que não viramos fantasmas se portamos uma Língua morta?
Poderíamos latir, poderíamos miar, poderíamos uivar, tudo isso é ainda comunicação. Mas falar não é somente comunicar, é se comprometer com a direção do timbre.
Palavras são de vidro. Palavras são de metal. Palavras são de plástico. Palavras são de papel. Não se pode colocar todas com o mesmo peso, no mesmo destino. É preciso discerni-las. Uma criança me entenderia.
Tolerância, por exemplo, é de vidro. Reboa por dentro. Faz volume antes de acabar. Não pode se jogada fora, pois levará milhões de anos antes de virar pó.
Respeito, por sua vez, é de metal. Inteiriça. Difícil de quebrar. Fala-se de uma única vez como uma lâmina.
Condescendência é de papel, o acento vai lá no fim, suscetível aos rasgos da tesoura e das mãos ansiosas. Soletre, veja, imagine. Deite a voz, não fique de pé.
Assim como reciclamos o lixo, as palavras dependem da renovação. Mudar a ordem, produzir significação, exercitar gentilezas, valorizar detalhes. Não deixá-las paradas, desacompanhadas, viúvas.
Talvez seja daí minha incompetência em me desfazer do arranjo de rosas que recebo no aniversário de casamento. Desligo as pétalas do miolo e espalho as rosas nos livros. Fazem sombras para as frases.
Até que ponto não se empregam palavras para se esconder o que se quer, para disfarçar, para ocultar?
É poluente dizer ao filho "nem se parece comigo" para ameaçá-lo. Uma convenção a que a maioria recorre para se livrar do cuidado, sacrificando um momento de particularizar sua experiência paterna e materna. Por que não procurar afirmar "você se parece comigo mesmo quando não se parece"?
Ou há algo mais solitário e desolador que resmungar "eu avisei" para sua mulher quando ela erra? Mostra que já a estava condenando antes de qualquer resultado e atitude. Em vez de cobrar, por que não compreender? Transformar o lixo hospitalar (sim, corta-se o braço dela com essa sentença) em adubo de frutas com a simples concisão de "a gente resolve".
São períodos postiços, artificiais, fingidos, que corrompem a respiração. Ao encontrar um colega antigo, logo nos despedimos: "Vamos nos ligar?" Isso significa o contrário, não vou telefonar nos próximos três anos.
Até que ponto não se empregam palavras para se esconder o que se quer, para disfarçar, para ocultar? Quantos sinônimos para não dizer absolutamente nada. Para se afastar do que realmente se desejava declarar. Foge-se da palavra certa pela palavra aproximada. Uma palavra vizinha não mora no mesmo lugar da verdade.
Palavra é sentimento. Mas - cuidado - as palavras não podem sentir sozinhas.
Palavra é poder. Ao esgotar seu significado, esgotamos nossa permanência.
Texto de Fabrício Carpinejar retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 45, Editora Escala, São Paulo, 2013.
sábado, 12 de abril de 2025
Professorar
Recomeço de aulas para quem é professor por escolha é revigorante, principalmente quando se lida com alunos ingressantes. Você nota os olhares curiosos, ávidos por novidades e a sensação de vitória de adolescentes, jovens e adultos que começam a fazer parte do contingente de 5,95 milhões de pessoas que compõem o ensino superior no Brasil (MEC, 2009), a maioria - 4,88 milhões - matriculada em cursos de graduação particulares e presenciais no país.
A arte de ser professor merece, no dicionário, espaço para um verbo específico, a que chamo "professorar". Professorar é elaborar material didático adequado ao perfil, à rotina e às necessidades dos discentes. Em Instituições de Ensino Superior (IES) particulares, principalmente no ensino noturno, é compreender que a maioria dos estudantes trabalha durante o dia, às vezes por turnos e/ou aos sábados; por vezes reside em outra cidade ou está alistado no Exército. Se é mulher, há que se compreender a necessidade de jornadas múltiplas: estudo, casa, marido, filhos, cachorro, curso de inglês, além de pequenos bicos, como vender doces ou sanduíche no intervalo das aulas ou fazer sobrancelha para ajudar a pagar a faculdade.
Professorar é ser também um pouco psicólogo, mãe, pai, amigo; é ter ouvidos atentos e empáticos para auscultar histórias de desabafo e de superação: alunos que saíram da depressão e hoje conseguem olhar o seu 'eu' verdadeiro no espelho; que persistem pagando os estudos, mesmo com mensalidades atrasadas, pois sustentam pais doentes; jovens que suportam pressões e dores imensas, como ter um irmão drogado que já tentou suicídio várias vezes; outros que se dizem tímidos, se consideram incapazes ou se sentem diminuídos, discriminados, por colegas ou pela sociedade.
Professorar é treinar não somente as competências técnicas, mas educar as comportamentais, mais sutis, subjetivas e intangíveis, como comunicação; relações interpessoais; criatividade; flexibilidade; trabalho em equipe; trabalho sob pressão e aceitação de desafios, essenciais para sobreviver, ascender e se diferenciar num mercado de trabalho tecnológico, econômica e culturalmente mutante. Consiste em cativar e cultivar valores pessoais corretos, bons, respeitosos em relação a si e aos outros e compartilhá-los por meio de um olhar acolhedor, humilde, da escuta atenta e de palavras de incentivo em relação às esperanças de novas conquistas, como comprar o primeiro computador pessoal; ter acesso a Internet e ser a primeira pessoa da família a ter um curso superior.
A Educação no Brasil, ao contrário do que muitos pensam, não é um caso perdido. Ela é feita de 307 mil professores (MEC, 2009) que acreditam que fazer sua parte e poder colaborar com o desenvolvimento alheio faz, sim, muita diferença. Comparo o professor a milhares de comunidades colaborativas, grupos de discussão ou indivíduos que criam sites, blogs ou videologs temáticos; eles têm algo - importante - a dizer. O que os motiva primeiramente não é a recompensa financeira, mas promover a autoaprendizagem e disseminar a produção coletiva do conhecimento em áreas de que gostam e cujo conhecimento dominam. Essa é uma prática social que professores também desejam aprofundar, seja em sala de aula ou por meio da Educação a Distância: a partilha do repertório de saberes que cada um encerra em prol do aprimoramento dos indivíduos e da sociedade.
Texto de Melissa Lucchi retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 42, Escala Editora, São Paulo, 2012.
Modo de Sentir (67)
"Renovai-vos pelo espírito no vosso modo de sentir." - Paulo. (EFÉSIOS, 4:23)
Há muitos séculos o homem raciocina, obediente a regras quase inalteradas, comparando fatores externos segundo velhos processos de observação; rege a vida física com grandes mudanças no setor das operações orgânicas fundamentais e maneja a palavra como quem usa os elementos indispensáveis a determinada construção de pedra, terra e cal.
Nos círculos da natureza externa, em si, as modificações em qualquer aspecto são mínimas, exceção feita ao progresso avançado nas técnicas da ciência e da indústria.
No sentimento, porém, as alterações são profundas.
Nos povos realmente educados, ninguém se compraz com a escravidão dos semelhantes, ninguém joga impunemente com a vida do próximo, e ninguém aplaude a crueldade sistemática e deliberada, quanto antigamente.
Através do coração, o ideal de humanidade vem sublimando a mente em todos os climas do Planeta.
O lar e a escola, o templo e o hospital, as instituições de previdência e beneficência são filhos da sensibilidade e não do cálculo.
Um trabalhador poderá demonstrar altas características de inteligência e habilidade, mas se não possui devoção para com o serviço, será sempre um aparelho consciente de repetição, tanto quanto o estômago é máquina de digerir, há milênios.
Só pela renovação íntima, progride a alma no rumo da vida aperfeiçoada.
Antes do Cristo, milhares de homens e mulheres morreram na cruz, entretanto, o madeiro do Mestre converteu-se em luz inextinguível pela qualidade de sentimento com que o crucificado se entregou ao sacrifício, influenciando a maneira de sentir das nações e dos séculos.
Crescer em bondade e entendimento é estender a visão e santificar os objetivos na experiência comum.
Jesus veio até nós a fim de ensinar-nos, acima de tudo, que o Amor é o caminho para a Vida Abundante.
Vives sitiado pela dor, pela aflição, pela sombra ou pela enfermidade? Renova o teu modo de sentir, pelos padrões do Evangelho, e enxergarás o Propósito Divino da Vida, atuando em todos os lugares, com justiça e misericórdia, sabedoria e entendimento.
Texto retirado do livro Fonte Viva; Francisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.
domingo, 6 de abril de 2025
Ler ainda é o melhor remédio
A influência de adultos leitores leva crianças a buscar e apreciar a leitura, ao invés de vê-la como uma obrigação desagradável
Para um professor de Língua Portuguesa ouvir seus alunos dizerem de forma categórica que não gostam de ler é tão desconfortável quanto deve ser para um cozinheiro ver suas iguarias rejeitadas ou para um artista ter as suas obras ignoradas. Então, sempre que ouço alguém dizendo que não gosta de ler me pergunto: qual será a trajetória de vida dessa pessoa? O que a distanciou da leitura?
Esses questionamentos são feitos quando se trata de um adulto, mas quando tais palavras saem da boca de uma criança, aí penso: acho que ainda posso fazer algo para reverter tal situação. Não que com um adulto seja inviável, mas é que na infância é possível trabalhar com essa situação de forma mais sutil e eficaz, através do encantamento e não por meio da razão e de argumentos como: "você precisa ler para melhorar a sua redação", ou, ainda, "a leitura é necessária para que seja alguém mais esclarecido".
Os pequeninos tendem a ser mais flexíveis e atraí-los fica muito mais fácil. No entanto, há muitos que não têm acesso nem sequer ao básico para sobreviver. Deixar uma criança sem livros é tão cruel e daninho quanto privá-la da alimentação, saúde e moradia. A leitura é o alimento que sacia uma necessidade natural do ser humano: o saber, a busca pelo conhecimento. Mas, se é algo tão natural, ler não deveria ser como respirar, piscar os olhos, andar? Infelizmente, não é assim que funciona. É preciso estimular, fomentar o gosto por tal prática, trazer à tona uma semente que necessita ser regada com incentivo, demonstração de amor, exemplos.
Sim, crianças precisam de bons exemplos e isso deve ser feito na escola, nas creches, no lazer, na casa dos pais, tios e avós, enfim, em tudo que envolva a vida da criança, porque só assim ela vai entender que a leitura é um hobby e não uma obrigação escolar, uma prática penosa, enfadonha, desvinculada do prazer. Pais leitores geram filhos leitores e o inverso também é verdadeiro.
Certa vez, nos tempos da faculdade, ouvi uma professora contando que em sua casa havia livros e revistas em toda parte. Até no banheiro do quarto da sua pequena filha havia uma cestinha com várias revistas em quadrinho e livros. Concluí então que o contato constante com qualquer objeto ou coisa torna-se íntimo e gera afeto, exemplo disso é o que acontece na relação com os animais. Crianças que convivem com animais de estimação, geralmente, sentem afeição por eles e isso perdura por toda vida. Por isso, a relação entre a criança e o livro deve ser cultivada dia após dia por profissionais da educação, pais, irmãos, parentes, amigos...
A etimologia da palavra ler remete ao latim legere: escolher, pegar, colher. Podemos dizer que ao ler escolhemos e pegamos as letras, colhemos as palavras que estão dispostas no papel, nas paredes, telas ou em qualquer suporte. Ler, inspirada no conceito de Paulo Freire, é ainda, aprender a interpretar o mundo, é ir além das letras. Fazendo uso das metáforas: é o remédio que cura a cegueira.
UMA MUDANÇA DE POSTURA
Quando falei, no início, que o processo de conquista na infância acontece pelo encantamento, referi-me à possibilidade de mostrar às crianças quão maravilhoso é entregar-se por inteiro às aventuras dos personagens travessos e mágicos que ganham vida na imaginação de cada "leitorzinho" que passeia os olhos pelas páginas preenchidas de histórias fantásticas.
Decerto, no mundo atual, falar sobre livros impressos e leitura parece tão medieval. Em meio a tablets, smarthones, sites e jogos eletrônicos, às vezes práticas simples se perdem no turbilhão tecnológico. Em uma era onde o tempo é curto e a velocidade dos gigabytes é o que importa é necessário dizer a uma criança que o prazer de ler reside na morosidade e que entregar-se à leitura é uma prática que não exige velocidade, pois, o deleite está em aproveitar cada palavra, cada linha e se perder no tempo é o que vale a pena.
Na escola, após o período de alfabetização, muitos alunos começam a repudiar a leitura porque são atraídos pelos encantos dos jogos e da TV disponíveis livremente em casa. Na sala de aula, a leitura não lhes é apresentada como algo lúdico, divertido; pelo contrário, a leitura torna-se mecânica, forçada. Os textos oferecidos, não raras vezes, são pouco interessantes, não aguçam a curiosidade dos iniciantes e ainda imaturos leitores.
Em alguns casos, meninos e meninas, nas séries iniciais, ainda são encaminhados para o caminho da leitura, mas os anos passam, as séries avançam e ler passa a ser atividade avaliativa, as obras indicadas, nem sempre estão de acordo com a idade do aluno, então datas, resumos forçados e notas são cobrados e o que era para ser diversão passa a ser uma tarefa realizada em motivação, focada apenas no interesse quantitativo, no valor a ser adquirido através daquele leitura.
Mas, por que isso acontece? Essa questão envolve alguns fatores, dentre eles estão os cronogramas engessados que priorizam quantidade e não qualidade. Envolve também uma realidade um tanto dolorosa e delicada: professores que não são leitores, docentes que não gostam de ler não conseguem estimular os seus ouvintes. Então, como defender uma causa se não se tem por ela a paixão necessária para provocar admiração no outro? Impossível engendrar no aluno o gosto por algo quando ele não percebe no adulto a veracidade nas palavras. Como o professor pode começar a falar sobre uma obra literária se ele próprio nunca passou pela experiência de degustar tal leitura?
Não adianta investir somente um cursos de "reciclagem" e/ou de formação continuada se não tivermos professores apaixonados; sim, deve existir e prevalecer entre o profissional e a leitura uma relação passional.
Enfim, formar leitores deve ser a missão primordial dos nosso educadores e o maior investimento dos pais. A leitura não deve restringir-se ao best seller ou aos clássicos literários, o verdadeiro leitor é aquele capaz de "devorar" textos de todos os gêneros, é aquele que caminha com leveza pelos contos machadianos e chega aos escritos mais atuais como as crônicas de Veríssimo, pois não despreza a leitura pela simples curiosidade de aprender, de saber mais.
Texto de Carla Cunha retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, Número 41, Escala Educacional, São Paulo, 2012.