sábado, 5 de dezembro de 2020

O Amigo Ideal

 Sentimentos desencontrados se entrechocam nas tuas paisagens íntimas.

Em certos momentos, estás a ponto de explodir, tal a soma de desespero que te desgoverna, e, noutras ocasiões, pensas em parar, em desistir de tudo, tal o acúmulo de sofrimentos que te conduzem à exaustão.

Gostarias de encontrar um amigo paciente e esclarecido, com quem pudesses desabafar, deixar que todas as tuas inquietações desfilem, encontrando compreensão e diretrizes.

Sentes necessidade de novos afetos, como se fossem bálsamo salutar para o teu coração ralado de suspeição e tormentos.

Vês outras criaturas, sorridentes e felizes, que desfilam, dando a impressão de que a vida delas é um agradável convescote ou um carnaval permanente.

Como, porém estás equivocado!

A existência carnal é igual para todos os que se encontram na Terra, variando a circunstância e a intensidade das ocorrências para cada homem.

Corrige, desse modo, a tua óptica e cuida mais do teu critério de avaliação.

A aparência é a capa luminosa ou sombria que oculta a realidade.

Quem te veja e desconheça o que se passa em teu foro íntimo, se não te queixares, terá a impressão de que vives bem aquinhoado pela felicidade, enriquecido pelos favores do prazer...

Tu, porém, sabes que não é bem assim, o que se passa contigo, da mesma forma que não é, quanto supões, tão áspera e desditosa a tua marcha.

Se reflexionares melhor, constatarás que o número de bênçãos suplanta os teus questionamentos queixosos.

Relaciona o que possuis e quanto te favorece, em referência a outros que não dispõem desses valores e conquistas.

Ninguém, no mundo físico, pode desfrutar de tudo quanto gostaria, pois que se o conseguisse já fruiria do "Reino dos Céus" que, afinal de contas, não tem lugar na esfera física.

Este amigo, que exibe felicidade e paira na opulência, invejado e cercado de carinho atormenta-se, intimamente insatisfeito com a vida, sentindo-se obrigado a manter a aparência, escondendo-se, magoado.

Essa dama, que se apresenta adornada de joias finas e caras, requestada por uns e por outros invejada, disfarça, nos sorrisos, pesadas frustrações conjugais que ninguém imagina.

Aquele jovem, bem apessoado, que conquista o futuro com audácia, envolvido num halo de triunfo, iridescente como uma estrela e conquistador como a luz, amarga-se, nas horas distantes do público, vencido por conflitos desconhecidos de todos.

A moça, que passa deslumbrante, vendendo beleza e juventude, qual fosse uma deusa renascida das páginas mitológicas, desprezando candidatos ou entregando-se a dissipações absurdas, aturde-se em confuso estado de timidez, que a desconcerta e vence.

A legião dos felizes-infelicitados cresce, diariamente, e as suas estatísticas são assustadoras, especialmente nas áreas das patologias da loucura, do vício, das fugas espetaculares.

Há muito mais ilusão e sonhos tornados pesadelos do que imaginas.

A visão azul do cosmo não é real...

A Terra é educandário e não jardim edênico.

Da mesma forma que anelas por aquele amigo que te pudesse ajudar na solução das tuas dificuldades, alguém te observa, supondo que o és para as necessidades dele.

Mesmo que não o sejas, esforça-te por te tornares.

Ao invés de dependeres, de pedires, passa a doar, a socorrer.

Começa, mediante pequenas tarefas gratificantes do amor fraterno.

Assume singelos deveres; gera alegria em tua volta; produze bem-estar; pensa em alguém com simpatia; supera o azedume...

Tentativas de renovação culminam em conquistas, em realizações edificantes.

Assim fazendo, tua mente abrirá espaço para ouvir a orientação anelada, e os sentimentos renovados propiciarão a tua sintonia com o Amigo Ideal, que é, que espera somente Lhe concedas o ensejo de ajudar-te e conceder-te a alegria que buscas.


Texto de Divaldo Franco, pelo espírito Joanna de Ângelis retirado do livro Momentos de Coragem, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

domingo, 29 de novembro de 2020

Negritude

Trago em meu peito
as marcas do açoite
na pele cor de noite que
o bronze esculturou
tenho no meu sangue
o elã da madrugada
de cada encruzilhada
que Angola me deixou

Sou filha do atabaque
do som dos retirantes
do congo, dos amantes
caçados no Sudão

Da música de Gana
das flautas de Uganda
das festas de Luanda
tambores do Gabão

E desses ancestrais
da Argélia ao Senegal
nasceu meu carnaval
e dele sou herdeira
e mostro com orgulho
ao mundo, à terra inteira
meu ritmo, meu viço
de negra brasileira
negra bras
negra brasi
negra brasilei
negra brasileira

Música de Irinéia Maria e Paulo Cezar Feital que dava título ao então LP Negritude de Zezé Motta lançado em 1979.

Trecho 47 de Arnaldo Antunes

 A chuva derrubou as pontes. A chuva transbordou os rios. A chuva molhou os transeuntes. A chuva encharcou as praças. A chuva enferrujou as máquinas. A chuva enfureceu as marés. A chuva e seu cheiro de terra. A chuva com sua cabeleira. A chuva esburacou as pedras. A chuva alagou a favela. A chuva de canivetes. A chuva enxugou a sede. A chuva anoiteceu de tarde. A chuva e seu brilho prateado. A chuva de retas paralelas sobre a terra curva. A chuva destroçou os guarda-chuvas. A chuva durou muitos dias. A chuva apagou o incêndio. A chuva caiu. A chuva derramou-se. A chuva murmurou meu nome. A chuva ligou o para-brisa. A chuva acendeu os faróis. A chuva tocou a sirene. A chuva com a sua crina. A chuva encheu a piscina. A chuva com as gotas grossas. A chuva de pingos pretos. A chuva açoitando as plantas. A chuva senhora da lama. A chuva sem pena. A chuva apenas. A chuva empenou os móveis. A chuva amarelou os livros. A chuva corroeu as cercas. A chuva e seu baque seco. A chuva e seu ruído de vidro. A chuva inchou o brejo. A chuva pingou pelo teto. A chuva multiplicando insetos. A chuva sobre os varais. A chuva derrubando raios. A chuva acabou a luz. A chuva molhou os cigarros. A chuva mijou no telhado. A chuva regou o gramado. A chuva arrepiou os poros. A chuva fez muitas poças. A chuva secou ao sol.


Texto de Arnaldo Antunes retirado do livro as coisas, Editora Iluminuras, São Paulo, 2000.

Trecho 41 de Arnaldo Antunes

 O vidro quebra mas não derrete. O plástico derrete mas não quebra. Assim são os óculos. Estrutura plástica para lentes de vidro. O espelho mostra, o vidro deixa ver. Assim são os vidros. O mármore é usado nos túmulos. A madeira polida não solta farpas. As bolhas quando estouram não deixam cacos. O vidro não apodrece, nem na umidade, nem debaixo da terra. Depois de anos enterrados os mortos míopes, sobram apenas os ossos e os óculos. E quando não restarem mais os ossos ainda estarão intactos os óculos. Se o vidro for negro os olhos desaparecem. Assim são os óculos escuros. Mostram mas não deixam ver. O ferro cromado não enferruja. O vidro da janela retém a chuva mas deixa passar as cenas. A água parada espelha como prata. Assim é a água. Se houver luz de um só lado o vidro espelha, como a água parada. A prata depois de anos preteja. Assim é a prata. A pedra quando afunda turva a água. Assim é a pedra.


Texto de Arnaldo Antunes retirado do livro as coisas, Editora Iluminuras, São Paulo, 2000.

Trecho 87 de Arnaldo Antunes

 O inverno é eterno no polo norte. Os dias dilatam no verão. A água gira em sentido anti-horário nos ralos das pias do japão. A patagônia fica ao norte do polo sul. A groelândia fica ao sul do sul do sul da patagônia. O mundo é redondo. Um país ao leste pode estar a oeste se você for pelo caminho mais comprido. Os carrinhos de aeroporto no brasil são empurrados, como os carrinhos de bebê e os de supermercado. Os carrinhos de aeroporto dos estados unidos são puxados. Os chineses e os yanomamis e os tailandeses e os ticuna e os bororo e os vietnamitas têm os olhos puxados. Os relógios da suíça têm um ponteiro maior que o outro, como os outros. As bússolas de marrocos têm um ponteiro, como as outras, só. A terra do fogo é fria. A areia do saara é como a areia da praia, mas fica longe do mar. O mar cerca todos os lugares. O saara fica longe de qualquer lugar. As cidades crescem mas os continentes continuam do mesmo tamanho; crescem na maré baixa e encolhem na maré cheia. A guiana francesa fica longe da frança. A áfrica do sul é na áfrica. O equador fica no meio do mapa. O hawai fica no meio do mar.


Texto de Arnaldo Antunes retirado do livro as coisas, Editora Iluminuras, São Paulo, 2000.

* o autor escreveu todos os nomes próprios com letra minúscula!!

sábado, 28 de novembro de 2020

O Teu Deus Interno

 Periodicamente, o tresvario humano, cansado de desgastar aquele que lhe tomba nas malhas, investe, furioso, contra Deus, em uma forma doentia de afirmar-se na paisagem torpe onde predomina.

Logo após a Revolução Francesa, o cidadão Jacques Duport, entusiasmado com a derrocada da Casa dos Bourbons, pretendeu destronar Deus do Universo, proclamando: - "Natureza e Razão, são esses os meus deuses."

Acompanhado por outros cérebros e vozes apaixonadas, viu a decadência dos seus postulados, à semelhança de Heine, que também O negara antes, morreu "adorando a Deus".

Mais tarde, Nietzsche, colocava nos lábios da sua personagem central, retratando a sua própria aflição: "Acabo de matar Deus, pela Sua desnecessidade no mundo", repetindo a façanha daqueles que se arvoravam a destruí-lO com as armas do materialismo que os decepcionou amargamente.

Mais recentemente, Challemel Lacour, substituto de Renan, na Academia Francesa de Letras, repetiu o estertor dos antepassados, declarando: "Ciência e Razão, eis os meus deuses", acompanhando, logo depois, as conquistas do Conhecimento, que lograva defrontá-lO na raiz das suas descobertas.

E, não há muito, teólogos holandeses inquietos, participando do coral aflitivo das alucinações dos anos sessenta, insistiram: - "Cremos em Jesus, mas não em Deus", constatando, de imediato, a inatingibilidade d'Ele, pelos pesquisadores da Física Nuclear, da Astrofísica, da Astronomia e de outros ramos da Ciência como da Tecnologia, que apenas Lhe vislumbram a existência.

Por mais que o homem fuja de Deus, arranjando substitutivos transitórios, mediante explicações sofistas umas e estapafúrdias outras, Ele ressurge e mantém-se impenetrável na Sua realidade invencível.

Alguns avançados cientistas apresentam equações complexas que parecem dispensar Deus no ato da criação do Universo e falam sobre a Grande Explosão, para elucidar-lhe o aparecimento. E não elucidam os fenômenos precedentes.

Diversos estudiosos denominam-nO como a "Força que agita o elétron" e, penetrando no mundo subatômico, procuram demonstrá-lO como efeito da ignorância cultural daqueles que não estudaram as partículas elementares que se perdem na área de concepções audaciosas.

Há quem O desdenhe, por descobrir as imperfeições que detecta no Cosmo e na Vida.

A todos, porém, Deus sobrevive, e comanda a Sua Obra.

Jesus O chamou, sem qualquer atavio, Pai.

Outros mestres O denominaram "Criador Incriado".

Einstein concluiu pelo "Poder pensante e atuante fora do Universo".

João Evangelista nomeou-O como "Amor".

Chamemo-lO, porém, " Alma da Natureza " ou " Acaso ", " Matemática Transcendente " ou " Força Cósmica Imanente-Transcendente ",  Deus é a Fonte Eterna Geradora de Vida, que nos criou e aguarda por nós.

Interrogando os Guias da Humanidade, a respeito do "que é Deus", aqueles Mentores nobres responderam a Allan Kardec: - "Deus é a Inteligência Suprema do Universo, causa primária de todas as coisas."

Medita sobre a tua pequenez e fragilidade.

Considera a tua mente e os teus sentimentos.

Interroga as tuas aspirações e necessidades.

Questiona a transitoriedade da tua vida física.

Reflexiona quanto à celeridade com que o tempo se esvai no relógio das horas.

Raciocina sobre o amor e busca senti-lo.

Dá-te ao bem, ao próximo e, inevitavelmente, encontrarás Deus dentro de ti, pulsando, amando e conduzindo-te no rumo da plenitude.

Acalma-te e deixa-te por Ele conduzir.


Texto de Divaldo Franco, pelo espírito Joanna de Ângelis, retirado do livro Momentos de Alegria, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014,  4ª Edição.

sábado, 21 de novembro de 2020

Arquitetura da Luz II

Até onde podemos crer sem desconfiar
nos inconfessáveis artifícios da luz?
Arquitetando nossos rostos e cenários
ora graves, ora em expansão como uma maré
de agosto, a todo momento somos vítimas
do entrelaçado jogo dos reflexos que nunca
compactua com a demarcação da realidade.

Enquanto na sombra o que somos
se evidencia mais claramente, nítido
se norteia o rumo das certezas e em nós
nenhum receio de não captar as fronteiras
das revelações. Tudo se mostra e se expõe
numa disposição de linhas inalteráveis
como na pauta a simbologia de uma canção.
Ciranda recifense
e outras canções

Poema de Bartyra Soares retirado do livro "Arquitetura da Luz", Editora Baraúna, Recife, 2004.

Arquitetura da Luz I

Apenas da luz um arabesco e a sombra
já não se nos impõe definitiva.
Erigindo, desarmando, regendo a esperança
sob a planta de nossos pés, a sutil
e ao mesmo tempo ousada dança dos reflexos
leva-nos às mais inesperadas aventuras
ultrapassando percepções e limites.

E nossos passos sempre tão leves
tão descalços, de súbito atrevem-se aos mais
esconsos desfiladeiros. Nossos olhos
outra vez emersos de um sono sem mitos
lançam-se na busca do percurso das estrelas
que caem nos poemas, nas fontes, nas vidraças
impulsionando-nos à renovação dos desejos.

Poema de Bartyra Soares retirado do livro "Arquitetura da Luz", Editora Baraúna, Recife, 2004.

Tema e Voltas

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se o meu pensamento
É livre na noite?

Poema de Manuel Bandeira retirado do livro "Os Melhores Poemas de Manuel Bandeira", seleção de Francisco de Assis Barbosa, Global Editora, São Paulo, 6ª Edição, 1993.

Tudo Outra Vez

Há tempo (muito tempo) que eu estou longe de casa,
E nessas ilhas cheias de distância
O meu blusão de couro se estragou.
Ouvi dizer num papo da rapaziada
que aquele amigo que embarcou comigo,
cheio de esperança e fé, se mandou.

Sentado à beira do caminho pra pedir carona,
tenho falado à mulher companheira:
- Quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil!
E um cara que transava à noite no "Danúbio Azul"
me disse que faz sol na América do Sul
que nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil.

Minha rede branca! Meu cachorro ligeiro!
Sertão! Olha o Concorde que vem vindo do estrangeiro:
o fim do termo "SAUDADE" como um charme brasileiro
de alguém sozinho a cismar.
Gente de minha rua! Como eu andei distante!
(Quando eu desapareci, ela arranjou um amante
Minha normalista linda! Ainda sou estudante
da vida que eu quero dar.

Música de Belchior lançada no CD "Medo de Avião", também conhecido como "Era uma vez um homem e seu tempo", em 1979.