sábado, 18 de dezembro de 2021

Olodumaré, o deus supremo

 Na mitologia iorubá, Olodumaré, conhecido também como Olorum, é o deus supremo que criou o universo e a vida.


Para muitos, Olodumaré é um deus que está fora da compreensão humana, por ser ditante e inacessível aos seres humanos. Ele separou o imaterial do material. O imaterial se refere ao infinito, o orum, habitado por seres sobrenaturais e entidades conhecidas como araòruns. É nesse local que habitam os antepassados e os orixás. O material se refere ao aiye (Terra), o mundo habitado pelos humanos, seres naturais.

Em algumas tradições, orum se situa no céu. Em outras, ele se localiza abaixo da terra. Essa ideia pode aparentemente ser comprovada durante as oferendas aos orixás, quando o sangue de animais sacrificados é derramado em um buraco cavado na terra, em frente ao local consagrado ao deus.

Para manter o controle sobre sua criação, Olodumaré, conhecido também como Olorum, criou os orixás que governam o mundo e suas criaturas. Cabe a ele resolver as questões e atritos entre os orixás.

Cada orixá é representado de forma material pelos elementos, e simboliza um arquétipo de atividade, de função, de profissão. No conjunto, eles se complementam e representam as forças que regem o mundo. É por meio deles que os homens dirigem suas preces e fazem oferendas a Olodumaré.

Os atributos de Olodumaré são: Único, Criador, Onipotente, Juiz e Eterno. Ele é considerado como "a poderosa e inalterável rocha que nunca morre" (Oyigiyigi Ota Aiku). Apesar de não receber cultos diretamente, sempre que uma divindade é cultuada, a saudação se inicia com a expressão Asé (axé), que significa "Possa Deus aceitar isso".

A relação entre os homens e os orixás se apresenta de uma forma mais complexa do que se pode imaginar. Para compreender essa relação é necessário observar algumas crenças dos iorubás. Para eles, tanto a vida quanto a morte são sagradas. Em todos os seus rituais eles consagram tanto a Terra quanto o Céu.

Eles acreditam na existência de várias almas. A primeira seria o princípio da existência, a respiração, o émi, dado aos homens por Olorum. Outra alma seria aquele que sempre segue o homem, a ojji, a senhora. A mais importante seria a alma ancestral, eledá ou ipòri, que está associada ao destino dos homens, à reencarnação e ligada à cabeça do homem, o ori. Segundo a tradição, é essa alma que comparece diante de Olorum antes de renascer um novo corpo.

Cada ori - cabeça - é modelada no orum pelo orixá Àjàtá, que tem o auxílio de Oxalá e das entidades ligadas ao destino, os odus - Èjiobe, Oyéku-méji, Irósun-méji, òwórín-meji, Òbára-méji, Okanràn-méji, Osá-méji, Òtürúpòn-méji. Òtüá. Dessa forma, cada cabeça é modelada formando o ipòri, a alma ancestral, de cada pessoa.

Se, por exemplo, Àjàlà usa a pedra ao criar a pessoa, ela deverá cultuar Ogum na Terra. Se for usada a água, o culto deverá ser feito aos orixás do elemento água, como Oxum e Yemanjá.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial - Orixás, nº 46, Mythos Editora, São Paulo, 2010.

Em favor dos Enfermos

 Na grande área dos serviços fraternos de socorro ao próximo, demandando a ação da caridade, a cura das mazelas orgânicas, emocionais e mentais é de vital importância.

Certamente, mais delicado é o desafio da saúde moral, graças ao qual os fenômenos fisiopsíquicos assumem alta significação, apresentando-se como respostas inevitáveis.

O ideal, portanto, é trabalhar-se os valores íntimos do homem, de cuja harmonia deriva o bem-estar. Entretanto, na impossibilidade de conseguir-se a realização plena, no campo das causas, o empenho por minimizar-se os efeitos perniciosos assume significação relevante, por propiciar requisitos que facultam a instalação das fontes saudáveis na organização perispiritual.

Para que se logrem resultados favoráveis, é indispensável que o agente possua condições mínimas que sejam, a saber: harmonia interior, que decorre de uma conduta sadia; sentimentos de amor, que propiciem vibrações positivas; espírito de abnegação; saúde física e mental, de modo que a bioenergia, que se deseje doar, carreie forças restauradoras e atue nos centros vitais, gerando células sãs, portadoras de equipamentos harmônicos.

Ocorre, às vezes, que alguns instrumentos das curas contradizem esses itens mínimos, porém, eles próprios são pacientes, nos quais as enfermidades ainda não se manifestaram, apesar de já instaladas.

Agem para o bem, sem consciência do que lhes pode fazer bem.

Toda e qualquer pessoa forrada de bons propósitos pode e deve auxiliar o seu próximo, quando enfermo.

Não é exigível que aplique esta ou aquela técnica, sempre dispensável. Mas é essencial que se haja educado para o mister e procure, sinceramente, ajudar.

A irradiação da mente concentrada no bem, em favor de alguém, opera admiráveis resultados.

Unida à aplicação dessa energia, com as mãos distendidas, sem ruído ou ritual, a magnetização da água completa a operação socorrista, ao ser ingerida pelo paciente.

A sociedade, como um todo, necessita do equilíbrio e da saúde, no entanto, é no homem, como célula valiosa, que se deve iniciar o labor terapêutico.

É claro que muitos atletas, portadores de saúde física, são, por outro lado, expressões de conduta infeliz, perniciosa.

Os apologistas das raças superiores preocupam-se com os físicos ideais e portadores de linhas que expressem a procedência genética, despreocupados com os seus valores éticos e morais.

A saúde real é resultado da homeostase, vigente no homem, na qual o físico e o emocional se harmonizam perfeitamente.

Jesus curava e concedeu aos discípulos a faculdade de recuperar os enfermos.

Mantinha, no entanto, uma regra severa para a preservação da saúde, que era a recomendação em favor da conduta moral de modo que não lhes acontecesse nada pior.

A mente é fonte geradora de energias que esparze conforme as inclinações do espírito, sendo fator de infortúnio, como de felicidade, para si mesmo e para os demais.

Assim, orando, exercita os teus recursos latentes, canalizando-os em favor dos enfermos e recomendando-lhes mudanças de comportamento mental e moral para melhor, assim contribuindo para que a sociedade humana seja mais feliz.


Texto retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 5ª Edição, 2014.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Vem Comigo

 Pede a saideira que agora é brincadeira

E ninguém vai reparar

Já que é festa, que tal uma em particular?

Há dias que eu planejo impressionar você

Mas, eu fiquei sem assunto...


Vem comigo, no caminho eu te explico

Vem comigo, vai ser divertido, vem comigo...


Vem junto comigo que eu quero te contaminar

De loucura até a febre acabar

Há dias que eu sonho beijos ao luar

Em ilhas de fantasia


Há dias com azia, o meu remédio é o teu mel

Eu sinto tanto frio no calor do Rio

Já mandei olhares prometendo o céu,

Agora eu quero é no grito!


Vem comigo, no caminho eu te explico

Vem comigo, vai ser divertido, vem comigo...


Música de Cazuza, Guto Goffi e Dé gravada por Crikka Amorim em seu CD No Ponto lançado pela Camorim Discos em 2004.

sábado, 11 de dezembro de 2021

Ação da Amizade

 A amizade é o sentimento que imanta as almas umas às outras, gerando alegria e bem-estar.

A amizade é suave expressão do ser humano que necessita de intercambiar as forças da emoção sob os estímulos do entendimento fraternal.

Inspiradora de coragem e de abnegação, a amizade enfloresce as almas, abençoando-as com resistências para as lutas.

Há, no mundo moderno, muita falta de amizade!

O egoísmo afasta as pessoas e as isola.

A amizade as aproxima e irmana.

O medo agride as almas e as infelicita.

A amizade apazigua e alegra os indivíduos.

A desconfiança desarmoniza as vidas e a amizade equilibra as mentes, dulcificando os corações.

Na área dos amores de profundidade, a presença da amizade é fundamental.

Ela nasce de uma expressão de simpatia e firma-se com a raízes do afeto seguro, fincadas nas terras da alma.

Quando outras emoções se estiolam no vaivém dos choques, a amizade perdura, companheira devotada dos homens que se estimam.

Se amizade fugisse da Terra, a vida espiritual dos seres se esfacelaria.

Ela é meiga e paciente, vigilante e ativa.

Discreta, apaga-se, para que brilhe aquele a quem se afeiçoa.

Sustenta na fraqueza e liberta nos momentos de dor.

A amizade é fácil de ser vitalizada.

Cultivá-la, constitui um dever de todo aquele que pensa e aspira, porquanto, ninguém logra êxito, se avança com aridez na alma ou indiferente ao enlevo da sua fluidez.

Quando os impulsos sexuais do amor, nos nubentes, passam, a amizade fica.

Quando a desilusão apaga o fogo dos desejos nos grandes romances, se existe amizade, não se rompem os liames da união.

A amizade de Jesus pelos discípulos e pelas multidões dá-nos, até hoje, a dimensão do que é o amor na sua essência mais pura, demonstrando que ela é o passo inicial para essa conquista superior que é meta de todas as vidas e mandamento maior da Lei Divina.


Texto retirado do livro Momentos de Esperança; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Aos Santos Inocentes

 Depois da Noite de Festa, aos sete e nove anos, recordo-me ter sido levado pela ama Benvenuta de Oliveira, Utinha, para um almoço em companhia de uns meninos e meninas na Rua Ferreira Chaves e depois na Avenida Sachet (Duque de Caxias), em Natal. Ao fundar, fomos brincar enquanto as acompanhantes serviam-se de um cardápio trivial. Houvesse anormalidade, teria lembrança. Nessa época, viajando de Natal ao Recife pela Estrada de Ferro, dormia-se em Guarabira, Paraíba, prosseguindo-se na manhã seguinte. Meus pais hospedavam-se na residência de um comerciante, Saraiva, magro, solene, conversador. Lembro-me que numa destas vezes, creio que em 1908, deixamos a casa em plena efervescência festiva para um almoço às crianças. Pertencendo à classe dos credenciados, lamentei continuar a jornada sem saborear os quitutes que a Senhora Saraiva dedicaria aos pequenos paraibanos. Trinta anos depois atinei tratar-se de uma devoção aos Santos Inocentes, 28 de dezembro, constando caracteristicamente de uma refeição às crianças, máximo de oito anos. As meninas deveriam ter menos idade porque ficam "sabidinhas" muito mais cedo.

Na cidade de Salvador essa festa convergiu para os Santos Cosme e Damião, 27 de setembro, correspondendo aos Ibejes dos pretos nagôs, o Caruru dos Meninos, que terminou não tendo dia certo para a realização. De origem cristã e divulgação familiar, vulgarizou-se como sendo um culto africano por influência dos Candomblés sudaneses na Bahia e áreas sujeitas a sua jurisdição supersticiosa. Indubitavelmente existiu no Rio de Janeiro, onde há vestígios da comemoração doméstica e digestiva aos Santos Inocentes, primeiros mártires em louvor do recém-nascido Jesus de Nazaré. Pereira da Costa já não a registra no Recife, onde será de impossível ausência. Teria havido da Paraíba para todo o Norte porque ainda é contemporânea em Belém do Pará, cidade mística. Direi mesmo, aquém do Rio São Francisco. Para o Sul e Centro, ignoro, mas a presença será ecologicamente lógica.

Pelo interior do Pará as festas íntimas a São Lázaro, 11 de fevereiro, São Roque, 16 de agosto, a Promessa aos Cachorros, incluem, às vezes, convites a um certo número de crianças ou de virgens, presumíveis inocentes.

Na Europa católica, notadamente na França, os Saints Innocents possuíam comemoração popular e burlesca, mesmo na Corte, confundindo-se com a "Festa dos Loucos": Fête des Saints Innocents, dite aussi. Fête des Fous, com amplas liberdades licenciosas, fazendo-se proibir em meado do século XV mas sempre funcionando na predileção jubilosa e erótica de Paris sob a dinastia dos Valois. Cem anos depois da proibição ainda motivada a novela XIV no Heptaméron da Rainha Marguerite de Navarre, para onde envio a possível curiosidade.

Na Sé de Lisboa, véspera do Santos Inocentes, os meninos do coro elegiam entre eles o Bispo Inocente, até o dia seguinte governando o clero, visitando igrejas, distribuindo bênçãos, saindo em procissão, com o mesmo cerimonial litúrgico do verdadeiro prelado. Lembrava o Imperador do Divino, com as efêmeras prerrogativas majestáticas. O reverendo Cabido da Catedral oferecia um lauto jantar aos jovens coristas. Seria a origem do ágape, no mínimo desde o século XVIII, julgado pelo Povo ato devocional por ser promovido pelas autoridades eclesiásticas com anuência do Arcebispo.

No meu tempo de sertão não havia mostras religiosas exteriores, exceto dois Padre-Nossos e três Ave-Marias rezadas pelas velhas donas menos às vítimas meninas do Rei Herodes que aos "Anjos", falecidos "antes da idade da Razão", incluídos na polifonia celestial. Decorrentemente ocorreu nas populações vizinhas, idênticas em sangue, mentalidade, índice cultural. Faziam-na em Guarabira, Fortaleza, Parnaíba, Tutóia. Não seria oblação seguida e regular mas "Promessa" à Nossa Senhora da Conceição, outra invocação e possivelmente aos próprios Santos Inocentes, patronos infantis, com a Anjo da Guarda, face imutavelmente juvenil e louçã. Lentamente os Santos Inocentes, com bem pouca representação plástica, diluíram-se como centro intencional rogatório. A refeição é que restou articulada à outra entidade celícola, sempre no intuito de alegrar crianças numa compensação ideal ao martírio sofrido na Judeia. Festa privada sem nenhuma intervenção sacerdotal. As crianças não oram nem cantam. Comem, bebem refrescos. Brincam depois, Maria de Belém Menezes, colaboradora admirável, informa-me do Pará: - "A Sra. D. Clarisse Rodrigues da Silva relatou que no dia 16 de agosto fez um Almoço dos Inocentes em homenagem a São Roque. Anos há em que ela faz o almoço a 23 de agosto, dia de São Benedito, pois é pobre e junta os dois Santos numa só Festividade, mas o Santo homenageado mesmo com o almoço é São Roque. Reúne doze crianças, desde as que já comem "alguma comidinha", até oito anos no máximo. Oferece picadinho, galinha guizada, arroz, macarrão, purê de batatas.

As crianças sentam em esteiras, em torno da toalha estendida no chão.

Terminado o almoço, amigas convocadas lavam as mãos das crianças e jogam a água nas plantas. À noite tem ladainha. Achei interessante ela contar que no meio da mesa põe uma imagem de São Roque (que mostra uma ferida na coxa), acompanhada de duas velas acesas e um copo d'água.

Perguntei-lhe para que a água e ela disse que era para a "lavagem dos espíritos" e misericórdia, e que acha que nunca saiu nenhuma briga, nem houve "desarrumação" de bêbados, etc. (o bairro em que está a casa dela é muito atrasado ainda) por causa do copo d'água. Esta, depois de oito dias, é jogada na sapata da casa... Soube de um senhor de nome Antônio Rodrigues, que mora na Travessa Curuzu, 784, Bairro da Pedreira, cuja esposa oferece anualmente um almoço em honra de Nossa Senhora da Conceição a doze crianças. Fui até lá e ela me contou que, estando  gravemente enferma, prometeu a Nossa Senhora da Conceição celebrar-lhe a festa com um almoço para doze crianças, o que vem fazendo há vários anos. Como os filhos estão crescendo, à noite querem festa e, disse-me o marido, a promessa está saindo cara, pois no ano passado (1971) chegaram a gastar, no total do almoço e festa, quase 800 cruzeiros!

O número de convidados será de três (Santíssima Trindade) a doze (os Apóstolos) e mesmo que os Santos inocentes não sejam homenageados nominalmente, reaparece o nome na sugestão dos componentes, Almoço dos Inocentes.

Em Portugal os Santos Inocentes, provocavam ruidosa comezaina, sendo nos finais de dezembro, 27/28, consideravam prolongamento do Natal e antecipação de Ano-Bom e Reis, aquecendo com vinho, canto e bailarico as tardes e noites frias do inverno. Essa "festada" não se aclimatou no Brasil. Nem houve eleição do Bispo Inocente ou a permissão de fustigar as raparigas surpreendidas no sono, donner les Innocents ou bailler les Innocents, no uso francês. Reduziu-se a uma refeição à crianças na idade das sacrificadas pela crueldade do Rei Herodes.

Essa seria a forma devocional, permanecendo na tradição brasileira.


Retirado do livro Superstição no Brasil, de Luís Câmara Cascudo; Global Editora, 2ª Edição, 2002.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Compromisso com a fé

 Qualquer compromisso que se assume impõe deveres que devem ser atendidos, a fim de conseguir-se a desincumbência feliz.

Se te comprometes com a área da cultura sob qualquer aspecto, enfrentas programas e horários, disciplina e atenção, para alcançares a meta pretendida.

Se buscas trabalho e desenvolvimento econômico, arrostas obrigações sucessivas, obediência, ação constante, e através dessa conduta chegarás aos objetivos que anelas.

Se te comprometes com a edificação da família, muitos imperativos se te faz indispensável atender, de forma que o lar se transforme em realidade feliz.

Se aceitas o compromisso social, tens que te submeter a inúmeras condições inadiáveis, para atingires os efeitos ditosos.

Compromisso é vínculo de responsabilidade entre o indivíduo e o objetivo buscado.

Ninguém se pode evadir, sem tombar na irresponsabilidade.

Medem-se a maturidade e a responsabilidade moral do ser através da maneira como ele se desincumbe dos compromissos que assume.

O profissional liberal que enfrenta dificuldades para o desempenho dos compromissos, luta e afadiga-se para bem os atender, mantendo-se consciente e tranquilo.

O operário que aceita o compromisso do trabalho, sejam quais forem as circunstâncias e os desafios, permanece na atividade abraçada até sua conclusão.

Compromisso é luta; é desempenho de dever.

O prazer sempre decorre da honorabilidade com que cada qual se desincumbe da ação.

Em relação à fé religiosa a questão é semelhante.

Quem se apresenta no campo espiritual buscando a iluminação, não tem condição de impor requisitos, mas, aceitá-los conforme são e devem ser seguidos.

Não se trata de um mercado de valores comezinhos, que devem ser leiloados e postos para a disputa dos interesses subalternos.

O compromisso com a fé religiosa é de alta relevância, pois se trata de ensejar a libertação do indivíduo, dos vícios e delitos a que se condicionou, e que o atormentam.

São graves os quesitos da fé religiosa.

Mesmo em se tratando de preservar a liberdade do candidato à fé, ela não modifica os programas que devem ser considerados e aplicados na transformação moral íntima.

Estabelecida a dieta moral, o necessitado de diretriz esforça-se para aplicar, incorporar as lições hauridas no seu cotidiano. Nenhuma modernidade altera as leis da vida, que são imutáveis.

Desse modo, o compromisso com a fé não permite ao indivíduo adaptar a linha direcional da doutrina que busca aos seus hábitos perniciosos e às suas debilidades morais.

E Espiritismo apoia-se moralmente nas lições de Jesus, sendo a sua, a mesma moral vivida e ensinada pelo Mestre.

Adaptar-se essa moral às licenças atuais, aos escapismos éticos em moda, às concessões sentimentais de cada um, constitui grave desconsideração ao excelente conteúdo que viceja no pensamento espírita.

Indispensável que o compromisso com a fé espírita mantenha-se inalterado, sem a incorporação dos modismos perniciosos e perturbadores do momento, assim ensejando a transformação moral para melhor de todos quantos o aceitem em caráter de elevação.

Somente assim, todo aquele que abraça a fé, que luz na Doutrina Espírita, terá condições para vencer estes difíceis dias em paz de consciência, mesmo que sob chuvas de incompreensões e desafios constantes do mal, dos vícios e dos perturbadores.


Texto retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Já Dizia Salomão

Entre a razão e o dinheiro

Quem é quem?

Quem tem razão?

Se a razão for o dinheiro

Dinheiro tá sem razão

Se a razão for o dinheiro

Dinheiro tá sem razão

Eu nunca tive dinheiro

Nasci brasileiro

E toco violão

Mas não troco meu pesqueiro

Pelo teu hidroavião

E a paixão pelo dinheiro

É falta de outra paixão

Já dizia Salomão

Vamos repartir o pão

Que a justiça é infinita

Não obstante

Um tal Rei Midas, tubarão,

Transformou comida em ouro

E morreu de inanição

Vale mais quem vai mais fundo

Do que quem conta tostão

Que a melhor coisa do mundo

Dinheiro não compra não

Vale mais quem vai mais fundo

No fundo do coração

Que a melhor coisa do mundo

Dinheiro não compra não

Entre a razão e o dinheiro

Quem é quem?

Quem tem razão?


Música de Sizão Machado e Jean Garfunkel; é a segunda faixa do CD de Anaí Rosa intitulado Samba Comigo, lançado em 2010 pela Tratore.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Ana Belen e o Brasil

 Ana Belen apaixonou-se pela música e pelas aspirações dos brasileiros. Ela que é uma intérprete constantemente preocupada (na música e na vida particular) com os problemas sociais de seu país. O encontro de Ana com a música brasileira começou há alguns anos atrás, quando ela tomou conhecimento da MPB através de discos enviados por amigos e por sua gravadora no Brasil. "Tive na Espanha, há alguns anos atrás, um grande sucesso com a canção "Quiero ver Brasil", escrita por meu marido, Victor Manuel, onde fazia menção a todos os meus ídolos, Chico, Gil, Caetano, Milton, etc. Daí em diante aumentou ainda mais a minha vontade de conhecer esse país único no mundo". De imediato Ana amou nossa música e nossa peculiar maneira de ser. Gravou O Que Será, de Chico Buarque e o Brasil ficou mais conhecido em sua terra, como nunca antes fora. Um merecido Disco de Ouro para o sucesso de Chico na voz da Ana. Ela quis conhecer mais e mais e resolveu vir ao Brasil para gravar um LP só com músicas de nossos autores. Nos estúdios Sigla (Rio) ficou inteiramente à vontade, sob a produção de Sérgio Carvalho, supervisão de Marcos Maynard e direção musical de Lincoln Olivetti, e gravou vinte músicas, metade em português e metade em espanhol. Neste álbum duplo - apenas promocional e com edição limitada - estão todas essas canções.

Algumas dessas músicas estarão no álbum que Ana lançará brevemente na Europa. Para o disco que será lançado no Brasil em maio, foi escolhido o seguinte repertório: Volto (Ivan Lins), Noche de Máscaras "Noite dos Mascarados" (Chico Buarque, adapt. Victor Manuel San José, participação vocal: Chico Buarque), Paisagem da Janela (Lô Borges & Fernando Brant), Planeta Água (Guilherme Arantes, adapt. Victor Manuel San José), Voar, Voar (Zé Geraldo), Impossível (Fagner, em poema de Florbela Espanca, participação vocal: Fagner), Caminando "Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores" (Geraldo Vandré, adapt. Victor Manuel San José), Expresso 2222 (Gilberto Gil), Teresiña "Terezinha" (Chico Buarque, adapt. Victor Manuel San José), Canção Menina (Ruy Mauriti & José Jorge). O disco foi todo gravado somente com músicos brasileiros, para manter o nosso espírito e o nosso balanço.

ANA BELEN é a nossa embaixatriz musical na Espanha, com toda a força de seu prestígio e de sua popularidade, formando nossa arte ainda mais conhecida do outro lado do Atlântico. "Trabalhar no Brasil foi uma experiência absolutamente fascinante e emocionante, única em toda minha carreira", explica Ana, "Conheci de perto os músicos brasileiros - quentes, sensíveis, profissionalíssimos, amigos. E aumentou minha admiração por Chico Buarque quando nos encontramos e ele gravou "Noche de Máscaras" comigo. Quando Raimundo Fagner compôs especialmente "Impossível" e ele passou toda a emoção que já sentira em suas canções. Sensibilizei-me tremendamente com a música que Ivan Lins fez pra mim - "Volto" -, que tão fortemente retrata minha terra e tantas outras terras. As canções de Zé Geraldo (Voar, Voar) e da dupla Ruy Mauriti & José Jorge (Canção Menina) foram trabalhos novos que passei a conhecer e amar.

Gilberto Gil eu já conhecia, amava e respeitava muito; dele gravei duas músicas muito fortes e rítmicas: "De Onde Vem o Baião" e "Expresso 2222". E os compositores mais jovens do Brasil também estão presentes. Lô Borges (em parceria com Fernando Brant e Guilherme Arantes, um som novo que me fascinou.

E não poderia deixar de gravar o "pai" da música nova do Brasil - Luiz Gonzaga -, um grande inovador da música brasileira regional. Foi excitante ter gravado - dele e de Hervê Cordovil - "A Vida do Viajante", que fala da vida de todos nós, artistas de palco e da estrada.

Queria também mostrar a belíssima diversificação rítmica da música brasileira, especialmente para o público espanhol que a conhece penas através de antigos sambas bossa-nova e dos LPs de Roberto Carlos. Por isso inclui também "Balancê" (João de Barro & Alberto Ribeiro), uma marchinha carnavalesca, o samba-canção "Teresinha", de Chico Buarque, que tem uma linguagem tão própria do sentimentalismo brasileiro, e até mesmo a voz ousada do povo, suas aspirações e esperanças, através da belíssima canção de Geraldo Vandré, "Caminhando", acompanhada de grande coro, provavelmente a mais emocionante do meu disco."


Texto escrito por Francisco Rodrigues na parte interna do álbum lançado no Brasil por Ana Belen em 1982 pela então Gravadora CBS. Foi um disco duplo promocional...

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Santos Tradicionais no Brasil

Meu São Francisco das Chagas

Meu Santo do Canindé!

Eu sei que Santo não voga

Naquilo que Deus não qué


Durante meses em 1947 investiguei a popularidade de alguns Santos na fidelidade brasileira. Viajei e li boletins, arquivos, anuários. Muita conversa com gente velha de cidade, agreste e sertão. Não enfrentei as 3110 paróquias de 1953 quanto mais as do presente. A notícia municipalista é de 1965, IBGE. Informações de Fé, vieram das vozes populares, às quais proclamo confiança plenária.

Falarei ao de leve do orago da paróquia e do seu denominador. O Santo pode estar no altar principal mas não ser padrinho da freguesia. Padroeiro da Sé mas não titular do Bispado. São Pedro é titular da Arquidiocese de Porto Alegre mas a da Catedral é Nossa Senhora Madre de Deus. O titular do Maranhão é São Luís, Rei da França e da Sé, Nossa Senhora da Vitória. Do Recife e Olinda, Santo Antônio e da Catedral, a Transfiguração de Nosso Senhor Jesus Cristo, pouco entendida pelo beaterio. Às vezes é a mesma e única entidade: - Nossa Senhora das Neves na Paraíba, Nossa Senhora da Apresentação em Natal, ambas arquidioceses.

Preferência de Santos sobre Santas. Em 1391 paróquias, 909 Santos paraninfam para 482 padroeiras. Exceto Nossa Senhora nas incontáveis invocações, os homens distinguem o Santo do seu sexo. Leonardo Mota (Violeiros do Norte, 1925) registra a resposta desaforada de um chefe político sertanejo, referindo-se ao desafeto: - "O padroeiro da terra dele é feme, mas o da minha é macho: - mija em pé e não de coca..."

Alinho a relação no ângulo da simpatia. À esquerda as paróquias e à direita municípios e distritos.

Nossa Senhora da Conceição... 288, denominando 22 paróquias, 37 unidades municipais.

Santo Antônio - 228.62, municípios e distritos

São José - 171.80, distritos e municípios

São Sebastião - 144.43

São João - 118.62

Senhora Sant'Ana - 113.36

São Pedro, Chaveiro do Céu - 58.29

São Miguel - 37.17

São Francisco Xavier, Paula, Assis, Chagas - 31.23

Santa Rita - 30.23

Santa Teresinha - 25.7

São Gonçalo - 21.12

Tomei base na vintena das paróquias. A Santa Cruz dá nome a 25 municípios e distritos mas não constitui orago, exceto em freguesia de São Sebastião do Rio de Janeiro. Há quem debata a Santa Cruz constituir paraninfado real, atendendo apenas a participação sacrificial do Redentor, como a coroa de espinhos, a cana-verde, os cravos. São Domingos e Santa Bárbara batizam distritos e municípios em número de 12, para cada um. São Vicente atinge os 15.

São esses os nomes preferenciais da devoção brasileira. A presença do orago nem sempre coincide com a maioria devocional. Há respeitosa vênia mas não aparecem promessas. A Padroeira de Natal, desde inícios do século XVII, Nossa Senhora da Apresentação, não tem o culto assíduo e público do Padre João Maria, falecido em 1905, e que ainda não mereceu altar. Os natalenses canonizaram-no para todos os efeitos. É a mais popular das devoções na sua comovedora presença em todas as horas. 

Nossa Senhora das Neves em João Pessoa, padroeira, não é a intercessora preferida. Há os Santos terapeutas, como em todas as populações católicas do Mundo, atendendo as consultas por intermédio de orações, pagos os honorários em promessas. São Brás para garganta. São Bento contra ofídios. Santa Apolônia, odontologia. Santa Luzia, oftalmóloga. São Lázaro, úlceras, dermatoses, feridas-brabas. São Sebastião, moléstias contagiosas. São Judas Tadeu, enfermidades graves. São Vito, convulsões. São Roque, tumores. Nossa Senhora da Expectação, do Ó, Boa hora, Bom Despacho, Livramento, Bom Sucesso, Bom Parto, Boa Esperança, para a gravidez normal e parto feliz com recursos complementares a São José, Sant'Ana, São Raimundo Nonato (nonnatus, porque nasceu com cesariana). São Geraldo Magela, Santo Aluísio, evitam filhos pondo seu nome na criança. Para tornar-se mãe, Nossa Senhora da Piedade, das Dores, da Soledade, Madre-Deus, Santa Isabel, Sant'Ana dará leite. São Luís facilitará a linguagem. Santo Expedito fará andar. Santa Biliana cuidará das urinas. O Anjo da Guarda vigiará os passos de dia e o sono de noite. São José protegerá o lar. O Espírito Santo, a memória. São Cristóvão os negócios. Os "Bem-casados" (São Lúcio e Santa Bona) garantem o amor conjugal. A jaculatória "Jesus, Maria José minh'alma vossa é!" assistirá a agonia. São Miguel acompanhará o Espírito. Nossa Senhora do Carmo defenderá no Julgamento.

São Miguel é inseparável do culto das Almas, "São Miguel e Almas", como há paróquia em Santos Dumont, Minas Gerais. Santíssimo Sacramento e o Divino Espírito Santo são devoções delicadas, exigentes, cerimoniosas, populares e não vulgares. Apesar dos cortejos e trono da Festa do Divino, onde aparece Imperador coroado ou a Coroa Imperial é exibida em lenta procissão. O Sagrado Coração de Jesus e de Maria não são de emprego confiado na parte masculina. Preferências de mulheres e de área urbana e suburbana e não-corrente no mundo agropastoril. Os Santos letrados, São Tomás, Santo Inácio, São Paulo, Santa Teresa de Jesus, São Francisco de Sales, não alcançam o poviléu reverente.

Divinópolis, em Minas Gerais, tem o Divino Espírito Santo padroeiro. Merece o duplo tratamento de "Divino" e de "Santo". No Divinópolis de Goiás, orgulha-se possuindo o orago resplandecente e único no Brasil: - o Padre Eterno! permitindo muito pouca aproximação pecadora. Voltaire dizia-o esquecido na universal gratidão e ergueu-lhe igreja em Ferney, Deo erexit Voltaire, gravado na fachada.

Os Santos tradicionais na memória viva são os de Junho (Santo Antônio, São João, São Pedro) e mais São José e São Sebastião. Jesus Cristo é Nosso Senhor e Meu Deus. O Divino continua "Deus desconhecido" pela imprecisão dos atributos funcionais. A feitura de pomba não lhe imprime a devida majestade, quando todos os demais assumem formas humanas. Em Portugal, o Divino Espírito Santo já se apresenta como em Zebreira, Beira Baixa, ancião, venerando, coroado, em poltrona de espaldar, recebendo as vênias e dádivas. A devoção mais profunda, instintiva e natural é Nossa Senhora da Conceição, com sua infindável sinonímia que o Povo julga constituir outras tantas Santas distintas. As representações plásticas ajudam a manter a confusão entre os humildes fiéis nos países católicos. É a mesma observação na França, Itália, Espanha, Portugal, permitindo supor que toda a vida religiosa no Povo esteja limitada à contemplação do cerimonial litúrgico. Nas cidades a conclusão não será dessemelhante.

O culto dos Santos é o único interesse psicológico da multidão e a "alta sociedade" já não tem densidade espiritual para impeli-la ao sentimento divino. Indiferentismo que o desinteresse fundamenta pelo atrito diário, ou, nos intelectuais, uma curiosidade cerebral pela química da Fé ou anatomia das crenças. Homens e mulheres, nem mesmo pelo interior do Brasil, têm a visão litúrgica para reforço da Fé, porque vivem distantes das igrejas e da assistência sacerdotal, raramente prestante pela diminuição dos ministros em serviço dos Sacramentos. A necessidade econômica fixa esse Povo em regiões afastadas dos centros urbanos. Vezes, em larga extensão, não se avista em Capela!

Nesse ermo ardem as fogueirinhas de São João e sobem foguetes a São Pedro, Chaveiro do Céu, garantindo a entrada. Rezam a São Sebastião, defensor da Peste, Nossa Senhora da Conceição, arredando as dificuldades. Não podendo prever as modificações acolhedoras do II Concílio Vaticano, o clero moveu guerra de morte às devoções festivas mesmo nos adros das igrejas. Assim, a dança de São Gonçalo foi combatida como sacrilégio pelo Nordeste, apenas resiste no Sul. Duas fileiras devotas saudavam São Gonçalo cantando versos fervorosos, desfilando em marcha divergente, sob a direção de violeiros. Cantam no Sul ante a efígie, engalanada num telheiro rústico. É, como Sant'Antônio, Santo casamenteiro. Nesse plano, obtive na minha pensão de estudante no Recife de 1925 uma "Oração para casar", em versos, que Pereira da Costa divulgou variante em 1908.


Milagroso São Raimundo

Que casais a todo o mundo,

Vá dizer a Santo Antero

Que também casar eu quero.

Poder de São Expedito

Com um noivo bem bonito.

Permita Santo Odorico

Que ele seja muito rico.

E também Santo Agostinho

Que tenha muito carinho.

Assim como a São Roberto

Que o noivo seja esperto.


Com o poder de Santa Rosa

Quero ter nome de esposa.

Na força de Santa Inês

Chegue logo minha vez.

E com o senhor São João

Que me tenha adoração.


Também peço a São Vicente

Que isto seja brevemente.

Ao Anjo São Gabriel

Que seja bem fiel.

Assim como a São Germano

Que não passe deste ano!


Jamais foram "orações" e sim composição urbana e literária, com sua voga humorística desaparecida pela mudança das atenções psicológicas, como ocorria a uma "Ladainha das Moças", que Pereira da Costa salvou do esquecimento.


São Bartolomeu casar-me quer eu.

São Ludovico, com um moço muito rico.

São Nicolau, que ele não seja mau.

São Benedito, que seja bonito.

São Vicente, que não seja impertinente.

São Sebastião, que me leve à função.

Santa Felicidade, que me faça a vontade.

São Benjamin, que tenha paixão por mim.

Santo André, que não tome rapé.

São Divino, que tenha muito tino.

São Gabriel, que me seja fiel.

Santo Aniceto, que ande bem quieto.

São Miguel, que perdure a lua-de-mel.

São Bento, que não seja ciumento.

Santa Margarida, que me traga bem-vestida.

Santa Trindade, que me dê felicidade.


Pelas praias, agrestes, sertão, zona das matas, vales úmidos, essas produções seriam impossíveis num ângulo desinteressado de sátira. Nessas regiões o assunto é tratado a lo divino, a sério, suplicando marido, lar, filhos, legitimidade funcional feminina. A técnica aliciante é decisiva e urgente, alheia aos recursos da excitação citadina. A mulher é a mesma no poderoso instinto de conquista e fixação sexual. Toda mulher é Eva, pregava o Padre Antônio Vieira.

Nalguns sertões, Maranhão, Piauí, Mato Grosso, casavam publicamente ante a fogueira de São João, estabelecendo subsequente vida doméstica, portas adentro, respeitada e normal, até o aparecimento de um padre para "sacramentar" a união de fato. Queixam-se de tudo menos de carência da Fé. Possuem nas lembranças imediatas a presença suficiente e radiosa dos divinos recursos protetores e leais. Nosso Senhor, Nossa Senhora, o Crucificado, a corte dos Santos e Santas tradicionais, ajudam a manter essa autarquia religiosa, obstinada e sensível, na solidão do "desertão" nacional. Das representações de Cristo a de maior confiança, destino das súplicas desesperadas ou de imperioso interesse, é o Crucificado, o Cristo ferido e sangrento, morrendo na cruz. É o Bom Jesus! Centraliza as grandes romarias fervorosas, Bonfim, Lapa, Pirapora, Bom Jesus das Dores, distribuindo graças quando recebia os derradeiros ultrajes. O Povo só se comove realmente ante duas expressões físicas do Messias. O Menino-Deus no presépio e o Bom Jesus no madeiro do Gólgota. A criança determina a floração de ternura no complexo protetor da paternidade. O Crucificado provoca uma piedade de revolta e protesto pela injustiça da violência e a brutalidade da Força onipotente. Vale muito mais com sua coroa de espinhos que o Cristo-Rei no seu diadema de ouro. É o Bom Jesus com o coração aberto pela lança legionária, ampliando o caminho às misericórdias do Entendimento.

Um erudito "desencantado", Charles Guingnebert, quando professor da História do Cristianismo na Sorbonne, perguntava sem responder se La force de résistence des ignorants est-ce vraiment le dogme qui vit en eux? Visto e examinado quando vi e ouvi, documentário humano ao qual me reporto e dou fé, respondo à pergunta do Professor Guingnebert, com uma simples afirmativa: - É!


retirado do livro Superstição no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, Global Editora, 2ª Edição, 2002.