segunda-feira, 14 de março de 2022

Uma Pedra no Caminho

    Perto de uma aldeia erguia-se o palácio de um duque, diferente de muitos nobres do seu tempo, pois era bondoso, generoso e costumava ajudar os habitantes daquele povoado. Sempre que algum deles tinha problemas ou estava em dificuldades, fosse consertar um telhado arrancado pela ventania, fosse enviar alimentos quando havia falta, ou fosse o que fosse, o duque acudia logo.

    Acontece que, com o tempo, os aldeões começaram a ficar mal-acostumados. Se tornaram acomodados e preguiçosos e, o que é pior, egoístas e mal-agradecidos. Até que um dia o duque se deu conta disso e resolveu testar aqueles aldeões, para ver se entre eles ainda havia pelo menos alguns dispostos a fazer um gesto em favor da comunidade.

    E imaginou um plano. Certa manhã, bem cedo, ele saiu do palácio, despercebido, e foi sozinho até a única estrada da região, bem na metade do caminho. Lá, ele procurou e encontrou uma pedra, tão grande e pesada que mal conseguiu levantá-la. Carregou-a, com grande esforço, até bem no meio do estreito caminho, que só dava para um carro, fechando, assim, a única passagem. Mas, antes, colocou embaixo daquela pedra uma grande bolsa cheia de moedas de ouro. Feito isso, o duque escondeu-se atrás de uma moita na beira da estrada e ficou observando o que ia acontecer.

    Pouco depois, chegou um aldeão, tangendo umas ovelhas que ia levar ao mercado, e parou diante da pedra, espantado. Resmungou em voz alta: "Como é que o duque permite uma coisa destas? Eu é que não vou remover esta pedra. O duque que cuide disso!" E contornou a pedra, sempre reclamando.

    Logo apareceram duas mulheres, carregando cestas de ovos e conversando. Quando deram com a pedra, sentaram-se nela, continuando a tagarelar e a criticar o duque, que permitia que deixasse o caminho atravancado e não mandava seus criados retirar o obstáculo. E acabaram também contornando a pedra, sempre resmungando e culpando o duque.

    As horas iam correndo, e muita gente passava e parava na frente da pedra, todos sempre reclamando e culpando o duque. Eram camponeses e soldados, padres e mercadores, jovens e velhos - pessoas de todas as classes -, mas ninguém se dispunha a tirar a pedra do caminho.

    O duque estava quase desanimando quando, já ao entardecer, aproximou-se cantarolando um rapazinho, filho do moleiro, carregando um saco de farinha nas costas. Ele parou na frente da pedra e disse: "Ora essa, uma pedra no meio do caminho, atrapalhando a passagem de pessoas e carros! Que perigo!" Sem hesitar, pôs o saco de farinha no chão e, com menos esforço que o velho duque, levantou a pedra e a  depositou na beira da estrada. Só quando voltou para apanhar o saco de farinha é que ele viu a bolsa de moedas que estivera embaixo, e leu espantado e incrédulo o que nela estava escrito: "Para aquele que remover esta pedra". Olhou em volta. Nisto, o duque saiu do esconderijo e disse:

    - Meu filho, tu me devolveste a fé na humanidade! Ainda há gente boa nesta aldeia! O dinheiro é teu mesmo, faças bom uso dele!.


Conto do folclore alemão recontado pela escritora Tatiana Belinky. Retirado na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Agosto de 1995.

domingo, 13 de março de 2022

Vrishadarbha e a Pomba

    Certo dia, há muito tempo atrás, uma pomba ferida caiu do céu aos pés de Vrishadarbha, o rei de Benares, famoso por sua bondade e compaixão pelos necessitados. Ofegante, a avezinha implorou ao rei que a protegesse de um gavião que a perseguia e já a machucara.

    - Fica tranquilo, pombinha, não tenhas medo - disse o rei. - Eu te protegerei, tens a minha palavra. Para te proteger, sou capaz de dar o meu reino e até a minha vida. Mal nenhum te advirá, prometo.

    Mas o cruel gavião, que ouvira essas palavras, pousou na frente do rei e o interpelou:

    - Este pássaro, a pomba, é a minha comida, ó rei. Ela me é destinada pelos deuses. Tu não deverias negar-me a minha presa legal, ganha com árduo esforço! Tu és o soberano, podes intervir entre os seres humanos teus súditos. Mas não tens poder legal sobre os pássaros que voam pelos céus! Que direito tu tens de me forçar a morrer de fome?

    O rei, um homem justo, retrucou:

    - Não te deixarei morrer de fome. Ordenarei que preparem um javali ou um veado. Poderás te fartar à vontade. Mas não comerás esta pomba.

    Ao que o gavião lhe respondeu, maldoso:

    - Eu não como carne de javali, nem de veado. O alimento que me foi destinado é a pomba. Mas, ó monarca compadecido, se te importas tanto com ela, façamos um trato: tu me darás o equivalente ao peso desta pomba em carne do teu próprio corpo. Com isso ficarei satisfeito.

    E o rei retrucou:

    - A tua sugestão é justa, gavião. Farei o que tu propões.

    Imediatamente, mandando trazer uma balança, o rei começou a cortar pedaços do seu próprio corpo e a colocá-los num dos pratos, enquanto no outro punha a pomba ferida.

    Os cortesãos, as princesas, os ministros e os servos acorreram aflitos e, horrorizados, levantaram um alarido de protestos tão fortes que chegou aos céus como um grande trovão. E a própria terra tremeu, ao ver que o rei de Benares não só prometia como fazia o que os seus guerreiros mais valentes não seriam capazes de fazer, nem pelos seus próprios filhos.

    O rei continuava a cortar pedaços das suas pernas, coxas, músculos e braços, mas, quanto mais da sua carne ele punha na balança, mais pesada ficava a pomba, no prato oposto.

    O rei já estava quase reduzido ao esqueleto descarnado e então, vendo que não conseguia igualar o peso da pomba, ele decidiu dar o seu corpo inteiro para cumprir a palavra. Subiu na balança, ele mesmo. E equilibrou o peso.

    Naquele momento, apareceram os deuses. Ouviu-se uma música celestial e uma chuva de néctar caiu sobre o rei, e o seu corpo lhe foi milagrosamente devolvido. Flores maravilhosas caíram do céu e as ninfas celestes cantaram e dançaram. Surgiu uma carruagem faiscante de pedrarias, e os deuses arrebataram o rei, puseram-no na carruagem e o levaram com eles para o céu.


Lenda indiana recontada pela escritora Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Junho de 1995.

sábado, 12 de março de 2022

O Diabo e o Granjeiro

    Um pobre lavrador precisava construir a casa da sua pequena granja, mas não conseguia realizar esse sonho, pois o que ganhava mal dava para alimentá-lo, junto com sua mulher. Por mais economia que fizesse, não conseguia juntar o necessário para começar a construção.

    Uma dia, estando a caminhar pelo seu pedaço de chão, mergulhado em tristes pensamentos, deu com um velho esquisito, que lhe disse com voz desagradável:

    - Para de preocupar-te, homem. Eu posso resolver o teu problema antes do primeiro canto do galo, amanhã cedo.

    - Como assim? - espantou-se o lavrador.

    - Tu precisas construir a casa da granja, certo? Pois eu me encarrego de construir e entregar-te essa obra, antes do canto do galo, em troca de uma pequena promessa tua.

    - Que promessa? Não tenho nada para te oferecer em troca de tal serviço.

    - Não importa: o que quero que me prometas é um bem que tens mas ainda não sabes. É topar ou largar.

    O pobre granjeiro pensou com seus botões "o que é que eu tenho a perder?" e, sem hesitar mais, respondeu ao velho que aceitava o trato, e fez uma promessa.

    - Só que quero ver a casa da granja construída, amanhã, antes do canto do galo - observou ele, ainda meio incrédulo.

    E voltou correndo para casa, para comunicar à esposa o bom negócio que acabara de fechar. A pobre mulher ficou horrorizada:

    - Tu és louco, marido! Acabas de prometer àquele velho, que só pode ser o próprio diabo, o nosso primeiro filho, que vai nascer daqui a alguns meses!

    O homem, que não sabia da gravidez, pôs as mãos na cabeça, mas não havia mais nada a fazer: o pacto estava selado. Porém, a mulher, que não estava disposta a aceitá-lo, ficou pensando num jeito de frustrar o plano do diabo. E naquela noite, sem conseguir dormir, ficou o tempo todo escutando apavorada o barulho que o demônio e seus auxiliares infernais faziam, ao construírem a tal obra, com espantosa rapidez.

    A noite ia passando, aproximava-se a madrugada. Mas, pouco antes de o céu clarear, quando faltavam só umas poucas telhas para a conclusão da obra, a atenta mulher do granjeiro pulou da cama e, rápida e ágil, correu até o galinheiro, onde o galo ainda não despertara. Tomando fôlego, imitou o canto do galo, com tal perfeição que todos os galos da vizinhança, junto com o seu próprio, lhe responderam com um coro sonoro de cocoricós matinais, momentos antes do romper da aurora.

    Como um trato como o diabo tem de ser estritamente observado, tanto pela vítima como por ele mesmo, a obra em final de construção teve de ser parada naquele mesmo instante, por quebra de contrato "antes do primeiro canto do galo".

    E o diabo, espumando de raiva por se ver assim ludibriado e espoliado, se mandou de volta para o inferno, junto com os seus acólitos, para nunca mais voltar àquele lugar.

    Mas a casa da granja permaneceu construída, para alegria do granjeiro, faltando apenas aquelas poucas telhas, que jamais puderam ser colocadas.


Lenda alemã recontada por Tatiana Belinky e retirada da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Maio de 1995.

Permanece em Serenidade

    A Terra é, sem dúvida, um hospital-escola de provas e expiações.

    Os seus alunos ainda tateiam nas experiências do primarismo, rentando com as paixões fortes que remanescem como heranças dos seus instintos agressivos.

    Por isso, manifestam-se os abusos e descalabros, gerando desordens que retardam a marcha do progresso.

    Distraído ou agitado, o homem insiste na preservação da estrutura material em detrimento da sua realidade espiritual, dos seus valores éticos, da autoconsciência responsável.

    Frágil na constituição orgânica, cuja existência pode diluir-se após uma picada insignificante que lhe infecte a maquinaria, usa-a qual se a mesma pudesse manter-se indefinidamente.

    Constituído por células que se renovam e equipamentos de duração efêmera, não se dá conta da transitoriedade nele latente e ensoberbece-se, brutaliza-se, tornando-se prepotente e dominador, pisoteando física e moralmente todos quantos lhe tombam sob as injunções cruéis.

    Tudo nele, é convite à reflexão, à tolerância, ao amor. Não obstante, o seu comportamento envilece-o, retendo-o nas amarras do primitivismo, enquanto são desprezados os apelos para o crescimento, a ascensão.

    Apesar disso, na condição de aprendiz da vida, a dor o faz, a prazo necessário, descortinar as metas que deve alcançar, atraindo-o para os altos cimos da liberdade e da paz.

    Mantém-te sereno ante as vicissitudes, por mais rudes se te apresentem. Elas te fortalecerão as fibras morais para empreendimentos mais dignificadores.

    Retribui com o bem, sem qualquer ressentimento, todo o mal que te façam. Quem age corretamente, desfruta de paz íntima.

    Desconecta a mente das angústias e cultiva o otimismo dinâmico. O bem é a única diretriz para a saúde integral.

    Avança com serenidade, considerando que estás em trânsito no mundo corporal. Quem vive em vigilância nunca padece surpresas desagradáveis.

    Executa as tarefas que te dizem respeito com  equilíbrio, com fidelidade ao dever. O tempo preenchido com ações úteis se transforma em agente de felicidade.

    Verás, na convivência humana, pessoas que parecem ditosas, despreocupadas, plenas. No entanto, não o são; apenas parecem. Desconhece-lhes o calvário interior e quanto dariam para trocar a sua pela tua vida.

    Destacam-se, ao teu lado, as criaturas odientas, perversas, que galgam os degraus da fama e do poder utilizando-se de recursos ignóbeis. Magoas-te com a sua irreverência. Desconheces, porém, a loucura que as domina, assim como a desdita em que se asfixiam, assumindo essas atitudes como mecanismos de demência escapista.

    As almas estão na Terra em processo de reparação.

    Cuida-te e cresce para Deus com a consciência transparente.

    Jesus, a Vítima sem culpa, aceitou a injunção arbitrária para ensinar paciência, resignação e confiança irrestrita em Deus, em extraordinária demonstração de certeza da Imortalidade, que confirmou ao retornar da sepultura em esplendorosa ressurreição.


Texto retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2014.

quinta-feira, 10 de março de 2022

A Mamãe Leopoldina

Sou a senhora Leopoldina

locomotiva muito faceira,

solto fumaça, fico zangada,

vou chique-chique pela estrada.


Ando nervosa, nervosa eu fico,

dou o meu grito quando apito!


Pois o meu filho, o Zé Vagão,

me atormenta... Quem aguenta?

Ele só vive na contramão!


Se vou pra baixo, ele escorrega, 

o seu traseiro no trilho esfrega!


Se vou pra cima, ele reclama,

tem dor na rosca e só quer cama!


Quando eu paro na estação,

o meu filhote faz confusão:

come pipoca, cachorro-quente,

come cocada, pede empada,

fica doente, o Zé Vagão,

reclama tanto de indigestão...


E o meu filho, ai, o meu filho,

vai poluindo toda a estrada,

pingando óleo por todo o trilho!

O que é que eu faço com o Zé Vagão?

Estou cansada, puxo o menino,

ser mãe sofrida é meu destino?


O Zé Vagão, passado um tempo,

foi se tornando diferente...

O vagãozinho, muito esticado,

de bigodinho adolescente?


Estou sofrida, estou exausta,

puxo o vagão pelo caminho,

ai, a ladeira é longa e alta!


O Zé Vagão salta do trilho,

sai aos pulinhos, ali na roça, 

fica flertando com uma carroça?


Eu dou apito, grito que grito,

pego o danado desse meu filho,

volto com ele num choque-choque,

o danadinho requebra um roque?


Passou um tempo, fiquei velhota,

o meu filhote ficou ativo.

apita e grita, corre que corre, 

virou um pai Locomotiva.


Ele implicam com meu netinho,

o meu netinho Zé Vagãozito,

puxa a criança pela estrada,

eu não admito, fico zangada:


- Deixa o meu neto, ele é criança,

não atormenta o pobrezito,

o vagãozinho tem dor na rosca,

o coitadinho é tão fraquito!


Aí eu compro na estação

muito sorvete, pé-de-moleque,

compro empada, dou bombonzinho,

encho a pança do meu netinho.


Se pinga óleo... ai, que gracinha,

eu limpo o trilho, mudo a fraldinha.

Sou Leopoldina, vovó ativa,

velha senhora locomotiva.


História criada por Sylvia Orthof e retirada na Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Abril de 1995. 

quarta-feira, 9 de março de 2022

O Olho Cobiçoso

    Certa vez, na volta para a sua Macedônia, Alexandre Magno, rei grego e grande conquistador, passou por um rio que não conhecia. Apeou da sela e tirou da sacola um peixe salgado para o seu almoço. Mas quando se abaixou na margem do rio a fim de dessalgá-lo antes de comer, viu espantado que o peixe morto, ao ser tocado pela água corrente, súbito reviveu e saiu nadando.

    - Este rio só pode ter a sua nascente no Paraíso - pensou o rei - vou segui-lo até chegar lá.

    Tornou a montar no seu cavalo e partiu a galope, para pouco depois se ver diante dos esplêndidos portais do Paraíso, que estavam fechados. Ali, gritou autoritário:

    - Abram-se já, portais do Paraíso, para Alexandre Magno, o rei!

    Imediatamente uma voz profunda lhe respondeu:

    - Os portais da eternidade só se abrem para os pios e os puros.

    Percebendo que ele, guerreiro arrogante, jamais poderia entrar, Alexandre pediu mais humilde:

    - Deem-me ao menos alguma coisa para eu poder provar que estive diante dos portais celestiais!

    Então entreabriu-se uma pequeníssima fresta e um olho humano saiu rolando em direção ao rei. Alexandre recolheu o olho e, intrigado, retomou seu caminho de volta à Macedônia. Lá chegando, convocou os sábios do reino e perguntou-lhes o significado daquele estranho presente. Depois de pensar muito, o mais velho deles disse:

    - Pegue este olho, ó rei, e coloque-o sobre um dos pratos da grande balança do tesouro. No outro prato, ponha esta peça de ouro. Veremos qual dos dois pesa mais.

    Alexandre fez o que o sábio sugeriu e constatou, surpreso, que o pequenino olho pesava mais que a grande peça de ouro. Ele pôs outra moeda na balança e viu que o olho ainda pesava mais. Continuava mais pesado depois de um punhado de moedas e até de um barril e outro e mais outro cheios de ouro e joias!

    Vendo o espanto de Alexandre, o velho sábio disse:

    - Que isto lhe ensine uma lição, ó rei! Saiba que o olho humano nunca fica satisfeito com o que vê. Por mais tesouros que lhe mostrem, ele sempre quererá mais e sua cobiça pesará cada vez mais e mais.

    - Dá-me uma prova do que dizes - falou Alexandre, incrédulo.

    - Muito bem - retrucou o sábio. - Mande tirar da balança tudo o que fizeste colocar nela e substitua por um punhadinho de terra.

    Novamente, Alexandre seguiu a sugestão do sábio. No mesmo instante o prato com a terra desceu e levantou facilmente aquele do pequenino olho, que antes pesara mais do que todo o tesouro real.

    - Agora compreendi o significado disto! - exclamou o rei. - Enquanto o homem está vivo, sua cobiça não tem limites e seu olho nunca fica saciado e satisfeito. Mas assim que o homem morre e se transforma no pó da terra, seu olho perde a força e o peso. Não pode mais desejar nem cobiçar nada...


História da tradição judaica, recontada por Tatiana Belinky; retirada da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Março de 1995.

terça-feira, 8 de março de 2022

O Gozador e o Duque

    O ex-palhaço de circo Till "Espelho de Coruja" Eulenspiegel percorria a Alemanha medieval a pé, pregando peças a torto e a direito, sempre escapando dos castigos e "rindo por último".

    Ele já havia aprontado poucas e boas no ducado de Luneburg, do qual fora expulso pelo duque, que prometera enforcá-lo caso se atrevesse a tornar a pôr os pés em suas terras. Till sumiu por algum tempo, mas um dia, para não ter de dar uma volta maior, decidiu atravessar as terras do duque, apesar da ameaça. Para isto, inventou um jeito: arranjou um burrico e uma carrocinha, comprou baratinho um pouco de terra de um lavrador que estava arando, encheu a carrocinha, subiu e se cobriu de terra até o pescoço. Assim entrou no território proibido. Mas, quando já estava quase saindo do ducado, teve o azar de cruzar com o próprio duque, que estava caçando na região. Este o reconheceu apesar do "disfarce" e gritou furioso:

    - O que fazes aqui, malandro? Desce já daí, para seres enforcado! Bem sabes que estavas proibido de pôr os pés nas minhas terras!

    - Eu não estou pisando nas vossas terras, Excelência! - retrucou Till. - A terra onde estou sentado é minha, comprei-a de um camponês, com o meu dinheiro, e agora ela é minha, legalmente. Portanto, não transgredi vossa lei e proibição.

    O duque não teve outro jeito senão responder, raivoso:

    - Manda-te já pra fora da minha terra, com a "tua" terra, ó sacripanta! Mas se ousares mostrar este teu focinho descarado aqui outra vez, serás enforcado na hora, sem perguntas, com carroça, burrico e tudo o mais!

    Till Eulenspiegel não se fez de rogado, é claro. E foi assim que, mais uma vez, escapou do castigo e riu por último.


História do folclore alemão recontada pela escritora de Literatura Infantil Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Dezembro de 1994.

segunda-feira, 7 de março de 2022

Sintonia Moral

    As leis de afinidade ou de sintonia, que vigem em toda parte, respondem pela ordem e pelo equilíbrio universal.

    Pequena alteração para mais ou para menos, entre os fenômenos do eletromagnetismo e as forças da gravitação universal, tornaria as estrelas gigantes azuis ou pequenas astros vermelhos, perdidos no caos.

    Transferidas para a ordem moral, as leis de afinidade promovem os acontecimentos vinculando os indivíduos, uns aos outros, de forma que o intercâmbio seja automático, natural.

    Mentes especializadas mais facilmente se buscam, em razão do entendimento e interesse que as dominam na mesma faixa de necessidade.

    Sentimentos viciosos encontram ressonância em caracteres morais equivalentes, produzindo resultados idênticos.

    O homem colérico sempre encontrará motivo para a irritação; assim como a pessoa dócil com facilidade identifica as razões para desculpar e entender.

    Há uma inevitável atração entre personalidades de gostos e objetivos semelhantes, como repulsa em meio àqueles que transitam em faixas de valores que se opõem.

    Na área psíquica, o fenômeno é idêntico.

    Cada mente irradia-se em campo próprio, identificando-se com aquelas que aí se expandem.

    O psiquismo é o responsável pelos fenômenos físicos e emocionais do ser humano.

    Conforme a expansão das ideias, vincula-se a outras mentes e atua na própria organização fisiológica em que se apoia, produzindo manifestações equivalentes à onda emitida.

    Assim, os pensamentos positivos e superiores geram reações salutares, tanto quanto aqueloutros de natureza perturbadora e destrutiva produzem desarmonia e insatisfação.

    No campo das expressões morais, o fenômeno prossegue com as mesmas características.

    Os semelhantes comportamentos entre os homens e os Espíritos jungem-se, impondo-lhes interdependência de consequências imprevisíveis.

    Se possuem um teor elevado, idealista, impelem os seres encarnados quão desencarnados a realizações santificantes, enquanto que os de caráter vulgar facultam intercâmbio obsessivo ou tipificado pela burla, mentira, insanidade...

    É portanto, inevitável afirmar-se que as qualidades morais do médium são de alta importância para o salutar intercâmbio entre os homens e os Espíritos.

    Somente as entidades inferiores se apresentam por intermédio dos médiuns vulgares, insatisfeitos, imorais...

    Os mentores, como é natural, sintonizam com aqueles que se esforçam por melhorar-se, empenhados na sua transformação moral, que combatem as más inclinações e insistem para vencer o egoísmo, o orgulho, esses cânceres da alma que produzem terríveis metástases na conduta do indivíduo.

    Pode-se e deve-se, pois, examinar o valor e a qualidade das comunicações espirituais, tendo-se em conta o caráter moral do médium, seu comportamento, sua vida.

    Jesus, o excelente Médium de Deus, demonstrou a grandeza da Sua perfeita identificação com o Pensamento Divino, através da esplêndida pureza e elevação que O caracterizavam.


Retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

domingo, 6 de março de 2022

Libertação

    A finalidade precípua e mais importante da reencarnação diz respeito ao processo de autoiluminação do espírito.

    Herdeiro de suas próprias experiências, mantém atavismos negativos que o retêm nas paixões perturbadoras, aturdindo-se com frequência, na busca frenética do prazer e posse. Como consequência, as questões espirituais permanecem-lhe em plano secundário, sem conceder-se ensejo de crescimento libertador.

    Indispensável que se criem as condições favoráveis ao desenvolvimento dos seus valores éticos e espirituais que não devem ser postergados. Somente através desse esforço - que é o empenho consciente para o autoencontro, o denodo para romper com as amarras selvagens da ignorância, da acomodação, da indiferença - que o logro se torna possível.

    Há pessoas que detestam a solidão, afirmando que esta lhes produz depressão e angústia, sensação de abandono e de infelicidade.

    Outras, no entanto, buscam-na como terapia indispensável ao refazimento das forças exauridas, caminho seguro para o  reexame de atitudes, para a reflexão em torno dos acontecimentos da vida.

    A solidão, todavia, não é boa nem má. Os valores dela defluentes são sentidos de acordo com o estado de espírito de cada ser.

    O silêncio produz em alguns indivíduos melancolia e medo. Parece sugerir-lhes um abismo apavorante, ameaçador.

    Em outras pessoas, faculta a paz, o processo de readaptação ao equilíbrio, abrindo espaço para o autoconhecimento.

    O silêncio, no entanto, não é positivo ou negativo. Conforme o estado íntimo de cada um, ele propicia o que se faz necessário à paz, à alegria.

    Muitos homens se atiram afanosamente pela conquista do dinheiro, nele colocando todas as aspirações da vida como a meta única a alcançar. fazem-se, até mesmo, onzenários.

    Inúmeros outros, todavia, não lhe dão maior valor, desperdiçando-o com frivolidade, esbanjando-o sem consideração. Terminam, desse modo, na estroinice, na miséria econômica.

    O dinheiro, entretanto, não é essencial ou secundário na vida. Vale pelo que pode adquirir e segundo a consideração de que se reveste transitoriamente.

    É indispensável que inicies o processo da tua libertação quanto antes.

    Faze um momento habitual de solidão, onde quer que te encontres. Não é necessário que fujas do mundo, porém que consigas um espaço mental e doméstico para exercitares abandono pessoal e aí fazeres silêncio, meditando em paz.

    Não digas que o tempo não te faculta ocasião.

    Renuncia a alguma tarefa desgastante, a alguma recreação exaustiva, ao tempo que dedicas ao espairecimento saturador e aplica-o à solidão.

    Nesse espaço, isola-te e silencia.

    Deixa que a meditação refunda os teus valores íntimos e logre libertar-te das paixões escravizantes.

    Considera o dinheiro e todos os demais valores como instrumentos para finalidades próximas, cuidando daqueloutros de sabor eterno e plenificador, que se te fazem essenciais para o êxito na tua jornada atual, a tua autoiluminação libertadora.


Texto retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 5ª Edição, 2014.

sábado, 5 de março de 2022

Arte e ciência de ajudar

    A indiferença ante a dor do próximo é congelamento da emoção, que merece combate.

    À medida que o homem cresce espiritualmente, mais se lhe desenvolvem no íntimo os sentimentos nobres.

    Certamente não se deve confundi-los com os desregramentos da emotividade; igualmente não se pode controlá-los a ponto de tornar-se insensível.

    No bruto, a indiferença é o primeiro passo para a crueldade, porta que se abre na emoção para inúmeros outros estados de primitivismo.

    A indiferença coagula as expressões da fraternidade e da solidariedade, ensejando a morte do serviço beneficente.

    O antídoto para esse mal, que reflete o egoísmo exacerbado, é o amor.

    Se não pretendes partilhar do sofrimento alheio, ao menos minora-o com migalhas do que te excede.

    Se não queres conviver com a dor do teu irmão, ajuda-o a tê-lo diminuída com aquilo que te esteja ao alcance.

    Se defrontas multidões de necessitados e não sabes como resolver o problema, auxilia o primeiro que te apareça, fazendo a tua parte.

    Se te irrita a lamentação dos que choram, silencia-a com o teu contributo de amizade.

    Imagina-te no lugar de algum deles e saberás o que fazer, como efeito natural do que gostarias que alguém fizesse por ti.

    Ninguém está seguro de nada, enquanto se encontra na Terra.

    A roda das ocorrências não para.

    Quem hoje está no alto, amanhã terá mudado de lugar e vice-versa.

    E não só por isso.

    Quem aprende a abrir a mão em solidariedade, termina por abrir o coração em amor.

    Dá o primeiro passo, o mais difícil. Repete-o, treina os sentimentos e te adaptarás à arte e ciência de ajudar.

    Há quem diga que os infelizes de hoje estão expiando os erros de ontem, na injunção de carmas dolorosos. Ajudá-los, seria impedir que os resgatassem.

    É correto que a dor de agora procede de equívocos anteriores, porém, a indiferença dos enregelados, por sua vez, lhes está criando situações penosas para mais tarde.

    Quem deve, paga, é da Lei. Mas quem ama dispõe dos tesouros que, quanto mais se repartem, mais se multiplicam. É semelhante â chama que acende outros pavios e sempre faz arder, repartindo-se, sem nunca diminuir de intensidade.

    Faze, pois, a tua opção de ajudar, e o mais a Deus pertence.


Texto retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª edição, 2014.