sábado, 10 de fevereiro de 2024

O Homem Nu

Ao acordar, disse para a mulher:

- Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.

- Explique isso ao homem - ponderou a mulher.

- Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar - amanhã eu pago.

Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:

- Maria! Abre aí, Maria. Sou eu - chamou em voz baixa.

Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!

Não era. Refugiando no lanço de escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

- Maria, por favor! Sou eu!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a desce.

- Ah, isso é que não! - fez o homem nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pelo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe do seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime de Terror.

- Isso é que não - repetiu, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois, experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou desce? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

- Maria! Abre esta porta! - gritava, desta vez esmurrando a porta sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

- Bom dia, minha senhora - disse ele, confuso. - Imagine que eu...

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

- Valha-me Deus! O padeiro está nu!

E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

- Tem um homem pelado aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

- É um tarado!

- Olha, que horror!

- Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

- Deve ser a polícia - disse ele, ainda ofegante, indo abrir.

Não era: era o cobrador da televisão.


Crônica de Fernando Sabino retirada do livro Para Gostar de Ler, Volume 3 - Crônicas, Editora Ática, São Paulo, 14ª Edição, 2000.

Horóscopo

- Telefonaram do escritório, bem. Seu chefe mandou perguntar por que você não foi trabalhar.

- E você deu o motivo?

- Não.

- Podia ter dado.

- Ora, Alfredinho, isso é motivo que se dê?

- Por que não? Se há motivo, está justificado. Sem motivo é que não cola.

- Então eu ia dizer ao seu chefe que você não trabalha hoje porque o seu horóscopo aconselha: "Fique em casa descansando"?

- E daí, amor? Se meu signo é Touro, e se Touro acha conveniente que eu não faça nada, como é que eu vou desobedecer a ele?

- É, mas com certeza seu chefe não é Touro, e não vai achar graça nisso.

- Ele é Áries, está ouvindo? E o dia não está para relações entre Áries e Touro. Pega aí o jornal. Faz favor de ler com esses belos olhos cor de pervinca: "Áries - Evite  rigorosamente discussões com subordinados".

- Mas se ele evitar, não tem perigo para você.

- Ele pode evitar, sim, deve evitar. E para colaborar com ele, eu fico em casa.

- Mas se você não comparece, ele pode vir ao telefone e pegar numa discussão danada com você, dessas de sair fogo.

- Não atendo telefone durante o dia. Não posso atender. Não vê que estou descansando, que o horóscopo me mandou descansar? É favor não fazer rebuliço nesta casa. Amor e paz, para o descanso do guerreiro.

- Pra mim você está é com preguiça, e das bravas.

- Posso estar com preguiça, e daí? Preguiça é relaxante, restaura as energias, predispõe para o trabalho no dia seguinte. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Se eu não faço nada hoje, não é porque estou com preguiça. É em atenção a um mandamento superior, à mensagem que vem dos astros, você não percebe?

- Percebo, sim, mas não concordo.

- Pode-se saber por que a excelentíssima não concorda com aquilo que percebe e que está devidamente explicado?

- Pode.

- Então explica, vamos.

- Gozado, Alfredinho, até parece que para você só existem dois signos no zodíaco: Touro e Áries, você e o patrão.

- Espera lá, você queria que eu não prestasse atenção em Touro? Áries eu li hoje por acaso, porque está ao lado de Touro, em coluna paralela.

- Coincidência: você saber que seu chefe é Áries, e...

- É, sim.

- E por que você guardou na cabeça que ele é Áries?

- Ora por quê! Ele fez anos no mês passado, amorzinho. Até contei a você que oferecemos a ele uma batedeira. Soubemos que a mulher precisava de batedeira, fizemos uma vaquinha, pronto. Mas por que você diz que para mim só existem dois signos?

- Pelo menos Sagitário você ignora.

- Como que eu ia ignorar Sagitário, se é o signo de você, minha orquídea de novembro 25?

- É, mas esqueceu de ler que o dia é propício para reuniões sociais de sagitário, e sabia que esta sua orquídea de novembro 25 vai reunir hoje as amigas aqui em casa? Trate de se mandar, querido.

- Sem essa! Touro me manda descansar em casa, e você me enche a casa com mulheres?

- É Sagitário que recomenda, mon ange.

- Sagitário não ia fazer isso comigo! Eu já tinha harmonizado Touro com Áries!

- Pode continuar harmonizando, se for descansar em casa de Tostes, que é Virgem, eu sei, ele é nosso padrinho de casamento. O horóscopo do Tostes recomenda prestar serviço a um amigo. Assim, Touro, Virgem, Áries e Sagitário ficam inteiramente harmonizados, cada um na sua, um por todos, todos por um. Ande, vá se vestir rapidinho, rapidinho, e rua, seu vagabundo!


Crônica de Carlos Drummond de Andrade retirado do livro Para Gostar de Ler, Volume 2 - Crônicas, Editora Ática, São Paulo, 4ª Edição, 1980.

Tempo de Chuva

Era bom, no tempo de chuva, ficar brincando na enxurrada. A mãe achava ruim, prometia bater, mas Pitu não resistia. Mal começava a chover, saía na chuva, molhava o corpo, corria pra lá e pra cá. Se a chuva era forte, melhor: Pitu preparava barcos e ia soltá-los na enxurrada que passava entre a rua e o passeio. Molhava o corpo. Sujava de barro o corpo e a calça. Era uma festa! O rio se enchia mais e ficava bom pra pescar bagres. Os bagres deviam ter medo da luz, pois só apareciam à noite. De dia, só lambaris e cascudos. À noite mudava o anzol e iam pescar bagres. A mãe ficava nervosa, quando Marquinhos não estava no Bálsamo pra ir junto. Não gostava que fossem apenas os meninos menores. Beirada de rio era um perigo, tinha cobras, podiam cair dentro. Muita gente que sabia nadar morria enroscada em ramos ou pedras. Ela tinha muito medo e ficava falando, falando... No sítio, era mais gostoso, João ia junto, pescavam no açude, traíra e tilápia. Peixe de açude é menos chato, fácil de cair na isca. No rio, só dava peixe miúdo e era chato achar minhocas ou aleluia. No sítio, quando tinham milho verde, era fácil: os peixes do açude vinham sem demora. Depois, uma travessa cheia de peixes fritinhos, como só o João sabia fazer. O céu estava carregado de nuvens escuras, começavam os relâmpagos e trovões distantes. A mãe tinha muito medo deles. Pitu ria e achava uma bobagem dela. Ficava muito feliz, sabia que ia cair muita chuva, das grossas. A enxurrada desceria forte da rua de cima. As águas ficariam vermelhas ou marrons e os bagres sairiam mesmo com a luz do dia. O Marquinhos estava em Ribeirão e não poderia denunciá-lo pra mãe. Pura inveja do Marquinhos. O que tinha de mais ele brincar na chuva, na enxurrada? A garganta dele não era manhosa como a do irmão. Nem gripe ele tinha. A chuva já estava caindo. Trovejava muito, muitos relâmpagos. Peixe não gosta de trovão, some, parece que tem medo como a mãe. Ele se alegrava com a chuva, enquanto a mãe queimava os ramos bentos...


Texto de Elias José, As Curtições de Pitu, São Paulo/Brasília, Editora Melhoramentos/INL, 1976. página 20, 21. Retirado do livro Aulas de Redação, 5ª série, Maria Aparecida Negrinho, Editora Ática, São Paulo, 1993.

Aceita a correção (6)

 "E, na, toda correção, no presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas, depois, produz um fruto pacífico de justiça nos exercitados por ela." - Paulo. (HEBREUS, 12:11.)


A terra, sob a pressão do arado, rasga-se e dilacera-se, no entanto, a breve tempo, de suas leiras retificadas brotam flores e frutos deliciosos.

A árvore, em regime de poda, perde vastas reservas de seiva, desnutrindo-se e afeando-se, todavia, em semanas rápidas, cobre-se de nova robustez, habilitando-se à beleza e à fartura.

A água humilde abandona o aconchego da fonte, sofre os impositivos do movimento, alcança o grande rio e, depois, partilha a grandeza do mar.

Qual ocorre na esfera simples da Natureza, acontece no reino complexo da alma.

A corrigenda é sempre rude, desagradável, amargurosa; mas, naqueles que lhe aceitam a luz, resulta sempre em frutos abençoados de experiência, conhecimento, compreensão e justiça.

A terra, a árvore e a água suportam-na, através de constrangimento, mas o Homem, campeão da inteligência no Planeta, é livre para recebê-la e ambientá-la no próprio coração.

O problema da felicidade pessoal, por isso mesmo, nunca será resolvido pela fuga ao processo reparador.

Exterioriza-se a correção celeste em todos os ângulos da Terra.

Raros, contudo, lhe aceitam a bênção, porque semelhante dádiva, na maior parte das vezes, não chega envolvida em arminho, e, quando levada aos lábios, não se assemelha a saboroso confeito. Surge, revestida de acúleos ou misturada de fel, à guisa de remédio curativo e salutar.

Não percas, portanto, a tua preciosa oportunidade de aperfeiçoamento.

A dor e o obstáculo, o trabalho e a luta são recursos de sublimação que nos compete aproveitar.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Cada palavra, uma história

 Semelhanças entre vocábulos de idiomas diferentes nem sempre indicam parentesco entre eles


Todos já ouviram falar algo sobre o Indo-europeu e muitas vezes, por isso mesmo, existe uma ideia errônea da chamada "árvore genealógica das línguas", proposta pela Stammbaumtheorie de August Scheleicher, em meados do século 19.

Hoje, amadurecidos, os linguistas sabem que a história das línguas não se confunde com a história das culturas e, muito menos, com a das etnias. O inglês é falado por estadunidenses, nigerianos e indianos, e exemplos assim podem ser multiplicados infinitamente.

Mais que isso: nenhum idioma nunca foi falado por um povo homogêneo. A formação da identidade nacional e do seu consequente nacionalismo é fato recente na história da humanidade.

Começou, provavelmente, no final da Guerra dos Cem Anos, e no início do século 15 tínhamos suas primeiras evidências. Os renascentistas eram extremamente patriotas, e esse sentimento foi crescendo com as conquistas napoleônicas e o romantismo afora, até o final da Segunda Guerra Mundial. É um forte traço remanescente e ainda distante de seu fim.

Por isso, indo-europeus nunca existiram: o que houve de fato eram povos falantes de Indo-europeu. A miscigenação e o bilinguismo - muitas vezes promovidos por casamentos e comércio - foram os grandes motivos da expansão de uma língua desde a Antiguidade. Se não difundiam o idioma, expandiam a compreensão das palavras: empréstimos ocorrem desde a Pré-história. Assim, muitas palavras comuns entre o Indo-europeu e o Kartveliano (de onde saíram muitas línguas atuais do Cáucaso, sendo a mais conhecida o Georgiano) se devem a empréstimos mútuos. Os defensores da teoria do Nostrático - língua-mãe de inúmeros outros idiomas, protolíngua que inclui grande número de troncos - esbarram sempre nessa dificuldade.


Árvore das Línguas

Hoje se sabe que a árvore das línguas é, na verdade, a árvore das estruturas linguísticas. O léxico comum não garante afinidade genealógica entre os idiomas. Por isso, o Inglês possui muitas palavras parecidas com o Francês, Italiano, Português e não é considerada língua românica, mas germânica, isto é, aparentada com o Alemão, Holandês, Sueco, Norueguês.

Ainda assim, um falante de Português que desconheça o Inglês, lendo um texto nessa língua, tem muito mais probabilidade de entender algumas palavras - com "education", "incontestable", "laryngitis" e "submarine" - do que se estivesse diante de suas correspondentes em Alemão - "Erziehung", "Unbestreitbar", "Kehlkopfentzündung" e "Unterseeboot". Como dizer, então, que Inglês e Alemão são parentes mais próximas do que Inglês e Português?

A proximidade está na estrutura e não no vocabulário: mais de 70% das palavras inglesas vieram do Francês normando, devido a fatos históricos, como o domínio da França sobre o território inglês. Também os falantes de Árabe e de Persa são na maioria muçulmanos, usam o mesmo alfabeto, têm um grande número de palavras comuns, embora suas línguas sejam de troncos completamente diferentes: o Persa é Indo-europeu, e o Árabe é semítico.

Se compararmos, contudo, os artigos, as preposições, os numerais, as flexões verbais e outros elementos do chamado "inventário fechado" dos idiomas encontraremos aí mais semelhança entre diferentes línguas de uma mesma família do que de outras. O Português tem preposições como "de", "em", "com" e "a", e numerais como "dois", "três" e "quatro", que equivalem a formas muito parecidas em Espanhol, Italiano, Francês, Romeno. Já o Inglês "the", "out", "on", "four" e "seven" se assemelham muito ao Alemão "der", "das", "aus", "an", "vier" e "sieben". Por isso são parentes.


História individual

Voltando agora às diferenças: novamente temos aí um falso problema. Tomemos como exemplos os termos alemães que já apresentamos.

"Erziehung" ("educação") tem o radical "zieh", que quer dizer "puxar", equivalente ao "duc-" latino do qual vem "e-duc-ação". "Unbestreitbar" ("incontestável") também é palavra culta, criada na Idade Média, com radical "streit-", que quer dizer "brigar" (o radical latino equivalente é "pugn-"): as partes da palavra "Un-be-streit-bar" equivalem literalmente a algo como "in-im-pugn-ável".

A palavra "Kehlkopfentzündung" ("laringite") é claríssima para qualquer falante de Alemão - diferentemente de tantas palavras médicas em Português, formadas sobre radicais gregos e latinos como "cistotomia", "onicorrexia", "encefalopatia", que excluem os leigos. É formada de duas palavras: a primeira, "Kehlkopf", literalmente significa "cabeça da garganta", nome popular da laringe, adotada pela Medicina alemã; e a segunda "Entzündung", tem o radical "zünd-", "pôr chamas, acender". Daí novamente, temos a influência da palavra latina que gerou o termo "in-flam-ação" em Português. Em "Unterseeboot" ("submarino") também os elementos do decalque são muito claros: "Unter" significa "sub", "See" quer dizer "no mar" e "Boot", barco. Ou seja: "barco submarino".

Não são, portanto, palavras cultas, ligadas à Ciência e à Tecnologia, que nos auxiliarão a chegar mais próximo do Indo-europeu. O contato dos idiomas promove os empréstimos e as referências, embora alguns sejam difíceis de ser reconhecidos.

Se o Alemão criou muitos termos travestindo palavras latinas durante o período do Sacro Império Romano-Germânico, o Tcheco, durante o período do reino da Boêmia, já se baseou no Alemão para criar as suas: "vy-slov-nost" equivale ao Alemão "Aus-sprache", que significa "pronúncia"; "caso-pis" equivale a "Zeit-schrift", "revista"; e as partes da palavra "za-mûst-nán-i" equivalem a "An-ge-stellt-er", "empregado". Não são palavras da vida moderna que garantem que o Tcheco seja eslavo e, o Alemão, germânico.

Conclui-se que algumas palavras são universais (e o Francês contribuiu muito para que o fossem nos séculos 18 e 19), outras são restritas a algumas línguas, outras ainda, têm sua universalidade escondida. Deveríamos pensar seriamente se não há uma história individual de cada palavra ao lado de uma história das estruturas linguísticas, comumente chamada de "história das línguas".


Texto de Mário Eduardo Viaro, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. Material retirado da revista Discutindo Língua Portuguesa, Ano I, número 4, Escala Educacional, São Paulo.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Consegues Ir? (5)

 "Vinde a mim..." - Jesus. (MATEUS, 11:28)


O crente escuta o apelo do Mestre, anotando abençoadas consolações. O doutrinador repete-o para comunicar vibrações de conforto espiritual aos ouvintes.

Todos ouvem as palavras do Cristo, as quais insistem para que a mente inquieta e o coração atormentado lhe procurem o regaço refrigerante...

Contudo, se é fácil ouvir e repetir o "vinde a mim" do Senhor, quão difícil é "ir para Ele"!

Aqui, as palavras do Mestre se derramam por vitalizante bálsamo, entretanto, os laços da conveniência imediatista são demasiado fortes; além, assinala-se o convite divino, entre promessas de renovação para a jornada redentora, todavia, o cárcere do desânimo isola o espírito, através de grades resistentes; acolá, o chamamento do Alto ameniza as penas da alma desiludida, mas é quase impraticável a libertação dos impedimentos constituídos por pessoas e coisas, situações e interesses individuais, aparentemente inadiáveis.

Jesus, o nosso Salvador, estende-nos os braços amoráveis e compassivos. Com ele, a vida enriquecer-se-á de valores imperecíveis e à sombra dos seus ensinamentos celestes seguiremos, pelo trabalho santificante, na direção da Pátria Universal...

Todos os crentes registram-lhe o apelo consolador, mas raros se revelam suficientemente valorosos na fé para lhe buscarem a companhia.

Em suma, é muito doce escutar o "vinde a mim"...

Entretanto, para falar com verdade, já consegues ir?


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

O filólogo que virou sinônimo de dicionário

 Um dos maiores eruditos brasileiros do século XX, Antônio Houaiss defendia o nacionalismo, a democracia e uma política linguística para o Português


No início de 1985, o Brasil vivia os primeiros tempos do retorno da democracia. A enciclopédia Retratos do Brasil lançou, então, um volume com 86 depoimentos sobre o significado dos anos da ditadura e o que se poderia esperar para o futuro. Em sua maioria, os convidados eram políticos, como  Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. Mas, entre eles, figurava um estudioso de questões linguísticas, um filólogo de discurso afiado. Sem eufemismos, Antônio Houaiss afirmava que "o balanço dos 21 anos de autoritarismo militar" era "não apenas melancólico, senão que também catastrófico".

Para o futuro, ele sugeria "mudanças imediatas na estrutura da posse da terra, na estrutura da produção agrícola e na estrutura da nossa dívida externa e interna". Em particular, salientava que "do ponto de vista da educação, sem uma transformação das bases do primeiro ciclo, fazendo-o universal, gratuito e compulsório, por um mínimo de sete anos, acompanhado de atendimento alimentar, de vestuário e de habitação, tudo o que se quiser realizar, em termos de formação de gerações futuras, será tão elitista quanto tem sido a nosso História".

Nesses poucos enunciados, aparecem sintetizados alguns aspectos essenciais do pensamento e da ação pública de um dos mais eruditos brasileiros do século XX: o nacionalismo e a busca do desenvolvimento social, que Antônio Houaiss manteve atuantes quando tratou de temas relativos à Língua Portuguesa.


Múltiplos saberes e ofícios

A erudição de Houaiss era impressionante. Por vezes, desconcertante. Sem nenhum favor, podemos dizer que foi professor, linguista e filólogo, teórico da literatura e crítico literário, tradutor, bibliógrafo (e bibliófilo), incansável organizador de enciclopédias e dicionários, diplomata, homem político comprometido com o socialismo, conhecedor de culinária - enfim, um humanista na acepção clássica do termo.

E não foi um homem apenas de saberes, mas também de práticas. Como diplomata, ocupou cargos na República Dominicana e na Grécia, bem como junto à Organização das Nações Unidas, a ONU, tanto em Genebra quanto em New York. Como político, ajudou a fundar o Partido Socialista Brasileiro, do qual é presidente de honra, chegando a ministro da Cultura, em 1993, durante o governo de Itamar Franco. Suas ideias políticas valeram-lhe, inclusive, a aposentadoria compulsória do Itamarati e a cassação de seus direitos políticos após o golpe de 1964.

Como estudioso da linguagem, publicou inúmeras obras filológicas e de crítica literária. Além disso, traduziu a obra Ulisses, do escritor irlandês James Joyce, um dos marcos da literatura modernista do século XX. A tradução envolve imenso conhecimento das línguas inglesa e portuguesa, dada a necessidade de verter os incontáveis jogos de linguagem do original.

Foi também enciclopedista, tendo coordenado a Delta Larousse, a Mirador e a Barsa, além de ser um dos coautores da enciclopédia Koogan-Houaiss. Em 1973, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, instituição que viria a presidir em 1995.

Seu maior projeto, talvez seu maior sonho, foi a criação do mais completo dicionário da Língua Portuguesa, que leva o seu nome e o qual, infelizmente, não viu publicado. Com mais de 228 mil verbetes, o dicionário Houaiss saiu em 2001, mas seu idealizador havia falecido em 1999, na mesma Rio de Janeiro que o vira nascer em 1915.


TODAS AS LÍNGUAS PODEM TUDO

Embora amplos e variados, podemos pensar que os escritos linguísticos de Antônio Houaiss tiveram motivações, sobretudo, políticas. Não no sentido partidário ou propriamente ideológico. Falamos, aqui, da política linguística.

Houaiss defendia a ideia de que, do ponto de vista estrutural, todas as línguas se equivalem. Ele dizia: "As tentativas de estudar as línguas dos homens sob a luz de uma especificidade funcional (...) revelam, na verdade, apenas certo tipo de dependência dessas línguas para com o momento cultural do povo que a fala ou a escreve". Assim, não é correto dizer que haja línguas estruturalmente mais aptas para a expressão, por exemplo, da filosofia ou das ciências ou da política ou de qualquer outro universo de conteúdo.

Potencialmente, portanto, todas as línguas podem expressar todos os conteúdos. Entretanto, esse potencial pode ou não ser historicamente realizado. Por exemplo, idiomas como o japonês, o árabe, o chinês e o hindi, até o século XIX, não eram suporte para o pensamento científico moderno. O desenvolvimento do Japão, dos países árabes, da China e da Índia fez com que esse pensamento passasse a ser expresso nesses idiomas, eventualmente até como pensamento de ponta.

Mas esse fenômeno, é claro, pode não ocorrer - provavelmente não ocorrerá - para todas as línguas do mundo. Para Houaiss, "há, assim, um milagre linguageiro humano positivo: a isonomia sistêmica de todas as línguas; e há, em contrapartida, um milagre linguageiro negativo: só algumas foram eleitas".

É com essa abordagem - talvez excessivamente direta, mas nem por isso menos realista - que Houaiss pensou políticas linguísticas para a Língua Portuguesa, a principal delas, a unificação ortográfica dos países de Língua Portuguesa, que ele defendeu como um dos instrumentos imprescindíveis para o fortalecimento mundial do português.


Texto sem autoria identificada retirado da revista Discutindo Língua Portuguesa, Ano 1, número 2, Escala Educacional, São Paulo.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Os embalos de uma dança muito brasileira

 Por volta de 1910, começaram a aparecer discos na Europa com a palavra 'mattschiche' acompanhando os títulos das músicas, para definir seu ritmo.


A palavra, cuja grafia costumava variar um pouco (mattcheche, mattchichi, etc), tentava traduzir foneticamente o som de maxixe, que batizava um determinado tipo de música e dança que começou a existir aqui pelo menos desde 1880.

Como gênero musical, o maxixe nasceu quando músicos populares passaram a tocar polca, que era de origem europeia e sempre executada no piano (e restrita aos salões imperiais da alta sociedade carioca), com outros instrumentos, como o violão, a viola e a flauta. Aquela nova forma de tocar polca logo se misturou a outros gêneros, como o lundu e o chorinho, a  habanera cubana e o tango argentino, presentes no repertório de grupos que animavam bailes - e tal tipo de mistura viria a ser dançada com requebrados, movimentos exagerados e sensuais, semelhantes aos do batuque, do cateretê e da embolada, que chegaram com os escravos e eram consideradas "danças pecaminosas" pelos europeus porque "envolviam o contato de umbigos".

A origem do nome (na época, grafado com 'ch') é obscura: talvez tenha sido batizado machiche porque essa palavra designava coisas de baixo valor, atestando sua gênese entre as pessoas pobres daquele quase fim de século; já Heitor Villa-Lobos (1887-1959) divulgou uma versão segundo a qual a dança foi inventada na sociedade Estudantes de Heidelberg por alguém assim apelidado. Em seu livro Maxixe - A Dança Excomungada, de 1974, Jota Efegê desmente essa versão. Segundo esse autor, a primeira vez que o nome apareceu escrito com 'x' foi numa quadrinha, em fevereiro de 1883, no Jornal do Comércio, numa publicidade do Club dos Democráticos, anunciando um baile de carnaval:

Cessa tudo quanto a musa antiga canta

Que do castelo este brado se alevanta

Caia tudo no maxixe, na folgança

Que com isso dareis gosto a Sancho Pança


O MAXIXE NO TEATRO DE REVISTA

Até então, o maxixe era somente uma dança que rapidamente se tornou sensação, imitada nos salões de baile com seus passos de nomes nada sofisticados: carrapeta, balão, parafuso, corta-capim, saca-rolha. A criação da música além da dança se deu seguindo "a forma malandra e exagerada de dançar a polca-tango que acabaria por fazer surgir o maxixe como gênero musical autônomo", nas palavras do crítico e historiador José Ramos Tinhorão, que cita o maestro César Guerra-Peixe (1914-1993) e seu artigo 'Variações Sobre o Maxixe' para descrever como aconteceu o processo: "a melodia contrapontada pela baixaria (a exageração dos baixos mesmo nos instrumentos de tessitura grave das bandas), passagens melódicas à guisa de contraponto ou variações e, em alguns casos, baixaria tomando importância capital".

Somente depois de a dança ter se caracterizado plenamente é que começou o registro de músicas com o nome maxixe - as primeiras partituras com tal designação surgiram em 1902/1903. Vale lembrar que o grande compositor e pianista Ernesto Nazareth (1863-1934) recusava o termo para designar suas obras, preferindo o nome 'tango brasileiro' (ou 'tanguinho') - quem sabe para não vincular sua música a uma origem marginal.

O teatro musicado logo se apropriou da nova mania, e as peças passaram a apresentar, quase todas, quadros em que o maxixe era tocado e dançado, como na revista República, de Arthur Azevedo (1885-1908), que popularizou 'As Laranjas da Sabina', o primeiro sucesso do maxixe; 'Maxixe Aristocrático', de 1904, de José Nunes, ficou famoso apresentado pela dupla Papa Delgado e Marzullo na revista Cá e Lá. A primeira composição gravada como maxixe foi 'Sempre Contigo' lançada pela Banda da Casa Edson, sem data (talvez 1902) e de autor desconhecido.


PARA EXPORTAÇÃO

Em 1909, o dançarino e compositor Antônio Lopes de Amorim, de nome artístico Duque, viajou para a Europa e se fixou em Paris. Pouco depois, o tango argentino, como dança, tornou-se a maior sensação nos salões da Europa, e Amorim, já conhecido como Monsieur Duque, resolveu mostrar le tango brésilien, o maxixe, em1912. Alguns editores começaram a promover o maxixe como uma forma renovada de tango; orquestras e bandas passaram a gravar maxixe para os fonógrafos - assim, de repente, o gênero se tornou uma febre. Da Europa, o maxixe seguiu para os EUA, onde foi muito bem acolhido. Em 1914, o dançarino americano Maurice Movet (1888-1927) escreveu: "O maxixe brasileiro pode ser dançado com qualquer acompanhamento musical de passo duplo, enquanto que o tango somente pode ser dançado com sua própria música. O maxixe é peculiarmente adaptado ao temperamento americano".

Os passos do maxixe a partir de sua exportação foram estilizados e coreografados. Os manuais de dança, que ensinavam as danças sociais, passaram a incluir o estilo. Vernon e Irene Castle, o casal de dançarinos mais famosos da época, adotou o maxixe, como atesta um filme mudo de 1915, que mostra os Castle exibindo a dança - o mesmo ocorre na cinebiografia The Story of Vernon and Irene Castle, de 1939, com Fred Astaire e Ginger Rogers representando o casal dançando 'Dengozo', de Ernesto Nazareth.

Passada a mania do maxixe, o gênero ainda foi dançado nos EUA e na Europa até o começo dos anos 1920. Houve várias tentativas frustradas de "substituir" o maxixe pelo samba, inclusive pelo próprio Monsieur Duque. Mas o samba é o único dos gêneros musicais hegemônicos das Américas que jamais ultrapassou fronteiras, nem como dança.

No Brasil, o maxixe resistiu com sucesso até o final dos anos 1920, tendo entre seus cultores principais os compositores Irineu de Almeida, Sebastião Cyrino, Sinhô, Romeu Silva, Pixinguinha, Pedro de Sá Pereira e J. Bicudo. A partir de então, estava destinado a reaparecer somente em filmes e telenovelas 'de época'.


Texto de René Ferri retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 16 Escala Educacional, São Paulo, 2010.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O Irresistível Baião

 Uma música lançada em 1946 possuía um ritmo binário, buliçoso, contagiante, quase impossível de resistir - no título, o nome do ritmo "baião", e a letra, muito simples, prometia ensinar a dançar 'quem quiser aprender'.


O baião realmente revolucionou - foi a primeira grande sacudida que a música brasileira urbana tomou da música regional. O lançamento do baião foi cuidadosamente urdido pelo compositor e radialista Humberto Cavalcanti Teixeira (1915-1979), um advogado cearense que se dedicou inteiramente à música, mesmo no seu mandato político posterior, quando foi eleito deputado federal. São de Teixeira as leis originais brasileiras de proteção ao direito autoral na música - e é dele também a autoria da chamada 'Lei Humberto Teixeira', que financiou excursões de artistas brasileiros ao redor do mundo em missões de divulgação de nossa cultura.


LUIZ GONZAGA

Modesto, Teixeira creditou o sucesso do lançamento do baião ao seu parceiro Luiz Gonzaga (1912-1989), então um cantor/acordeonista anônimo, pernambucano de Exu, que já vivia no Rio de Janeiro há alguns anos, tocando em shows de rádio e em casas noturnas. Num lampejo, Gonzaga decidiu incluir no seu repertório variado de polcas, serestas, valsas, sambas e foxes algumas "coisinhas" da música sertaneja nordestina. O encontro de Teixeira e Gonzaga, no Rio de Janeiro, resultou numa das parcerias mais profícuas da história da música popular brasileira.

O sucesso do baião foi imediato e avassalador. A fórmula simplificada de tocá-lo, com três instrumentos - acordeão (sanfona), zabumba e triângulo - isto, sim, uma invenção de Luiz Gonzaga, favoreceu o aparecimento de centenas de 'trios nordestinos' em todo o País, grupos musicais que tocavam baião e similares, como coco, embolada, xote, toada. A lembrar que, na época, a cultura do Nordeste e a sua música, inclusive, eram completamente desconhecidas no eixo Rio-São Paulo, o que reforçava a aceitação do baião pelo viés "exótico". Desconhecíamos completamente o baião, que o folclorista Luis Câmara Cascudo (1898-1986) associa aos termos 'baiano' e 'rojão' - sendo 'baiano', no caso, uma dança popular nordestina (derivada do verbo 'baiar', forma popular de bailar) e o segundo o pequeno trecho musical executado pelas violas no intervalo dos desafios da cantoria. O baião, que todo o resto do Brasil começaria a conhecer apenas em 1946, já existia no Nordeste desde o século anterior.


COQUELUCHE NACIONAL

Ninguém ficou indiferente ao baião, pois os artistas de São Paulo e do Rio de renome aderiram em massa à "coqueluche nacional", conforme foi chamado pela influente revista carioca Radar, em 1949. Entre os mais célebres, Carmen Miranda, Isaura Garcia, Marlene, Emilinha Borba, Dircinha Batista, Ademilde Fonseca, Stelinha Egg, Ivon Curi e Dalva de Oliveira gravaram baião. A partir de 1950, Carmélia Alves foi aclamada 'Rainha do Baião'; a revelação Claudete Soares passou a se apresentar como 'A Princesinha do Baião'. A verdade é que, até pelos menos 1957, a música brasileira e tudo mais que se referia a ela giraram principalmente em torno do baião: os sucesso radiofônicos, as edições em partitura, a produção industrial de discos, o rendimento das editoras e das gravadoras de discos.

O sopro de modernidade da bossa nova e da 'Era Juscelino' colocaram o baião, seus intérpretes e compositores num ostracismo tal que o próprio Luiz Gonzaga, cujo epíteto era 'O Rei do Baião', desapareceu por completo, só vindo ressurgir em meados dos anos 1970, alçado por uma nova geração de músicos e compositores que o veneravam como mestre.


RECONHECIMENTO

Graças a cantores como Gal Costa, Gilberto Gil e Alceu Valença, Luiz Gonzaga ganhou um merecido reconhecimento do público brasileiro nascido após o baião mergulhar no esquecimento. Todos passamos a ligar o nome de Gonzaga ao clássico 'Asa Branca', mas o parceiro Humberto Teixeira teria de esperar mais um bom tempo pelo reconhecimento. Ele morreria antes de sua memória começar a ser recuperada, em 2006 com os livros 'O Cancioneiro Humberto Teixeira', em 2008 com o cine-documentário 'O Homem Que Engarrafava Nuvens' - projetos com efetiva participação de Denise Dumont, a atriz, filha única de Teixeira, nas pesquisas e na produção.


BAIÃO INTERNACIONAL

Já no começo dos anos 1950, o baião se internacionalizou. 'Delicado', de Waldir Azevedo, recebeu diversas regravações nos EUA e Europa; não faltaram imitações: no filme italiano 'Arroz Amargo' (1951), Silvana Mangano imita Carmélia Alves em 'O Baião de Ana'; na verdade uma conga cubana, com um "baião" no título, para aproveitar a onda.

Em New York, por volta de 1956, Ahmeth Ertegun queria revitalizar sua gravadora Atlantic, especializada em jazz, existente desde 1948; chamou seu irmão Neshui, que transformou a Atlantic na Meca da moderna música black urbana - segundo uma história boa demais para não ser verdade, os Ertegun se reuniram com seu staff de produtores e lhes deram uma pilha de discos brasileiros de baião, pedindo que tirassem de lá algo que desse personalidade ao som da nova Atlantic. E, então, começaram a ser editados os discos de Ruth Brown, LaVern Baker, Drifters, Coasters, Ray Charles, Ben E. King, etc, produzidos por Ahmet Ertegun, Jerry Leiber & Mike Stoller, Phil Spector, Jerry Wexler, com o inequívoco apelo do ritmo do baião bem misturado ao rhythm & blues. Em Los Angeles, um compositor que se tornaria um dos mais importantes da história, Burt Bacharach, temperava de baião seu som pop, uma fórmula que ele iria seguir, com enorme sucesso, nas décadas seguintes. O som da Atlantic e de Bacharach seria uma influência decisiva em tod rock e pop produzido no mundo do princípio dos anos 1960 em diante.

Lamentavelmente, os mestres do baião não souberam aproveitar a viagem do ritmo pelo mundo. Sequer tiveram ânimo para reclamar a autoria - erros que os mentores e feitores da bossa nova não quiseram repetir.


Texto de René Ferri retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 17, Escala Educacional, São Paulo, 2008.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A origem dos nomes dos meses e do ano bissexto

 As mudanças nos calendários ao longo da história


No calendário de Rômulo, o primeiro rei de Roma e seu fundador, o ano começava em março e tinha dez meses, cujos nomes primitivos eram Martius (em homenagem ao deus da guerra, Marte), Aprilis (nome relacionado a Apros ou Afros, designativo de Afrodite, nome grego da deusa Vênus, a quem abril* era dedicado); Majus (em homenagem à deusa Maia, uma das Atlântidas, amada de Júpiter e mãe de Mercúrio), Junius (em homenagem à deusa Juno, equivalente à deusa Hera dos gregos), Quintilis, Sextilis, September, October, November e December. A relação de aprilis com aperire (abrir) surgiu posteriormente, na vigência do calendário de Numa Pompílio, por ser abril o mês da primavera, em que "todas as coisas se abrem".

Numa Pompílio (circa 715-circa 672 a.C.), sucessor de Rômulo, querendo igualar a contagem do tempo romano à dos gregos e fenícios, reformou o calendário de Rômulo, instituindo os meses Januarius (em homenagem ao deus Janus, protetor dos lares) e Februarius, do latim februus, adjetivo de primeira classe que significa "o que purifica, purificador". No mês de fevereiro, realizavam-se cerimônias de purificação, como sacrifícios expiatórios e os ritos de purificação chamados "lupercálias"**. As lupercálias eram festas em homenagem a Pã, realizadas no dia 15 de fevereiro, em que jovens saíam nus da gruta Lupercália flagelando os transeuntes com um cinto de pele de cabra chamado também lupercal***, considerado capaz de eliminar a esterilidade e provocar partos felizes.


HOMENAGENS

Os meses Quintilis e Sextilis foram rebatizados com os nome de julho e agosto, em homenagem aos dois primeiros dos doze césares: Julius (Júlio César) e Augustus. Para que julho e agosto tivessem o mesmo número de dias, subtraíram-se dois dias do mês de fevereiro. Repare que as festas de junho são juninas (de Juno), mas as festas de julho são julianas (de Júlio), e não "julhinas" ou "julinas", nomes que não existem.

O calendário romano tinha três datas com nome próprio: Kalendae ou Calendas (o primeiro dia de cada mês), Nonae ou Nonas (o dia 5 de todos os meses, exceto março, maio julho e outubro, em que Nonae designava o dia 7) e Idus ou Idos (o dia 15 para aqueles quatro meses e o dia 13 para os outros meses). Os outros dias de cada mês eram citados a partir daqueles três nome****.

Em outras palavras, em lugar de numerar os dias em sequência crescente, como fazemos, os romanos preferiam numerar os dias usando as palavras Calendas, Nonas e Idos como pontos de referência. Para se ter uma ideia, a expressão "desde 3 de junho até 31 de agosto" se dizia em latim como "terceiro dia antes das nonas de junho até o primeiro das calendas de setembro" ("ante diem III Nonas Junias usque ad pridie Kalendas Septembres").

O dia 24 de fevereiro era chamado "o sexto das calendas de março". No nosso calendário, o gregoriano, no ano bissexto, temos um dia a mais, acrescentado ao último dia do mês de fevereiro. Mas, no calendário juliano, o dia a mais era acrescentado ao dia 24. Ou melhor: havia dois dias de número 24. Portanto, havia duas vezes o sextus dies (bis sextus) antes das calendas de março. Desses dois sextos é que se originou a expressão "ano bissexto".

Nas modificações efetuadas por Numa Pompílio no calendário de Rômulo, o ano civil tinha um erro de dez dias em relação ao ano solar. Ele tentou corrigir o erro acrescentando um mês de dez dias entre 23 e 24 de fevereiro. Mas essa solução trouxe tantos problemas que, em 44 a.C., Júlio César resolveu modificar novamente o calendário, dando ao ano a duração de 12 meses, ou 365 dias, de acordo com o calendário egípcio. Foi um astrônomo de Alexandria, chamado Sosígenes, que descobriu que o ano civil tinha seis horas a menos que o ano solar. Assim, Roma instituiu que a cada quatro anos seria acrescentado um dia em fevereiro. Como vimos, o dia 24 de fevereiro era chamado "sexto das calendas". Com o dia adicional (acrescentado após o dia 24, com a mesma numeração), houve dois sextos (=bissexto) das calendas.


Texto de José Augusto Carvalho retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 17, Escala Educacional, São Paulo, 2008.


* abril - Abril vem de aprilis, nome de um dos espíritos que seguiam o carro de Marte, deus da guerra, que deu nome ao mês de março. Assim, aprilis não se relaciona com abrir (latim: aperire), mas com o grego Apros ou Afros, designativo de Afrodite, nome grego da deusa Vênus, a quem abril era dedicado, ou em sânscrito áparah, que significa "posterior" (aparentado com o gótico afar ou aftra, que significa "depois"), pois abril era o segundo mês do ano, no calendário civil de Rômulo (daí os nomes setembro, outubro, novembro e dezembro para os meses sete, oito, nove e dez, respectivamente.

** lupercálias -  O nome "Luperca" designa a loba que amamentou os gêmeos Rômulo e Remo na gruta chamada Lupercal. Na realidade, "lupus", lobo, em latim, primitivamente, não tinha feminina. A loba-animal era "lupus femina". "Lupa" designava a cortesã, daí o nome "lupanar" para designar o prostíbulo. A "lupa" que amamentou os gêmeos era, na verdade, uma cortesã chamada Aca Laurentia ou Laurentina. Os sacerdotes romanos é que "purificaram" o origem de Roma, atribuindo à loba-animal a amamentação dos gêmeos que fundaram a cidade.

*** Lupercal - Lupercus se teria originado da justaposição de lupus (lobo) com hircus (bode), mas como era outro nome de Pã, deus dos pastores e dos rebanhos, presume-se que lupercus signifique também "o que afasta o lobo".

**** a partir daqueles três nomes - Por exemplo: o dia 3 de abril era chamado "o terceiro dia antes das nonas de abril" ("ante diem tertium nonas Apriles"); o dia 9 é o "quinto antes dos idos de abril" (os idos de abril caem no dia 13); o dia 26 de abril era o "sexto dia das calendas de maio".


O MÊS DA MENTIRA

A reforma que Carlos IX empreendeu na França em 1564 apenas obrigava os franceses a seguir o calendário juliano (com o ano começando a primeiro de janeiro). Até então, e desde Carlos Magno, era o calendário de Rômulo (com o ano começando a primeiro de março) que vigorava na França. O papa Gregório XIII, em 1582, realizou uma nova reforma, ao verificar que o calendário juliano havia incorrido num erro anual de 11 minutos e 8 segundos. Desde o ano 44 A.C. até 1582, por causa desse erro, havia uma diferença de dez dias. Para compensar esses 10 dias e regularizar a contagem do tempo, o papa determinou que, ao dia 5 de outubro de 1582, deveria seguir-se o dia 15 de outubro, e não o dia 6. A reforma gregoriana causou confusão com as datas e as comemorações tradicionais - além de bagunçar a astrologia. O dia 21 de março corresponderia ao fim do signo de peixes. A confusão de 10 dias fez crer que o dia primeiro de abril era ainda de peixes, isto é, o signo pularia dez dias para terminar no dia primeiro de abril. Em francês, a expressão poissons d'avril, isto é, peixes de abril passou a designar as mentiras de primeiro de abril, porque até o nome abril, por engano, teria passado a ser considerado como o primeiro dia do ano, a abrir o ano. Da França, o dia dos enganos se estendeu ao resto do Ocidente.