Contar histórias significa mobilizar quatro aplicativos principais
Quando dizemos que um conto ou um romance "contam uma história" estamos fazendo uma simplificação, porque cada autor conta sua história de uma maneira diferente. Cada autor tem sua paleta de cores, ou sua caixa de ferramentas, ou sua pasta de aplicativos - fique o leitor com a comparação que achar mais justa. Para mim, os aplicativos principais (pois não estou dizendo que não haja outros) são quatro: descrição, ação, diálogo e narração. Eles aparecem aqui e ali com nomes diferentes, mas são estes os nomes que aplico para uso próprio; talvez essa divisão possa ser útil a mais alguém.
Descrição
É qualquer texto que reproduz o mundo físico, visível, palpável, onde acontece a história:
"Ele chegou a uma ruazinha estreita, calçada de pedras, iluminada por um lampião. Na calçada, diante do batente de uma casa, um velho de pijama cochilava numa cadeira de balanço. Ele caminhou até o número que tinha anotado."
O romance realista do século 19 refinou a arte da descrição a um ponto que me parece insuperável. Uma tentativa de superá-la foi feita por alguns autores do século 20, especialistas em descrições minuciosas, de extrema imaginação; Alain Robbe-Grillet (Encontro em Hong Kong, A Suspeita, etc) e Georges Perec (A Vida Modo de Usar, As coisas, Um Homem que Dorme) se especializaram nisso, e sua literatura, embora excelente, bate muitas vezes num teto de onde não é possível ir além.
É bom lembrar que a descrição não á apenas visual, não é somente a tentativa de evocar na mente do leitor o que Ezra Pound chamava de "fanopeia", a impressão visual produzida pelo texto. O autor pode estar descrevendo a sensação total produzida por um ambiente físico:
"Uma criada de roupa amarfanhada abriu a porta e pediu-lhe que esperasse. A sala tinha um cheiro úmido e abafado como se há muito tempo as janelas não fossem abertas para dar entrada ao sol; farelos de comida pelo chão indicavam que não tinha sido varrida na véspera. Do quarto ao lado, a TV ligada bradava o ruído irritante de um filme de mercenários em guerra. Ele sentou no sofá, que cedeu mais do que era de se esperar. E esperou um longo tempo".
Sensações físicas dão origem a interpretações. O autor não apenas descreve o que o personagem vê, cheira ou escuta, mas a impressão que aquilo lhe causa.
Ação
É o que acontece, a parte dinâmica da narrativa, se mistura a todo o resto. Ação e descrição devem estar misturadas como café e leite. A ação pode ocorrer em diferentes níveis de tempo. É possível sintetizar ações de vários anos num pequeno trecho:
"Há dez anos ele tentava localizar aquele homem. Viajou o país inteiro, remexeu arquivos, consultou cartórios, rastreou os indícios de sua passagem."
Estreitando um pouco o foco temporal, pode-se narrar uma ação de um dia inteiro:
"De posse do endereço, ele voltou ao hotel, almoçou, deu alguns telefonemas, e ao anoitecer pegou o ônibus que o deixaria próximo do local."
A ação é aparentemente fácil de escrever ("basta contar o que as pessoas estão fazendo"), mas pode ser traiçoeira. Uma das armadilhas mais frequentes são as cenas de ações muito específicas: cenas de sexo, de briga corporal, etc. Não basta dizer o que está acontecendo, é preciso fazê-lo de um modo que tenha a ver com os atos, os movimentos. Não se pode narrar uma briga como se narra uma refeição.
Narração
É o texto em que o autor comenta, fala o que há na mente dos personagens, dirige-se ao leitor, evoca passados ou futuros, etc. É um espaço onde ambiente e personagens retrocedem para o fundo do palco e o autor se adianta. Não sei se "narração" é o termo adequado, mas evoca uma presença por trás do texto (que não é necessariamente o autor, é muitas vezes um "preposto" seu, criado por ele para contar a história):
"A escolha do filme e o volume alto tinham sido propositais. O estalo do 22 passou despercebido. O homem e a criada arrastaram o corpo para o buraco retangular cavado desde a véspera. Para eles era um ritual aguardado, que se cumpria em minutos e sinalizava o início de uma nova espera. Pás de uma terra escura, empapada de chuva, foram jogadas sobre o cadáver e sobre os ossos carcomidos que despontavam no fundo. Dentro da casa, o tiroteio do filme continuava, surdo àquele outro tiroteio esparso que há anos vinha reduzindo o número dos detentores de um segredo mortal."
Diálogo
Parece simples - é o que os personagens dizem, geralmente indicado por travessões (uns usam aspas, à norte-americana). Para alguns, é a parte fácil: dezenas de páginas de bate-papo ininterrupto. Muitas vezes torna-se a parte redundante (o diálogo só confirma o que já foi mostrado) ou supérflua (o autor inexperiente pede a um personagem que explique ao leitor um ou outro detalha que ele não conseguiu deixar claro).
Idealmente, todo diálogo deveria trazer uma revelação sobre quem fala e escuta, sobre a narrativa propriamente.
" - Quem lhe deu meu endereço me ligou em seguida - disse a voz à janela, sobressaltando-o.
Olhou: era o velhinho que estivera cochilando na calçada, e o revólver em sua mão não tremia.
- Não pense que me caço. Fui eu que o pesquei."
Texto de Bráulio Tavares retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, nº 113, Março de 2015, Editora Segmento, São Paulo.