domingo, 6 de outubro de 2024

Caríssima Henriqueta

 "Tenho o corpo tão leve (quando queiras) que a teu primeiro sopro cederei distraída como um pensamento cortado pela visão da lua em que acaso - mais alto - refloresça."                                                                                                                                  (verso final de Vem, doce morte, de Henriqueta Lisboa, 1950)


A normalista sai do Colégio Sion, em Campanha, e, da cidade natal, a vizinha Lambari, em Minas Gerais, muda-se com a família para o Rio de Janeiro. Ali se torna inspetora de alunos, professora de Literatura Hispano-Americana, tradutora, e vira poeta. Estamos em 1925, quando Henriqueta Lisboa publica seu primeiro livro de poesias, o de corte ainda marcadamente simbolista Fogo-fátuo.

Nas décadas seguintes, ela se afirma como uma das mais delicadas vozes da poesia brasileira, publicando obras que vão pouco a pouco se filiando à chamada segunda geração de modernistas. Em O Menino Poeta, de 1943, pela primeira vez um livro infantil no país escapa dos esquemas pedagógicos e do cunho moralista vigente e se aventura no jogo de palavras, na leitura pelo prazer do texto.

O Modernismo, sua temática e o verso livre em sua poesia vão ganhando espaço em trajetória similar à de Cecília Meirelles. Na correspondência tão afetuosa entre Henriqueta e Mário de Andrade, Querida Henriqueta, encontramos algumas pistas disso: "...tem em você agora, com certa indecisão, imprecisão de divisão, duas pessoas distintas. Uma delas é o poeta, e outra é a professora católica". No decorrer de seus livros, à procura da "realidade lírica e livre da poesia", como lhe aconselhou Mário, Henriqueta, aos poucos, substitui definitivamente a primeira pela segunda, com folgas.


Texto de Marcílio Godoi retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, Número 105, Julho de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

Ante o objetivo (40)

 "Para ver se de algum modo posso chegar à ressurreição." - Paulo. (FILIPENSES, 3:11.)


Alcançaremos o alvo que mantemos em mira:

O avarento sonha com tesouros amoedados e chega ao cofre forte.

O malfeitor comumente ocupa largo tempo, planificando a ação perturbadora, e comete o delito.

O político hábil anseia por autoridade e atinge alto posto no domínio terrestre.

A mulher desprevenida, que concentra as ideias no desperdício das emoções, penetra o campo das aventuras inquietantes.

E cada meta a que nos propomos tem o preço respectivo.

O usuário, para amealhar o dinheiro, quase sempre perde a paz.

O delinquente, para efetuar a falta que delineia, avilta o nome.

O oportunista, para conseguir o lugar de mando, muitas vezes desfigura o caráter.

A mulher desajuizada, para alcançar fantasiosos prazeres, abdica habitualmente, o direito de ser feliz.

Se impostos tão pesados são exigidos na Terra aos que perseguem resultados puramente inferiores, que tributos pagará o espírito que se candidata à glória na vida eterna?

O Mestre na cruz é a resposta para todos os que procuram a sublimidade da ressurreição.

Contemplando esse alvo, soube Paulo buscá-lo através de incompreensões, açoites, aflições e pedradas, servindo constantemente, em nome do Senhor.

Se desejas, por tua vez, chegar ao mesmo destino, centraliza as aspirações no objetivo santificante e segue, com valoroso esforço, na conquista do eterno prêmio.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 29 de setembro de 2024

Leitores sem leitura

 No vácuo de sua elite cultural, Brasil vira uma sociedade de letrados sem exercício


O Brasil é uma sociedade de letrados sem leitura.

Segundo a Câmara Brasileira do Livro, há quase 90 milhões de pessoas letradas no Brasil, mas uma parcela grande desse bolo simplesmente não lê nada: são 14 milhões de alfabetizados sem leitura, todos maiores de 15 anos.

Esse grupo não é de analfabetos funcionais, o dos que aprenderam a escrever ou ler o nome, só isso ou pouco mais. Eles representam antes 15% do total de brasileiros capaz de entender o que lê. São parte da elite cultural

1/3 do leitor da classe A admite ter total falta de prazer com o ato de ler.

1 em 4 pessoas AB dizem que não leem por preguiça ou impaciência.

1 em 4 pessoas com nível superior diz que não gosta de ler, nem pega num livro depois dos 19 anos se não for por obrigação (em geral, a pedido da escola ou em razão do emprego).


Diferenças

O mercado editorial cresceu nos últimos anos, mas o consumo de obras de qualidade se mistura nas estatísticas de best-sellers e papel pintado com prosa caça-níquel, obras religiosas ou de autoajuda.

A demanda por leitura não é consistente o bastante para sustentar livrarias por todo país.

O país tem hoje 1.800 livrarias, metade no estado de São Paulo, cuja capital tem cerca de 200 livrarias. O Rio de Janeiro tem umas 150. Acre e Amapá são os que menos têm: três cada.

É pouco. O Brasil tem 1 livraria para cada 84.500 habitantes. Os Estados Unidos tem 1 para 15 mil e os argentinos, 1 para 50 - o que legitimou o mito de que só Buenos Aires teria mais livrarias que todo o Brasil (mas lá há não mais de 400).

Conclusão: o pouco hábito de leitura da elite brasileira é que tem se tornado responsável pelo grosso da bobagem editorial consumida no país.



Texto de Luiz Costa Pereira Júnior retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 106, Agosto de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

sábado, 28 de setembro de 2024

Fé Inoperante (39)

 "Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma." - (TIAGO, 2:17.)


A fé inoperante é problema credor da melhor atenção, em todos os tempos, a fim de que os discípulos do Evangelho compreendam, com clareza, que o ideal mais nobre, sem trabalho que o materialize, a benefício de todos, será sempre uma soberba paisagem improdutiva.

Que diremos de um motor precioso do qual ninguém se utiliza? De uma fonte que não se movimente para fertilizar o campo? De uma luz que não se irradie?

Confiaremos com segurança em determinada semente, todavia, se não a plantamos, em que  redundará nossa expectativa, senão em simples inutilidade? Sustentaremos absoluta esperança nas obras que a tora de madeira nos fornecerá, mas se não nos dispomos a usar o serrote e a plaina, certo a matéria-prima repousará, indefinidamente, a caminho da desintegração.

A crença religiosa é o meio.

O apostolado é o fim.

A celeste confiança ilumina a inteligência para que a ação benéfica se estenda, improvisando, por toda parte, bênçãos de paz e alegria, engrandecimento e sublimação.

Quem puder receber uma gota de revelação espiritual, no imo do ser, demonstrando o amadurecimento preciso para a vida superior, procure, de imediato, o posto de serviço que lhe compete, em favor do progresso comum.

A fé, na essência, é aquele embrião de mostarda do ensinamento de Jesus que, em pleno crescimento, através da elevação pelo trabalho incessante, se converte no Reino Divino, onde a alma do crente passa a viver.

Guardar, pois, o êxtase religioso no coração, sem qualquer atividade nas obras de desenvolvimento da sabedoria e do amor, consubstanciados no serviço da caridade e da educação, será conservar na terra viva do sentimento um ídolo morto, sepultado entre as flores inúteis das promessas brilhantes.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Mentir é feio, mas é gostoso!

 "Mário de Andrade não podia compreender. Pensava que eu tinha sido levado à cultura popular pela erudição. Mentira. A cultura popular é que me levou a esta." (Luís da Câmara Cascudo, em depoimento a Pedro Bloch)


Ameaçado de demissão do colégio em que lecionava por sua "indignidade" em ficar indagando o lobisomem e estudando catimbó, Câmara Cascudo foi trabalhar no jornal de seu pai, A Imprensa.

Intelectual de muita vivência na cultura popular, o advogado e etnógrafo Cascudo era amante de todas as artes, e elas se derretiam por seus grandes olhos azuis. Menos a matemática, e ele temia que um dia, exatamente por isso mesmo convidassem-no para ocupar o cargo de Ministro da Fazenda. Gostava de repetir: "O folclore é que se interessou por mim".

Seu já folclórico Dicionário do Folclore (1954) nasceu de uma verve incontrolável de enciclopedista, memorialista e historiador que aflorou ainda em seus primeiros "caderninhos de notas". Com eles, gerava também publicações como Literatura Oral no Brasil, Vaqueiros e Cantadores, Geografia dos Mitos Brasileiros, Contos Tradicionais do Brasil e outros mais de 150 livros que foram lhe dando em sua cidade Natal, RN, de onde nunca arredaria o pé (por se considerar "provinciano incurável"), o prestígio de ser o home mais ilustrado, o escritor mais enfeitado do mundo. A fama correu o Brasil. Vai ver e era mesmo.


Texto de Marcílio Godoi retirado da Revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 107, Setembro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

domingo, 22 de setembro de 2024

O uso retórico da definição

 Até explicações aparentemente isentas podem ter finalidade argumentativa


Em Aristóteles, a definição consiste em declarar a essência de alguma coisa (Analíticos posteriores II, 3, 90b, 25-35). Nos Analíticos posteriores, ele assim a conceitua: "uma frase explicativa do que uma coisa é" (II, 10, 93b, 30). Nos Tópicos, ele diz que ela é composta de gênero e diferença (I, 8, 103b, 15).

Isso significa que ela contém o gênero próximo, que é um predicado comum a coisas que diferem em espécie (por exemplo, o predicado "animal" é comum a todas as espécies de animais) e a diferença específica, que é o que distingue uma espécie da outra (por exemplo, "racional" é o que diferencia o homem das demais espécies animais). Assim, a definição de homem é animal racional.

Ao longo da história da filosofia, discutiu-se muito a natureza da definição. Para os propósitos argumentativos, pode-se dizer que ela é uma resposta à indagação "Que é uma coisa?". Portanto, definir é estabelecer uma relação de equivalência que visa a dar sentido a um dado termo.

As definições podem ser intensionais* ou extensionais**.

A primeira estabelece as propriedades caracterizadoras de um objeto: por exemplo, as virtudes cardeais são "as que agrupam todas as demais e constituem os eixos de uma vida virtuosa"; "são as virtudes centrais, fundamentais".

A segunda explicita os elementos que constituem um objeto, isto é, os indivíduos de um dado conjunto: por exemplo, "virtudes cardeais são a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança". Nas definições intencionais, pode-se caracterizar o objeto por propriedades essenciais (pedra é matéria mineral sólida, dura, constituída da natureza das rochas) ou acidentais (pedra é uma matéria mineral pesada).


Elemento e função

A construir uma definição, podem-se levar em conta as características de um elemento (traços qualificacionais) ou sua função (traços funcionais). É possível também, o que ocorre com muita frequência, mesclar os dois modos:

a) água é uma substância líquida formada por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio;

b) água é uma substância que serve para matar a sede;

a) água é uma substância líquida (H2O), inodora, insípida e incolor, que é essencial para manter a vida da maior parte dos organismos vivos e serve de solvente para muitas outras substâncias.

As definições são argumentos quase lógicos fundados no princípio da identidade, porque, ao contrário do que se pensa o senso comum, não há uma maneira unívoca de definir um objeto. Ao contrário, o modo de definir depende das finalidade argumentativas. A definição impõe um determinado sentido, está orientada para convencer o interlocutor que um dado significado é aquele que deve ser levado em conta. Por isso, as definições podem ser conflitantes.

Um conflito definicional é dado pela famosa frase "Não sou x, mas...": por exemplo, "Não sou homofóbico, tenho muitos amigos gays, mas não posso ver dois homens andando de mão dada." Nesse caso, a pessoa que disse a frase usa uma definição bem restrita de homofobia. A resposta poderia ser uma definição mais ampla, mostrando que, de fato, ela é homofóbica. Por outro lado, certas definições ganharam um conteúdo bastante amplo. É o caso da palavra "fascista", que serve como um insulto para tudo o que é, mesmo vagamente de direita.

Na Retórica a Herênio, embora certos usos da definição sejam vistos como um defeito, deixa-se claro seu papel argumentativo:

É ainda um defeito empregar definições falsas ou banais. Falsas, como dizer, por exemplo, que não há injúria sem via de fato ou palavras ultrajantes. Banais, quando se pode aplicá-las tanto a um quanto a outro objeto: por exemplo, 'O delator, para dizer em poucas palavras, merece a morte; com efeito, é um cidadão mau e perigoso'. Essa definição é tanto a do delator quanto a do ladrão, do assassino ou do traidor." (II, XXVI, 41).


Slogans

Observe-se como Camilo Castelo Branco, em Mistério de Lisboa, define conjuntamente a religião e a mulher e como conceitua a inconstância:

"Neste mundo há só dois milagres que podem de um abismo de perdição levantar um homem morto para os sentimentos nobres e insuflar-lhe a vida de um anjo: é a religião e a mulher." (cap. VIII do Livro Terceiro).

"A inconstância é a suprema das enfermidades humanas." (cap. XII do Livro Quarto).

As fórmulas condensadas, como o slogan, notadamente se se apresentam, implícita ou explicitamente, como uma definição, têm um poder argumentativo muito grande:

* "CBN, a rádio que toca notícia."

* "Fazendo o céu o melhor lugar da terra" (Air France).


Verdade Primeira

Bernard Shaw, em O crime do aprisionamento, assim conceitua a escola:

"A escola é uma prisão".

Essa definição, pelo seu poder de condensação e pela sua simplicidade, tem uma força surpreendente, pois ela é aceita como verdade ou é repelida como uma provocação. No entanto, não se fica insensível a ela.

As definições simples são vistas como evidências, como verdades primeiras:

* "A religião é o ópio do povo." (Karl Marx).

* "A propriedade é o roubo." (Proudhon).

No caso dos slogans políticos, sua força deriva da capacidade de incitar à ação:

* "Ein Volk, ien Reich, ein Führer"

(Um povo, um império, um líder) foi um dos mais repetidos slogans nazistas.

* "Soyez réalistes, demandez l'impossible"

(Sejam realistas, exijam o impossível) foi um dos slogans do movimento de maio de 68, baseado na definição "O realismo é a exigência do impossível".

* "Plante que o João garante"

(Slogan para incentivar, no governo João Figueiredo, o aumento do plantio, baseado na definição "João é a garantia da produção")


Texto de José Luiz Fiorin retirado da Revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 108, Outubro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.


* Intencional: relativo a intensão; feito com intensão ou de propósito; que existe apenas na intenção ou em projeto. Em filosofia, a intensão é o significado de um termo ou predicado e o contexto intensional e o que determina a aplicabilidade de um termo ou expressão a uma extensão. Na Linguística Gerativa, a intensão é um conceito ligado à Língua-I, enquanto a extensão está relacionada à Língua-E. A intensão seria uma propriedade mental que distingue a linguagem humana. Na Informática, a lógica intensional tem sido útil em diferentes áreas, principalmente na inteligência artificial e na verificação.

** Extensional: em Filosofia, o conceito do contexto extensional existe em contraposição com o conceito do contexto intensional. No conceito extensional, o adjetivo "extensional" é um termo que se refere à extensão de uma expressão. Em geral,  aplica-se a uma expressão quando se substitui uma expressão por outra. Por  exemplo: na oração Aquela oliveira é uma árvore, o contexto da expressão é: "é uma árvore" e "aquela oliveira" é a extensão. Se substituir "oliveira" por "pessegueiro", o contexto permanece inalterado, uma vez que o valor de verdade está na palavra "árvore". O contexto extensional entre "oliveira" e "pessegueiro" continua o mesmo.

sábado, 21 de setembro de 2024

Se Soubéssemos (38)

 "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem..." - Jesus. (LUCAS, 23:24)


Se o homicida conhecesse, de antemão, o tributo de dor que a vida lhe cobrará, no reajuste do seu destino, preferiria não ter braços para desferir qualquer golpe.

Se o caluniador pudesse eliminar a crosta de sombra que lhe  enlouquece a visão, observando o sofrimento que o espera no acerto de contas com a verdade, paralisaria as cordas vocais ou imobilizaria a pena, a fim de não se confiar à acusação descabida.

Se o desertor do bem conseguisse enxergar as perigosas ciladas com que as trevas lhe furtarão o contentamento de viver, deter-se-ia feliz, sob as algemas santificantes dos mais pesados deveres.

Se o ingrato percebesse o fel de amargura que lhe invadirá, mais tarde, o coração, não perpetraria o delito da indiferença.

Se o egoísta contemplasse a solidão infernal que o aguarda, nunca se apartaria da prática infatigável da fraternidade e da cooperação.

Se o glutão enxergasse os desequilíbrios para os quais encaminha o próprio corpo, apressando a marcha para a morte, renderia culto invariável à frugalidade e à harmonia.

Se soubéssemos quão terrível é o resultado de nosso desrespeito às Leis Divinas, jamais nos afastaríamos do caminho reto.

Perdoa, pois, a quem te fere e calunia...

Em verdade, quantos se rendem às sugestões perturbadoras do mal, não sabem o que fazem.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Baile à fantasia

 A má tradução repetida de algumas palavras pode gerar imprecisão


Num comercial bem-humorado da Hertz, um homem fantasiado pede a um policial que lhe alugue a viatura (como dizem os da polícia) para que ele, civil, vá a um baile à fantasia. Curiosa é a forma como o "elemento" se dirige ao policial. Chama-o de "oficial":

"Oficial, o senhor pode me alugar a sua viatura para ir ao baile?"

A palavra "oficial" dirigida a um policial comum de ronda é resultado das centenas de vezes em que o termo inglês officer (agente da polícia, em inglês, entre outras coisas) foi traduzido como "policial" em jornais, filmes e noticiários brasileiros. Em vez de "policial" ou do popular "seu guarda", eles dizem "oficial". E já se percebe em notícias:

"Quando os oficiais chegaram, os assaltantes já tinham fugido".

Um falso cognato, portanto, dos vários que circulam por aí. Em Português, "oficial" só se aplica a autoridade de grau de comando de nível hierárquico superior a aspirante (no Exército, na Aeronáutica e na polícia Militar) ou de guarda-marinha (na Marinha de Guerra). Fora outras acepções não relacionadas com militares, claro.

Falso cognato é aquele que parece mas não é. (Cognato é palavra que vem da mesma raiz que outra. Ou outras.) É a palavra semelhante a outra, de outra língua, mas com significado diferente. Um já incorporado ao vocabulário brasileiro é "inteligência", no sentido de "coleta de informações", já que intelligence em inglês também significa "informação". Pegou tanto que o bem "inteligenciado" governo brasileiro criou já faz tempo a "Agência Nacional de Inteligência", que nos tempos da ditadura militar tinha o castiço nome de "Agência Nacional de informações". Talvez a única virtude da agência desenvolvida para infernizar adversários. O resultado é que Aurélio e Houaiss já registram em verbetes diferentes "inteligência"(1), a nacional, e o anglicismo "inteligência"(2) com o significado de "serviço de informações". O Aulete Digital ignora o anglicismo.

Há outros casos. Houve tempo em que "suporte" era aquilo suporta ou sustenta algo, como um sólido apoio de prateleiras, além de noções figuradas paralelas. Com a informática, "suporte" ganhou o significado de "material" destinado a receber a informação. Por fim, assumiu o significado anglo-americano de "ajuda" e "assistência técnica". "Vou lhe dar um suporte", pode dizer o rapaz informatizado, com celular grudado na mão, ao sujeito que carrega uma caixa de cervejas para temperar o churrasco.

Tolice investir contra estrangeirismos, como puristas nervosos, porque as línguas se interpenetram e se enriquecem com palavras ou estruturas que suprem umas as deficiências de outras. Difíceis de justificar, no entanto, são anglicismos como "oficial" e "planta", de plant, com o sentido de "fábrica" ou "complexo industrial". "Planta" por "fábrica" parece mostrar o papagaísmo de áreas técnicas, de brasileiros distraídos e obrigados a usar a língua inglesa com frequência, sem ter fixado bem a portuguesa. Uma hipótese, claro. Pode ser pedantismo. O fato é que "planta" fica melhor como denominação genérica de avencas, samambaias e trepadeiras (as vegetais).


Texto de Josué Machado retirado da Revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 109, Novembro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

domingo, 15 de setembro de 2024

Na Obra Regenerativa (37)

 "Irmãos, se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma ofensa, vós, que sois espirituais, orientai-o com espírito de mansidão, velando por vós mesmos para que não sejais igualmente tentados." - Paulo. (GÁLATAS, 6:1.)


Se tentamos orientar o irmão perdido nos cipoais do erro, com aguilhões de cólera, nada mais fazemos que lhe despertar a ira contra nós mesmos.

Se lhe impusermos golpes, revidará com outros tantos.

Se lhe destacamos as falhas, poderá salientar os nossos gestos menos felizes.

Se opinamos para que sofra o mesmo mal com que feriu a outrem, apenas aumentamos a percentagem do mal, em derredor de nós.

Se lhe aplaudimos a conduta errônea, aprovamos o crime.

Se permanecemos indiferentes, sustentamos a perturbação.

Mas se tratarmos o erro do semelhante, como quem cogita de afastar a enfermidade de um amigo doente, estamos, na realidade, concretizando a obra regenerativa.

Nas horas difíceis, em que vemos um companheiro despenhar-se nas sombras interiores, não olvidemos que, para auxiliá-lo, é tão desaconselhável a condenação, quanto o elogio.

Se não é justo atirar petróleo às chamas, com o propósito de apagar a fogueira, ninguém cura chagas com a projeção de perfume.

Sejamos humanos, antes de tudo.

Abeiremo-nos do companheiro infeliz, com os valores da compreensão e da fraternidade.

Ninguém perderá, exercendo o respeito que devemos a todas as criaturas e a todas as coisas.

Situemo-nos na posição do acusado e reflitamos se, nas condições dele, teríamos resistido às sugestões do mal. Relacionemos as nossas vantagens e os prejuízos do próximo, com imparcialidade e boa intenção.

Toda vez que assim procedermos, o quadro se modifica nos mínimos aspectos.

De outro modo será sempre fácil zurzir e condenar, para cairmos, com certeza, nos mesmos delitos, quando formos, por nossa vez, visitados pela tentação.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

O país do provérbio pronto

 Expressões populares brasileiras traduzem bom humor em relação à vida.


A paremiologia é o estudo de parêmias, do grego paromia (parábola, provérbio), uma subdisciplina do grande campo do folclore. Quem se interessa pelo estudo de provérbios tem uma verdadeira seara, pois o assunto é interdisciplinar e envolve as áreas de semiologia, linguística, pragmática e estudos literários e a didática de ensino de idiomas.

Há provérbios de diferentes nacionalidades (francesa, italianos, árabes, indianos, chineses e luso-brasileiros, entre outros), de temas variados, alguns irônicos, outros irreverentes, e ainda outros perspicazes com respeito à nossa vivência cotidiana.

Para Walter Benjamin, o provérbio tem o poder de transformar a experiência vivida das pessoas em sabedoria prática (Walter Benjamin, "On Proverbs." In: Selected Writings, vol 2: 1927-34. Org. Michael W. Jennings et alii Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1999; 582).

Humor

O que caracteriza os provérbios brasileiros é o bom humor em relação à vida:

* Quem tem rabo de palha não senta perto do fogo.

* Bode velho quer capim novo.

* Em tempo de guerra, urubu é frango.

* Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

* Cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça.

* Quem tem pressa come cu.

Todos os provérbios, inclusive os luso-brasileiros, contém ensinamentos preciosos que nem sempre são lembrados pelos usuários num determinado momento:

* Seja dono de sua boca, para não ser escravo de suas palavras.

A relação de bom humor em relação à vida, por parte do brasileiro, ganha relevo ainda maior com as iniciativas de inversão de ditos proverbiais. O saudoso Millôr Fernandes, por exemplo, na informativa e divertida Bíblia do Caos (Porto Alegre: L&PM, 1994: 394) reformula o provérbio tradicional "Deus ajuda a quem cedo madruga" em: "Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga".

Definição

O humorista definia o provérbio nestes termos: "Provérbio é uma frase tão bem feita que acaba se tornando proverbial".

Há especialistas que dizem que os provérbios são frases fixas ou "congeladas", mas os usuários, os verdadeiros donos do idioma, pensam de forma diferente.

O refrão "Gosto não se discute" tem sido alterado pelos falantes do português:

* Gosto não se discute, se lamenta.

* Gosto é igual relógio, uns têm outros não.

José Simão, uma geração de humoristas-jornalistas mais nova que a de Millôr, não perdeu a oportunidade de modificar um conhecido pronome usado no Brasil e em Portugal:

* Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és (Portugal)

* Diz-me com quem andas e te direi quem és (Brasil)

Com a substituição do verbo "demonstrar" e do outro sujeito (em lugar do verbo na 1ª pessoa do singular "dir-te-ei, "te direi", a conhecida repetição do governo), Simão obtém um efeito humorístico:

* Demóste-me com quem andas, e a Polícia Federal te dirá quem és!" (José Simão, "Ueba! Obama é brasileiro!" Folha de São Paulo, 10 de abril de 2012).

Inversão

Simão extrai humor da inversão proverbial que conta com a memória coletiva sobre os provérbios e o conhecimento de eventos da política nacional no calor do momento, como foi o caso do envolvimento ilícito, investigado em 2011 e 2012, entre o então impoluto congressista Demóstenes Torres, da oposição, com o criminoso Carlinhos Cachoeira.

Os provérbios, os "discursos em miniatura", nos apresentam reflexões sobre o comportamento humano e nos fornecem momentos de descontração. São artefatos literários presentes nas obras de autores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Machado de Assis.

São parte integral do cultivo do idioma.


Texto de John Robert Schmitz retirado da Revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 110, Dezembro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

O autor é norte-americano radicado no Brasil. Professor do Departamento de Linguística Aplicada da Unicamp e autor de Dicionário de Epônimos e Topônimos da Língua Portuguesa (Editora Prismas, Curitiba).