sábado, 17 de maio de 2025

Estímulo Fraternal (73)

 "O meu Deus, segundo as suas riquezas, suprirá todas as vossas necessidades em glória, por Cristo Jesus." - Paulo. (FILIPENSES, 4:19)


Não te julgues sozinho na luta purificadora, porque o Senhor suprirá todas as nossas necessidades.

Ergue teus olhos para o Alto e, de quando em quando, contempla a retaguarda.

Se te encontras em posição de servir, ajuda e segue.

Recorda o irmão que se demora sem recursos, no leito da indigência.

Pensa no companheiro que ouve o soluço dos filhinhos, sem possibilidades de enxugar-lhes o pranto.

Detém-te para ver o enfermo que as circunstâncias enxotaram do lar.

Para um momento, endereçando um olhar de simpatia à criancinha sem teto.

Medita na angústia dos desequilibrados mentais, confundidos no eclipse da razão.

Reflete nos aleijados que se algemam na imobilidade dolorosa.

Pensa nos corações maternos, torturados pela escassez de pão e harmonia no santuário doméstico.

Interrompe, de vez em quando, o passo apressado, a fim de auxiliares o cego que tateia nas sombras.

É possível, então, que a tua própria dor desapareça aos teus olhos.

Se tens braços para ajudar e cabeça habilitada a refletir no bem dos semelhantes, és realmente superior a um rei que possuísse um mundo de moedas preciosas, sem coragem de amparar a ninguém.

Quando conseguires superar as tuas aflições para criares a alegria dos outros, a felicidade alheia te buscará, onde estiveres, a fim de improvisar a tua ventura.

Que enfermidade e a tristeza nunca te impeçam a jornada.

É preferível que a morte nos surpreenda em serviço, a esperarmos por ela numa poltrona de luxo.

Acende, meu irmão, nova chama de estímulo, no centro de tua alma, e segue além... Sê o anjo da fraternidade para os que te seguem dominados de aflição, ignorância e padecimento.

Quando plantares a alegria de viver nos corações que te cercam, em breve as flores e os frutos de tua sementeira te enriquecerão o caminho.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Rio Condutor de Oferendas

Às divindades dos rios, dos lagos e das fontes foram destinadas as primeiras oblações diretas, jogadas na água, moedas, miniaturas que são possíveis ex-votos, armas, utensílios domésticos, paradas nos depósitos pré-históricos. Ainda é comum na Europa e na América Latina sacudir a moeda no rio, diante de uma capela que se ergue na margem ou suposta igreja existente no fundo das águas. Tradicional é o presente de Iemanjá - flores, perfumes, tecidos finos, joias baratas, animais vivos, cartas rogatórias -, posto ao lume da água e que submerge. No culto ao Bom Jesus da Lapa, Bahia, o rio São Francisco encarrega-se de conduzir a satisfação das promessas e encalhá-las nas ribas do penhasco onde está a imagem dominadora de toda a região. Em cabaças decoradas e típicas, contendo velas, fitas, cabelos, dinheiro, cartas, as promessas são confiadas ao rio, que as conduz lentamente, até Pirapora, seja qual for a distância e a topografia desconcertante de curvas, enseadas e barrancos. M. Cavalcanti Proença informa: "Também os caboclos que não podem ir até Bom Jesus da Lapa colocam as suas oferendas em cabaças que largam de rio abaixo e estas vão ter ao seu destino, tendo ficado célebre uma enviada por um italiano com uma carta e sete mil e seiscentos em dinheiro e que, numa violação geográfica, foi posta no rio Sapucaí, da bacia do Paraná. Pois andou de mão em mão até ser lançada no São Francisco e foi descendo, descendo, quando, ao passar em frente ao templo, derivou pelo braço que vai ao pé do santuário, sendo apanhada".  O mesmo diz Wilson Lins: "... os beiradeiros do Alto São Francisco, quando não podem, por qualquer motivo, fazer romaria, botam os seus presentes no rio e a correnteza leva diretamente para os pés do morro-santuário. Encostado ao morro passa um braço do rio e é por ele que os presentes vindos de longe vão ter ao Bom Jesus. De mais longe que venha um presente, ninguém ousa desviá-lo do seu roteiro. Esses presentes geralmente viajam dentro de cabaças enfeitadas, e são, em sua maioria, velas, tostões e cachos de cabelos". (O Médio São Francisco, Bahia, 1952.) Noraldino Lima escrevera no mesmo sentido: "Os fazendeiros urucuianos e outros, não podendo cumprir pessoalmente as promessas, fazem-no por intermédio dos afluentes do São Francisco. Para isso preparam uma caixinha, dentro da qual depositam o dinheiro prometido e uma vela. O rio leva a mensagem da fé, água abaixo, léguas e léguas, até o porto da Lapa, onde qualquer pescador, qualquer lapense, colhe a caixa e o conteúdo, levando este à gruta do Bom Jesus. Se no sertão ninguém rouba ao homem, quanto mais ao santo. A caixinha do sertanejo desce tranquilamente o rio: é vista por centenas de olhos; todos que conhecem o São Francisco e seus costumes sabem que ali vai dinheiro, e às vezes, dinheiro grosso; entretanto, ninguém toma essa caixinha senão para desembaraçá-la de algum ramo, que porventura esteja estorvando-a no seu destino, rumo da Lapa, onde há um santo que protege o sertão".


Retirado do livro Dicionário do Folclore Brasileiro (revisto, atualizado e ilustrado), de Luís da Câmara Cascudo, Global Editora, 10ª Edição, São Paulo, 2001.

sábado, 10 de maio de 2025

Incompreensão (72)

 "Fiz-me fraco para os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos pra, por todos os meios, chegar a salvar alguns." - Paulo. (I CORÍNTIOS, 9:22.)


A incompreensão, indiscutivelmente, é assim como a treva perante a luz, entretanto, se a vocação da claridade te assinala o íntimo, prossegue combatendo as sombras, nos menores recantos de teu caminho.

Não te esqueças, porém, da lei do auxílio e observa-lhe os princípios, antes da ação.

Descer para ajudar é a arte divina de quantos alcançaram conscienciosamente a vida mais alta

A luz ofuscante produz a cegueira.

Se as estrelas da sabedoria e do amor te povoam o coração, não humilhes quem passa sob o nevoeiro da ignorância e da maldade.

Gradua as manifestações de ti mesmo para que o teu socorro não te faça destrutivo.

Se a chuva alagasse indefinidamente o deserto, a pretexto de saciar-lhe a sede, e se o Sol queimasse o lago, sem medida, com a desculpa de subtrair-lhe o barro úmido, nunca teríamos clima adequado à produção de utilidades para a vida.

Não te faças demasiado superior diante dos inferiores ou excessivamente forte perante os fracos.

Das escolas não se ausentam todos os aprendizes, habilitados em massa, e sim alguns poucos cada ano.

Toda mordomia reclama noção de responsabilidade, mas exige também o senso das proporções.

Conserva a energia construtiva do exemplo respeitável, mas não olvides que a ciência de ensinar só triunfa integralmente no orientador que sabe amparar, esperar e repetir.

Não clames, pois, contra a incompreensão, usando inquietude e desencanto, vinagre e fel.

Há méritos celestiais naquele que desce ao pântano sem contaminar-se, na tarefa de salvação e reajustamento.

O bolo de matéria densa reveste-se de lodo, quando arremessado ao poço lamacento, todavia, o raio de luz visita as entranhas do abismo e dele se retira sem alterar-se.

Que seria de nós se Jesus não houvesse apagado a própria claridade, fazendo-se à semelhança de nossa fraqueza, para que lhe testemunhássemos a missão redentora? Aprendamos com ele a descer, auxiliando sem prejuízo de nós mesmos.

E, nesse sentido, não podemos esquecer a expressiva declaração de Paulo de Tarso quando afirma que, para a vitória do bem, se fez fraco para os fracos, fazendo-se tudo para todos, a fim de, por todos os meios, chegar a erguer alguns.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 3 de maio de 2025

Bom Jesus da Lapa

É a mais tradicional devoção popular do rio São Francisco. Do lado da Bahia, em Pirapora, ergue-se um maciço calcário, de 90 metros, recortado em galerias, grutas e corredores pela erosão. Em 1691, Francisco Mendonça Mar, pintor português, deixando a cidade de Salvador, atingiu a chamada Lapa, aí se instalando e fazendo vida solitária. Trazia um crucifixo que se tornou centro das orações. O ermitão da Lapa abrigava peregrinos e doentes, e a Lapa transformou-se em lugar de milagres, atraindo a visita de centenas de fiéis. O ermitão ordenou-se sacerdote em 1706, tomando o nome de Francisco da Soledade. A povoação nascida ao redor da Lapa passou a ser Vila do Bom Jesus da Lapa em 1890 e cidade em 1923. A gruta guarda o túmulo do fundador, o crucifixo (o segundo, porque o primeiro desapareceu num incêndio) e é uma verdadeira igreja natural, com púlpitos, naves e arcadas. Numerosos ex-votos enfeitam as paredes, e uma multidão procura o Bom Jesus da Lapa, suplicando milagres. É o protetor das populações do rio e seu prestígio alcança o interior do Brasil, de norte a sul. O Bom Jesus da Lapa mobiliza as devoções de todas as regiões do rio São Francisco.


Retirado do livro Dicionário do Folclore Brasileiro (revisto, atualizado e ilustrado), de Luís da Câmara Cascudo, Global Editora, 10ª Edição, São Paulo, 2001.

Solidão (70)

 "O presidente, porém, disse: - mas, que mal fez ele? E eles mais clamavam, dizendo: - seja crucificado." - (MATEUS, 27: 23)


À medida que te elevas, monte acima, no desempenho do próprio dever, experimentas a solidão dos cimos e incomensurável tristeza te constringe a alma sensível.

Onde se encontram os que sorriram contigo no parque primaveril da primeira mocidade? Onde pousam os corações que te buscavam o aconchego nas horas de fantasia? Onde se acolhem quantos te partilhavam o pão e o sonho, nas aventuras ridentes do início?

Certo, ficaram...

Ficaram no vale, voejando em círculo estreito, à maneira das borboletas douradas, que se esfacelam ao primeiro contacto da menor chama de luz que se lhes descortine à frente.

Em torno de ti, a claridade, mas também o silêncio...

Dentro de ti, a felicidade de saber, mas igualmente a dor de não seres compreendido...

Tua voz grita sem eco e o teu anseio se alonga em vão.

Entretanto, se realmente sobres, que ouvidos te poderiam escutar a grande distância e que coração faminto de calor do vale se abalançaria a entender, de pronto, os teus ideais de altura?

Choras, indagas e sofres...

Contudo, que espécie de renascimento não será doloroso?

A ave, para libertar-se, destrói o berço da casca em que  se formou, e a semente, para produzir, sofre a dilaceração na cova desconhecida.

A solidão com o serviço aos semelhantes gera a grandeza.

A rocha que sustenta a planície costuma viver isolada e o Sol que alimenta o mundo inteiro brilha sozinho.

Não te canses de aprender a ciência da elevação.

Lembra-te do Senhor, que escalou o Calvário, de cruz aos ombros feridos.. Ninguém o seguiu na morte afrontosa, à exceção de dois malfeitores, constrangidos à punição, em obediência à justiça.

Recorda-te dele e segue...

Não relaciones os bens que já espalhaste.

Confia no infinito Bem que te aguarda.

Não esperes pelos outros, na marcha de sacrifício e engrandecimento. E não olvides que, pelo ministério da redenção que exerceu para todas as criaturas, O Divino Amigo dos Homens não somente viveu, lutou e sofreu sozinho, mas também foi perseguido e crucificado.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 26 de abril de 2025

Cena de Fellini ao cair da tarde

Lenta e prazerosamente, adormece na banheira. Mas na transparência tão igual, que não trai nenhum movimento, a torneira continua aberta. E a água sobe silenciosa, até alcançar a beira de porcelana, inchar-se num instante de hesitação, para logo deslizar redonda ao longo dos azulejos, alcançar o chão, fazer seu caminho em direção aos tacos da sala.

Sem borbulhas, sem pressa, corre a água pelo apartamento. Nunca porém ultrapassando aquela mesma altura no peito do homem que, sentindo-se acariciado, mais sereno dorme.

O dia está quase acabando quando ele acorda, num sobressalto, trespassado por um grito marítimo de sirene. Através da porta aberta, além do corredor, vê a silhueta gigantesca recortando-se contra a parede rosa da sala. E chega-lhe tênue o som de um fox-trot que a banda de bordo executa, enquanto o transatlântico, luzes acesas no crepúsculo, desliza sobre a água escura.


Texto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

Firmeza e Constância (69)

 "Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão." - Paulo. (I CORÍNTIOS, 15:58.)


Muita gente acredita que abraçar a fé será confiar-se ao êxtase improdutivo. A pretexto de garantir a iluminação da alma, muitos corações fogem à luta, trancando-se entre as quatro paredes do santuário doméstico, entre vigílias de adoração e pensamentos profundos acerca dos mistérios divinos, esquecendo-se de que todo o conjunto da vida é Criação Universal de Deus.

Fé representa visão.

Visão é conhecimento e capacidade de auxiliar.

Quem penetrou a "terra espiritual da verdade", encontrou o trabalho por graça maior.

O Senhor e os discípulos não viveram apenas na contemplação.

Oravam, sim, porque ninguém pode sustentar-se sem o banho interior de silêncio, restaurado de energia sublime que fluem dos Mananciais Celestes.

A prece e a reflexão constituem o lubrificante sutil em nossa máquina de experiências cotidianas.

Importa reconhecer, porém, que o Mestre e os aprendizes lutaram, serviram e sofreram na lavoura ativa do bem e que o Evangelho estabelece incessante trabalho para quantos lhe esposam os princípios salvadores.

Aceitar o Cristianismo é renovar-se para as Alturas e só o clima do serviço consegue reestruturar o espírito e santificar-lhe o destino.

Paulo de Tarso, invariavelmente peremptório nas advertências e avisos, escrevendo aos coríntios, encareceu a necessidade de nossa firmeza e constância nas tarefas de elevação, para que sejamos abundantes em ações nobres com o Senhor.

Agir ajudando, criar alegria, concórdia e esperanças, abrir novos horizontes ao conhecimento superior e melhorar a vida, onde estivermos, é o apostolado de quantos se devotaram à Boa Nova.

Procuremos as águas vivas da prece para lenir o coração, mas não nos esqueçamos de acionar os nossos sentimentos, raciocínios e braços, no progresso e aperfeiçoamento de nós mesmos, de todos e de tudo, compreendendo que Jesus reclama obreiros diligentes para a edificação de seu Reino em toda a Terra.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 19 de abril de 2025

Sementeira e Construção (68)

 "Porque nós somos cooperadores de Deus; vós sois lavoura de Deus e edifício de Deus." - Paulo. (I CORÍNTIOS, 3:9.)


Asseverando Paulo a sua condição de cooperador de Deus e designando a lavoura e o edifício do Senhor nos seguidores e beneficiários do Evangelho que o cercavam, traçou o quadro espiritual que sempre existirá na Terra em aperfeiçoamento, entre os que conhecem e os que ignoram a verdade divina.

Se já recebemos da Boa Nova a lâmpada acesa para a nossa jornada, somos compulsoriamente considerados colaboradores do ministério de Jesus, competindo-nos a sementeira e a construção dele em todas as criaturas que nos partilham a estrada.

Conhecemos, pois, na essência, qual o serviço que a Revelação nos indica, logo nos aproximemos da luz cristã.

Se já guardamos a bênção do Mestre, cabe-nos restaurar o equilíbrio da vida, onde permanecemos, ajudando aos que se desajudam, enxergando algo para os que jazem cegos e ouvindo alguma coisa em proveito dos que permanecem surdos, a fim de que a obra do Reino Divino cresça, progrida e santifique toda a Terra.

O serviço é de plantação e edificação, reclamando esforço pessoal e boa-vontade para com todos, porquanto, de conformidade com a própria simbologia do apóstolo, o vegetal pede tempo e carinho para desenvolver-se e a casa sólida não se ergue num dia.

Em toda parte, porém, vemos pedreiros que clamam contra o peso do tijolo e da areia e cultivadores que detestam as exigências de adubo e proteção à planta frágil.

O ensinamento do Evangelho, contudo, não deixa margem a qualquer dúvida.

Se já conheces os benefícios de Jesus, és colaborador dele, na vinha do mundo e na edificação do espírito humano para a Eternidade.

Avança na tarefa que te foi confiada e não temas. Se a fé representa a nossa coroa de luz, o trabalho em favor de todos é a nossa bênção de cada dia.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Sobre "eis que"

As acepções sobre o uso coreto da expressão "eis que" derivam da análise sobre a sua classificação


O jornal A Gazeta (ES) do dia 15.11.08 estampa, na página 22, uma frase dita por um advogado: "... o acusado afirma que somente viaja de carro, eis que tem fobia de avião." Domingos Paschoal Cegalla, no seu Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, alerta para o uso indevido de "eis que" com o sentido de "porque", erro frequente na linguagem jurídica. Normatividade à parte, parece que, se "eis que" é um verbete daquele dicionário, há de ser entendido, certamente, como uma locução. Nesse caso, seria uma locução adverbial temporal sui generis (com o sentido de "de surpresa", "repentinamente") e não uma locução conjuntiva, já que é possível analisar como período simples, oração absoluta, uma frase  com "Eis que o anjo do Senhor anunciou à Maria". Vittorio Bergo, no seu dicionário Erros e Dúvidas de Linguagem (6. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro; Francisco Alves, 1986), chama "eis que" de "expressão designativa".


CLASSIFICAÇÕES

Normalmente, as locuções conjuntivas terminam com "que" (à proporção que, à medida que, por que, a fim de que etc.). No entanto, não deve causar estranheza o fato de "eis que" ser considerado locução adverbial e não locução conjuntiva, apesar desse "que". As locuções prepositivas terminam por preposição (apesar de, a respeito de, com relação a), mas, ainda assim, "não obstante" é uma locução prepositiva e não termina por preposição. Os dicionários de Língua registram "eis" como advérbio, o que é parcialmente adequado.

Pode ser, no entanto, que não se trate de uma locução adverbial. As gramáticas, à unanimidade, incluem "eis" como uma palavra pertencente ao grupo das "partículas denotativas". Partícula denotativa é o nome que classifica uma palavra "sem classificação", isto é, uma palavra que não pertence a nenhuma das dez classes (substantivo, adjetivo, pronome, verbo, advérbio, preposição, conjunção, interjeição, artigo, numeral). Ora, "eis" é um dêitico que poderia ser incluído não entre partículas denotativas (no caso, partícula de designação), mas entre os chamados verboides. Dêitico é o nome que se dá a um termo que se refere ao contexto situacional, isto é, um termo de significação ocasional, como, por exemplo, hoje, assim, este, eu... O termo "verboide", criado por Rudolph Lens, designa não apenas as formas nominais de verbo, que são efetivamente verbos, embora atemporais, mas também expressões que não são verbos, mas que se comportam sintaticamente como tais.

Reitere-se aqui o fato de que uma oração é dita principal não por conter a ideia principal, mas por ter um de seus termos transformado em outra oração. Assim, um período composto como "As coisas que ele quer são as coisas que eu quero" tem por oração principal uma aparente tautologia: "as coisas são as coisas". O determinante de "coisas", nas duas ocorrências, foi transformado em oração subordinada adjetiva. Em "Eis que o anjo do Senhor anunciou à Maria", é possível analisarmos "eis" como oração principal e "que o anjo do Senhor  anunciou à Maria" como oração subordinada substantiva objetiva direta.


ANÁLISE

Apesar de seguir esse raciocínio, essa análise poderia apresentar um problema. As gramáticas e dicionários especializados definem frase como um enunciado dotado de sentido completo, e oração como uma frase ou parte de uma frase com estruturação  sintática (isto é, com sujeito e verbo, explícito, como na maioria das orações, ou subentendido, como nas orações comparativas e conformativas, por exemplo). Assim, em "O homem saiu" temos uma frase e uma oração; em "Ele disse que viria", temos uma frase e duas orações. Numa oração dita sem sujeito, entende-se que se trata de um sujeito zero: "São duas hora" o termo "duas horas" é predicativo de um sujeito zero. Mas em "Ei-lo que chega", se "ei-lo" é uma oração (oração principal), a definição tradicional de oração talvez não seja adequada, pois em "ei-lo" não há uma estrutura sintática. Numa frase como "Eis que chega o homem" ou "Eis que o homem chega", é possível pensar numa paráfrase desta outra: "Eis o home que chega". Mas seria impossível parafrasear dessa forma uma frase como "Ei-lo que chega", já que seria agramatical a construção "eis que o chega", uma vez que "o" não é pronome sujeito.

O ideal, portanto, é analisar efetivamente "eis" não como partícula denotativa de designação, mas como verboide, seguido de um objeto direto, oracional ou não (Eis que o Anjo anunciou à Maria.). A mesma análise caberia em construções como "oxalá" e "tomara". As orações com verboides seriam consideradas orações com sujeito zero, isto é, orações sem sujeito, o que permitiria manter o conceito de oração como um enunciado ou parte de um enunciado dotado de estruturação sintática.


Os tais verboides

Seguindo a definição de Rudolph Lenz, em Português, seriam considerados verboides não apenas o Infinitivo, o Gerúndio e o Particípio, que se comportam como verbos, embora não conjugáveis (à exceção do infinitivo pessoal que é conjugável, embora permaneça atemporal, mas também expressões inadequadamente consideradas interjeições pelos dicionários de Língua, como oxalá, tomara, que não são verbos, mas têm objeto direto. Nesse caso, numa frase como "Ei-lo que chega", a oração "que chega" é uma subordinada adjetiva e, obviamente, "ei-lo" terá de ser classificado como oração principal, pois não existe oração subordinada sem uma principal. Afinal, uma oração subordinada é um termo de uma oração dita principal, transformado em outra oração, isto é, uma oração subordinada é sempre um termo oracional desenvolvido. Assim, em "Ele saiu, mas disse que voltaria", a oração "que voltaria" é um objeto direto da oração anterior, "mas disse", que é a oração principal do período, coordenada à primeira oração. Dessa forma, em "Tomara que tenhamos paz", "Oxalá tenhamos paz", a oração com verbo no subjuntivo (modo típico da subordinação) seria objeto direto de "tomara" ou de "oxalá". O conceito de verboide de Lenz pode ser considerado uma espécie de desdobramento de considerações sobre a morfologia do infinitivo, como a de Henrique da Rocha Lima em sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa (1972), que afirma que "o infinitivo é antes um substantivo" para justificar seu funcionamento sintético.


Texto de José Augusto Carvalho retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 21, Escala Educacional, São Paulo.

A crase não é um bicho-de-sete-cabeças

 O Gramático Celso Pedro Luft dizia que, se os alunos erravam a crase além do razoável, era porque andavam lhes ensinando demais o assunto. É exatamente o que a experiência mostra: entra ano, sai ano, e a impressão é que se sabe cada vez menos sobre crase. E, apesar de fazer parte dos conteúdos programáticos desde as séries iniciais até a universidade, parece que a crase não tem sido devidamente compreendida por milhões de pessoas.


ENSINO DE MAIS, APRENDIZAGEM DE MENOS?

Arremesse um livro de gramática quem nunca, diante de um inofensivo a, numa redação escolar, num artigo para jornal ou mesmo num trabalho acadêmico, ficou suando para saber se aquele bendito recebia ou não acento. O desconhecimento é tão enorme que inunda o nosso cotidiano. Quem por acaso nunca leu num panfleto de pizzaria expressões como "forno à lenha", "entrega à domicílio" ou "de segunda à domingo"?

A situação fica pior quando os erros aparecem em material escrito proveniente de segmentos que deveriam, em tese, zelar pelo bom uso do idioma, como as instituições de ensino (para ficarmos somente aí):

* Viagem à New York (órgão informativo de um centro universitário);

* de 18 à 22 de junho (cartaz de congresso):

* 22 à 24 de maio (cartaz de congresso de fisioterapia).


QUESTÃO MORFOSSINTÁTICA

Em vez de "casos" em que não se usa o acento indicativo da crase, o assunto poderia ser reduzido a uma questão morfossintática apenas. Assim, na sequência "Vou à padaria", há crase porque houve a contração de dois "a", pois o primeiro a se refere ao verbo vou (pois quem vai, vai a algum lugar). Trata-se de uma questão de regência verbal, porque o verbo vou precisa ser completado pela preposição a; aliás, o verbo vou exige a presença da preposição a.

O segundo a se refere à palavras feminina padaria, que a acompanha, pois ela admite o artigo feminino a. Trata-se de uma questão de morfologia, porque a palavra feminina admite o artigo feminino a. A fusão do a do verbo ir + o a da palavra feminina padaria resulta no à.

Se o exemplo proposto não se encaixar no que acima foi apresentado, ficará claro que uma das situações para o uso do acento não foi observado. Daí resulta no que chamamos de "o segredo da crase".


O SEGREDO DA CRASE

Como sabemos, a crase é a contração da preposição "a" com o artigo feminino "a", por isso é condição essencial que ela ocorra com palavra feminina. É necessário também que a palavra dependa de outra que exija a preposição "a". E por último: é imprescindível que a palavra admita o artigo feminino "a" (eis o segredo).

Por exemplo, na frase "Eu fui a Mauá", não podemos acentuar o "a" que antecede "Mauá", porque a palavra não admite antes de si o artigo feminino "a". Dizemos: "Mauá é cidade linda", e não "A Mauá..." Isso prova que o "a" da frase "Eu fui a Mauá" é simples preposição, que faz parte do verbo "ir", pois o verbo exige a preposição "a" (quem vai, vai a algum lugar).


Texto de Sérgio Simka retirado do revista  Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 15, Escala Educacional, São Paulo. (É um trecho do seu livro Crase não é um bicho-de-sete-cabeças, Editora Ciência Moderna, 2009).