quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A Casa da Flor

    No ano de 1888 acabou a escravidão no Brasil. Muita gente que era escrava na cidade foi embora pra roça. E muita gente que era escrava na roça foi embora pra cidade.

    Era ótimo viver livre.

    Seu Benevenuto, por exemplo, foi para São Pedro D'Aldeia, no Estado do Rio de Janeiro, perto da formosa Cabo Frio. Tinha economizado um dinheirinho e comprou uma terrinha. Os filhos dele, que andavam espalhados, também foram para lá. Eram sete. Como depois ele teve mais cinco, ficaram doze.

    Trabalhavam em quê? Os filhos homens, na roça: milho, café, abóbora, batata... As mulheres, mais a mãe, fazendo panelas e potes de barro para vender. Antes do sol nascer você já as via queimando os objetos numa coivara de lenha.

    Um dos filhos se chamava Gabriel. Parecia com os irmãos em várias coisas. Tinha, como os outros, os olhos bem redondos, os beiços cheios, a testa alta. Era diferente, porém, numa coisa. Em quê? Com 4 anos de idade, Gabriel não falava.

    - É mudo - dizia seu Benevenuto.

    - Coitado do meu filho - suspirava a mãe. - Sem poder se explicar, vai sofrer muito.

    Aos 5 anos, quando ninguém mais esperava, Gabriel falou. Mas pouco, como se as palavras fossem de ouro. Só a madrinha compreendia:

    - Deixa estar. Gabriel não fala pra economizar a inteligência. Quer dizer: ele fala pra dentro.

    Quando fez 20 anos, Gabriel teve um sonho. Uma voz lhe dizia: "Gabriel, anda construir uma casa só pra você".

    Sem pressa, começou a juntar dinheiro pro cimento, a pedra e a areia lavada. Fez os alicerces, subiu as paredes, dispôs o telhado. Inventou uma maneira de recolher água da chuva, uma espécie de funil de telhas. Não era marceneiro, mas fabricou sozinho os móveis. Uma cama, uma mesa e um "altar de livros". Era assim que ele chamava a estante.

    Gabriel era agora trabalhador de salina, fábrica de sal, junto ao mar, onde a água cercada fica presa para evaporar. O que sobra é o sal. Trabalho duro. Curte a pele. Quebra a pele dos pés e das mãos. Cega.

    Mesmo cansado, Gabriel acendia um lampião para trabalhar à noite na construção da sua casa. Não tinha sábado nem domingo.

    A casa ficou pronta. Tanto esforço e era uma casinha de nada. Quem passava cá embaixo na estrada dizia: "É de boneca".

    Foi quando ele teve um novo sonho.

    Sonhou que dormia. Batiam à porta. Foi atender e não viu ninguém. Tornou a se deitar. Com pouco, novas batidas. Gabriel veio abrir e de novo não havia ninguém. Quando retornou à cama, lá estava uma mulher sentada. Vestia um vestido amarelo, vaporoso. Tinha um exagero de brincos e colares, mas um jeito suave. Se abanava com um leque cujo perfume tomava conta do quarto.

    - Quem é você? - ele quis saber.

    - Acho que você me conhece - ela respondeu. - Vim pra lhe dar uma ordem, Gabriel. Enfeite essa casa. Ela é só sua, mas não é bonita. Dia seguinte era feriado. Mal tomou café, Gabriel saiu atrás de enfeites. Só achou cacos. Naquele tempo, pobres não tinham nada inteiro. Quando os ricos deixavam quebrar alguma coisa, ou se cansando dela, jogavam no lixo, os pobres, que eram livres há pouco tempo, pegavam.

    Pois Gabriel enfeitou sua casa com cacos. Cacos de telhas, de ladrilhos de azulejos... Faróis de automóveis, lâmpadas queimadas, bibelôs mutilados... Seixos da beira do rio... Pedaços de espelhos, correntes partidas, ralos de chão, mariscos, tampinhas de lata, garrafas... Andando na praia, achou um osso estranho. Pegou.

    - É de baleia - garantiam os vizinhos.

    - É de dragão - afirmava ele.

    - Dragões só existem na imaginação - insistiam.

    - E então? Não é existir? - seu Gabriel encerrou a conversa.

    A casa de Gabriel começou a ser chamada "Casa da Flor". As paredes eram cobertas de flores. Flores de pedra, de cacos. Vinha gente de longe espiar. Se admiravam que um operário de salina, filho de seu Benevenuto, que foi escravo, fizesse coisa tão bela. Ele olhava as pessoas com mansidão. Não se incomoda de explicar:

    - Eu faço isso por pensamento e sonho.

    Vai que um dia apareceu por lá uma professora da cidade. Uma especialista em arte popular. Olhou, olhou... Puxou conversa com seu Gabriel:

    - Seu Gabriel, isso não tem igual no Brasil. Pode ter na Europa, nos Estados Unidos. Por que uma casa de cacos transformados em flor? Que ideia foi essa?

    Gabriel estava cego. O trabalho nas salinas criara nos seus olhos uma cortina que impedia a passagem da luz.

    - Olha, dona Amélia. Eu fico muito satisfeito trabalhando com os cacos porque as coisas modernas, coisas novas, ninguém vai ver. A gente entra nas cidades grandes, aquilo lá está tudo moderno, tudo bem organizado, tudo custa dinheiro. As pessoas veem a força da riqueza... Mas aqui elas gostam de ver porque é a força da pobreza.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Outubro de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


A história de Gabriel Joaquim dos Santos é uma alegoria à própria história do negro brasileiro, que após a abolição teve que colar os pedaços de sua cultura (das suas crenças, da sua personalidade) e construir algo novo, com o que sobrara dos 500 anos de senzalas. Gabriel nasceu em 1892 e morreu 92 anos depois. Aos 85 anos teve seu trabalho descoberto. Criou-se também uma Sociedade de Amigos da Casa da Flor, que tenta preservar a obra de Gabriel.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Projetos Iluminativos

    As sombras densas, que parecem teimar, em predomínio na consciência cultural da Terra, lentamente cedem lugar às claridades novas, que ensejam a compreensão profunda do homem na sua realidade intrínseca e gloriosa, a um passo da sua destinação triunfal.

    As estrelas luminíferas do saber ampliam-lhe os horizontes da existência, propiciando-lhe o encontro da sua identidade em perfeita consonância com a finalidade transcendente da sua experiência corporal.

    Espírito eterno, o homem se encontra, na atualidade, diante do grande e definitivo desafio existencial.

    Equipado pelo conhecimento, dispõe dos recursos adequados para solucionar os aparentes e antes perturbadores enigmas, que se lhe apresentavam em complexas expressões destruidoras.

    Com a contribuição valiosa do Espiritismo, ele descerra o véu da ignorância e compreende os objetivos da vida, estabelecendo programas que não se encerram no túmulo, por saber que o corpo é um instrumento transitório para alcançar a meta feliz a que está destinado.

    Antes, discordando da fé religiosa, diante das conquistas da inteligência e da razão, logra, na atualidade, colocar em perfeito equilíbrio estes valores, a serviço de uma fé que pode ser demonstrada no laboratório das experiências paranormais.

    Para este logro, Allan Kardec realizou a saga monumental de colocar a inteligência e os recursos da Ciência do seu tempo a serviço da investigação da sobrevivência, do interrelacionamento entre os Espíritos e os homens, da reencarnação e da Justiça Divina, em palavras últimas, da existência do Mundo Espiritual.

    Seu trabalho ímpar abriu espaço para novas investigações na área paranormal, que vieram apenas confirmar as suas excelentes conclusões.

    Lentamente, à medida que se aperfeiçoaram os métodos de investigações, foram criadas ciências com objetivos de aprofundar a sonda da pesquisa no organismo do ser, constatando que o homem não é somente a constituição celular, mas um complexo no qual o ser real é preexistente ao berço e sobrevivente à tumba.

    Ciência experimental, por sua vez, o Espiritismo faculta a contribuição das diversas ciências que se associam para a grande realização do ser imortal.

    A fim de dar prosseguimento ao elevado mister de libertar o homem das suas paixões primitivas, fazem-se necessários projetos iluminativos que atualizem os conceitos imortalistas, em face da extraordinária contribuição das doutrinas científicas contemporâneas.

    Penetrar o bisturi da investigação honesta no campo das revelações espíritas é o compromisso que assumiram os novos obreiros do Senhor, que reencarnaram com o objetivo de dar prosseguimento aos trabalhos que, momentaneamente, ficaram interrompidos com a sua desencarnação, relativamente em tempos próximos passados...

    Os anteriores investigadores psíquicos dos fenômenos paranormais, em variadas áreas, abriram portas, antes, para a comprovação do ser integral - Espírito, perispírito e corpo - agora se encontrando, de retorno, com os instrumentos da informação e da fé espírita, para enfrentar com segurança o cepticismo, a crueldade, a indiferença, a desonestidade e os seus fâmulos, que corrompem o indivíduo e perturbam a marcha do progresso da Humanidade.

    Apesar de adestrados para as tarefas do momento, surgem-lhes graves dificuldades que devem ser superadas, constituindo desafios-problemas. O amor ao ideal e a abnegação, que eliminam a presunção e o despotismo, dar-lhes-ão forças e valor moral para os enfrentamentos externos e a autos-superação da inferioridade e dos atavismos negativos.

    Serão caracterizados pelo espírito de serviço, pelo interesse sadio dos resultados dos trabalhos, colocados no campo de batalha por escolha pessoal, guardando a certeza do triunfo que lhes chegará.

    Não se farão discutidores ferrenhos e insensatos, porquanto o seu é o tempo para o estudo dos dados e das investigações.

    Não se imporão, porque reconhecem que o labor exige discernimento, maturidade psicológica e elevação de propósitos.

    Não se agastarão com os acusadores, nem desanimarão com os aparentes insucessos, que se lhes constituirão estímulo para o prosseguimento dos tentames.

    Abertos ao amor, planejam um mundo melhor para eles mesmos e para a sociedade em geral, porque reconhecem que estes são dias de transição, e a seleção dos Espíritos se faz natural, preparando o Mundo de Regeneração.

    Em vez de um cataclismo que ceife as vidas e aniquila a sociedade e a Terra, dá-se, neste momento, a renovação do planeta, graças à qualidade dos Espíritos que começam a habitá-lo, enriquecidos de títulos de enobrecimento e de interesse fraternal.

    Os campeões da maldade, os mercenários a serviço do crime, os fomentadores da guerra e da hediondez, os traficantes de vidas e de drogas alucinantes cederão espaço no orbe para os construtores do Bem e da Verdade em nome do Amor.

    Até esse momento, cabe, aos verdadeiros obreiros do Senhor, a tarefa de autoiluminação e constante investigação, que demonstre e confirme a excelência da vida, num comportamento ético pela verdade, que favorece com estímulos superiores a eclosão e a vigência do amor nos corações.

    Lutas e sofrimentos surgirão, não poucas vezes, não somente no campo externo de atividades; mas, e, sobretudo, na vida íntima, onde se hominizam os grandes inimigos da evolução espiritual.

    Reconfirmando a imortalidade e as suas várias expressões, na comunicação dos Espíritos e na reencarnação, estes valores impregnarão a criatura senciente, que alterará o seu comportamento, abraçando os postulados apresentados e vividos por Jesus, instalando-se na Terra o Reino de Deus pelo qual todos anelamos

    Investiguemos, estudemos, discutamos, de mente aberta à verdade, sempre dispostos a abraçar as conquistas da Ciência, realizando a sua aliança com a Religião, e, tornando o Espiritismo a verdadeira ponte entre as duas, divulguemo-lo com ardor, vivendo-o no dia a dia da existência como cristãos legítimos que pretendemos ser.


Texto retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014, 3ª Edição.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

O Presente de Ossanha

    Essa história se passou há mais de cem anos, num tempo em que tudo era possível. Ninguém se espantava com nada

    Num engenho de açúcar viviam dois meninos. Um era filho do dono e se chamava Ricardo. O outro era escravo e tinham esquecido o seu nome. Só o chamavam de moleque. Moleque pra cá pra lá.

    O moleque fora comprado no mercado bem novinho. Seu trabalho ia ser brincar com o filho do dono. Brincar de todo jeito: jogar dama, soltar pipa, rodar arco, que era uma brincadeira muito apreciada naquele tempo... E de cavalinho. Ricardo montava e o moleque era montado. Saíam os dois pelo terreiro:

    - Upa, upa, cavalinho! - gritava Ricardo.

    O dono do engenho olhava aquilo e esfregava as mãos.

    - Esse moleque foi a melhor compra que eu já fiz! Olha o nosso filho, como está feliz!

    Vai que num domingo de manhã, estando de folga, o moleque entrou no mato para pegar passarinho. Ele pegava um pedaço de pau e passava visgo, para o coitado pousar e ficar preso.

    Naquele domingo, porém, o sol já estava no alto e nada.

    - Vou te ajudar - disse uma voz rouca.

    Tinham explicado ao moleque que se ouvisse uma voz rouca longe de casa, tomasse cuidado. Podia ser a onça-gomes, ou o quibungo, ou o ipupiara, ou o joão-do-mato. Essas criaturas horrendas tinham lá suas razões para não gostarem de gente.

    - Quem é você? - perguntou o moleque - Mostre sua cara.

    Quem apareceu foi Ossanha. Usava um cocar e um saiote de penas, mas não era índio. Sua pele era negra, quase azul. Não tinha uma perna e não tinha um olho, perdidos numa briga com Xangô. No começo de tudo, o criador, que se chama Olorum, tinha dado a cada filho uma parte do mundo. Pra Ossanha, a floresta:

    - Você cuida das plantas. Umas servem para comer, outras pra fazer remédio e outras pra enfeitar a casa. Quando alguém precisar, atenda.

    O que fez Ossanha? Guardou as plantas só pra si.

    - Está em falta - mentia, quando alguém o procurava.

    Seu irmão Xangô, quando soube, chamou Iansã, que cuidava dos ventos:

    - Onde já se viu? Dê um castigo pra esse egoísmo.

    Iansã se aproximou como quem não quer nada. Ossanha se distraiu e ela abanou com a saia o horto particular do orixá egoísta. Uma ventania. Quando acabou, as plantas tinham se espalhado pelo mundo.

    É por isso que Ossanha está em todo lugar que tem mato, recolhendo as plantas que Iansã espalhou.

    O moleque, que conhecia a história, não teve medo:

    - Como é que o senhor-senhora vai me ajudar? (Senhor-senhora porque Ossanha é as duas coisas.)

    Tome esse visgo. É da nossa terra. Com ele você vai fisgar um pássaro cora. Já viu um?

    - Não.

    E foi o que aconteceu.

    O pássaro cora era um espanto. Vinha gente de longe apreciar o seu canto. Criadores de pássaros, viajantes, naturalistas, gente de outros países, do governo, da igreja...

    O pássaro do moleque aprendia o que se ensinava. Bastava assoviar uma vez perto da gaiola e ele imitava.

    Começaram a botar preço na maravilha. O moleque recusava. Se aceitasse, teria dinheiro para jogar na cara do seu dono:

    - Olha aqui. Compro minha liberdade. E pode ficar com o troco.

    Mas dizia não:

    - Não vendo. Nem troco por todo o dinheiro do mundo.

    O senhor então partiu pra ameaça:

    - Se não me vender esse passarinho, te arranco a pele!

    O moleque sorria com o canto dos lábios.

    - Se não me vender esta porcaria, te aplico os anjinhos.

    Anjinhos eram uns aneizinhos de ferro para apertar os dedos. Doía como o diabo.

    - Se é uma porcaria, por que nhor quer comprar? - era só o que ele dizia.

    Quando o menino estava de castigo, o cora não cantava.

    Até que um dia o senhor perdeu a paciência. Resolveu vender o moleque pra outro senhor.

    - Vai ser bem longe daqui, que não quero mais te ver na minha frente. Nunca mais ouvir a voz desse passarinho.

    Ricardo, o filho do dono, ficou triste, ficou doente, pediu:

    - Não vende, pai. Há tempos que o escravo sou eu. Eu é que dependo dele pra tudo. Não sei mais brincar sozinho.

    O pai não escutou. Vendeu o moleque.

    O comprador veio buscá-lo à meia-noite. Ricardo estava tão triste que não teve coragem de se despedir do moleque:

    - Ele vai alegre - pensou, pois tem o cora. Eu fico triste, porque não tenho nada.

    No outro dia de manhã, quando se levantou e abriu a janela, o menino Ricardo teve uma surpresa. Do lado de fora tinha uma gaiola pendurada. Assim que viu o menino, o cora começou a cantar.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Setembro de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


De acordo com a mitologia Nagô - povo e cultura africanos da região do Sudão, onde hoje estão Nigéria, Benin, Gana, Senegal, dentro outros, Xangô castigou Ossanha por sua ambição, dispersando as folhas das árvores pelo mundo. Juntando o mito com um conto de José Lins do Rego (Meus Verdes Anos), nasceu O Presente de Ossanha.

Iyami Oxorongá

Iyami Oxorongá é o termo usado para designar as terríveis Ajés, feiticeiras africanas, isso porque ninguém conhece seus nomes reais. Elas são apenas as primeiras "mães" da espécie humana, e são ligadas às origens do mundo.


As Iyami simbolizam o aspecto sombrio das coisas, como a raiva, a inveja, o ciúme, a ambição, a dor, a fome, o caos e o descontrole. Apesar disso, quando são agradadas, podem realizar coisas boas.

Oxorongá é um pássaro africano que emite um som onomatopaico que deu origem ao seu nome. Tradicionalmente, o pássaro representa o poder da feiticeira, pois é ela quem levo os feitiços aos seus destinos.

As Iyami Oxorongá são as "Senhoras da Vida", pois quando cultuadas e reverenciadas são o ventre do mundo, fonte da criação. Quando são esquecidas, lançam toda sorte de maldição e se transformam em "Senhoras da Morte".

As Iyami eram conhecidas como mulheres velhas que possuíam uma cabaça na qual era guardado um pássaro. Por meio de seus feitiços, muitas vezes elas podiam se transformar em pássaros. Sabe-se que apreciam o sangue humano, se reúnem durante a noite nas matas e realizam trabalhos para o mal.

Elas representam os poderes místicos da mulher em seu duplo aspecto - protetor e generoso, perigoso e destrutivo. O caráter duplo das Iyami, de ancestrais e feiticeiras, é importante porque ressalta o papel feminino representado por elas. O conceito africano da maternidade ou mesmo da força espiritual torna as Iyami símbolo da luta e da adaptação entre as forças masculinas e femininas, fundamentais para a manutenção da vida.

As Iyami são as primeiras "mães" da espécie humana e são ligadas às origens do mundo. No princípio de tudo, o casal primordial viva apertado dentro de uma cabaça. Eles se separaram ao brigarem pelo poder. Essa luta representa os dois polos, um construtivo e o outro destrutivo. O mito também representa o jogo de poder entre o masculino e feminino pelo controle da comunidade.

O poder de Iyami é atribuído às mulheres mais idosas, mas também pode pertencer a mulheres mais jovens por herança da mãe ou avós. Uma mulher de qualquer idade pode adquirir o seu poder de forma voluntária ou sem que saiba.

As características de "velhas feiticeiras" está ligada ao conceito de que a sabedoria e o poder só vêm com a idade e com a experiência de vida. Dessa forma, as "Mães Ancestrais", por conhecerem os segredos da vida e por terem vivido muito tempo, podem manipular por meio da magia a vida e a morte.

A mulher na sociedade iorubá possui em si todas as qualidades e poderes de uma Iyami. Em diversas etapas de sua existência ela vive diferentes aspectos desse poder feminino dado pela natureza às mulheres. O poder feminino em seu duplo aspecto (criador e destrutivo) é a síntese da vida e fornece a energia, o axé necessário à continuação da existência na Terra.


Texto retirado da revista Sexto Sentido Especial: Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O Príncipe-Tatu

    Essa história se passou em Minas, no tempo de Tiradentes. Tinha ouro de ar com o pau. E moça bonita assim.

    Vai que um grande minerador estava na janela com a mulher tomando a fresca. Passou um caçador com um tatu às costas. A mulher, que não tinha filhos, cutucou o marido:

    - Ah, quem me dera ter um filho... Mesmo que fosse como aquele tatu.

    Nove meses passados, olha que lhe nasceu um filho. Era um tatu perfeito.

    Foi criado com todo luxo. Capa de seda, botas de Sevilha, chapéu com pena de avestruz. Par ir à missa, cadeirinha nas costas de quatro escravos.

    - Lá vai o príncipe-tatu - diziam nas esquinas.

    Com dezoito anos, o príncipe-tatu chamou o pai de lado:

    - Quero me casar com a filha do conde.

    O conde tinha três filhas e não se importou de dar uma. Obediente, a moça concordou. Pôs uma condição:

    - Meu quarto vai ser todo preto. De luto.

    Foi a maior festa da história de Minas. Veio Isidoro, o mártir, e Chica da Silva, com seu séquito. Terminado o baile, foram os noivos para seus aposentos. O príncipe-tatu ia de cara amarrada. Trancou a porta:

    - Querias que nosso casamento fosse de luto? Pois vai ser agora!

    Pulou em cima da moça e a estrangulou. Na manhã seguinte, mentiu:

    - Foi à cozinha no escuro e rolou da escada.

    Passados alguns anos, o príncipe-tatu mostrou desejo de casar com outra filha do conde. Este, louco para agradar ao ricaço pai do tatu, concordou. Marcado o dia, a moça exigiu:

    - Caso de bom grado. Mas as cortinas, a roupa de cama e o travesseiro serão pretos. De luto.

    A mesma coisa. Durante o baile, o tatu era todo risos. Quando os convidados se foram, trancou a porta e engrossou a voz:

    - Tu não querias luto? Vais ter!

    De manhã, com a cara lavada, mentiu:

    - Se assustou com um rato e despencou da escada.

    A terceira filha do conde, chamada Isolda, pediu ao pai:

    - Quero me casar com o príncipe-tatu.

    O pai primeiro recusou. Tanto porém Isolda insistiu, que lavou as mãos:

    - Sua cabeça é seu mestre. E quem avisa amigo é.

    Deixe estar que Isolda consultara um babalaô. Babalaô é um sacerdote da religião dos orixás. Ele joga búzios, uma espécie de contas, e lê o seu destino pela maneira como os búzios se colocam. Mistérios.

    Quando o príncipe-tatu perguntou como Isolda queria o quarto, ela respondeu:

    - Colorido e alegre.

    Quando ele trancou a porta, ela continuou sorrindo.

    Ao contrário das irmãs, que tinham feito cara de morte. Foi aí que ele tirou o casaco e veio a ser o homem bonito que era.

    Isolda não cabia em si de alegria. Contou às amigas, aos parentes, aos pais do príncipe-tatu. Com pouco, Minas Gerais inteira sabia do segredo do príncipe encantado.

    A mãe do príncipe veio, certa noite, espiar o filho com forma humana. Ele dormia, na calma da sua beleza.

    Ela teve uma ideia:

    - Onde ele guarda o casco?

    - No baú - informou Isolda.

    Acenderam o forno e puseram o casco lá dentro:

    - Assim ele não corre mais perigo de virar tatu.

    O cheiro de osso queimado tomou conta da casa. O príncipe despertou. Correu para a cozinha, com um pressentimento. Abriu o forno. Gemia:

    - O que vocês fizeram? O que vocês fizeram?!

    Com muito esforço, conseguiram acalmá-lo.

    Ele explicou:

    - Faltavam só cinco dias para o encantamento acabar.

    Isolda nada dizia. Chorava. A mãe do príncipe, se achando culpada, coitada, arranhava as paredes com as unhas. Tamanho arrependimento!...

    Lá pelas tantas, o príncipe-tatu se despediu:

    - A partir de hoje, se vocês quiserem me ver, só nas terras de Aruanda.

    Aruanda é o outro nome de Luanda, a capital de Angola. Fica na África, do outro lado do mar. Uma boa parte dos nossos avós veio de lá. Agora, se Isolda e a mãe do príncipe-tatu descobriram onde era, se foram visitá-lo, se ele se livrou para sempre do encantamento... Uma vez fiz essas perguntas à minha avó, que foi quem me contou essa história. Ela olhou pela janela, tirou uma baforada no cachimbo e me respondeu:

    - Ah, isso ninguém sabe...


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Agosto de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


Pertencente ao folclore mineiro, essa história foi aqui recontada pelo autor, da mesma forma que outras histórias pertencentes à cultura branca são incorporadas e recontadas pelos negros do Brasil. A terra de Aruanda é uma referência a Luanda, capital da Angola, vista no Brasil como o lugar post-mortem dos negros que foram para cá trazidos à força. Todos os personagens mencionados são negros e usam títulos de nobreza misturando seus próprios títulos de origem - reis, príncipes - com os da corte branca - condes. Essa mistura e a encenação do papel do branco da classe dominante (que aparece hoje nas alegorias das Escolas de Samba), eram comuns nas Minas Gerais, onde a lavra do ouro permitiu que muitos negros comprassem sua liberdade e passassem a adotar títulos de nobreza, mesmo que informalmente. Para entender mais esse período a que se refere a história, o filme 'Xica' da Silva, com Zezé Motta no papel principal, dá uma ideia estilizada.

Iroko

Iroko é o orixá tradicionalmente representado por uma suntuosa árvore e o guardião das matas. Representa a dinastia dos orixás e ancestrais.


    Iroko é uma árvore africana também conhecida como Rôco, Irôco. É também um orixá cultuado no Candomblé do Brasil pela nação Ketu e, como Loko, pela nação Jêje. Conhecido também como "Tempo", é um orixá muito antigo. De acordo com as lendas, Iroko foi a primeira árvore plantada e, por ela, os orixás desceram à Terra. Outros mitos narram que Iroko foi a única árvore que sobreviveu no planeta após uma grande devastação que aconteceu por causa de uma briga entre a Terra e o Céu.

    Algumas tradições ligam Iroko aos Orixás de Daomé (Nanã, Obaluaê, Oxumarê), e em outras ele é associado a Xangô. O seu culto é cercado de cuidados, mistérios e muitas histórias. Representa a ancestralidade, nossos antepassados. Além disso, é considerado o seio da natureza, a morada dos orixás.

    Para o povo iorubá, Iroko é uma das quatro árvores sagradas cultuadas onde se pratica a religião dos orixás. Representa a ancestralidade, os nossos antepassados, o seio da Natureza, a morada dos Orixás. Ela simboliza também a morada dos espíritos infantis, conhecidos como abiku. Dessa forma, desrespeitar Iroko, a grande e suntuosa árvore, é desrespeitar suas origens, sua própria dinastia e seu sangue.

    Iroko está sempre presente em todas as reuniões dos orixás. Geralmente fica em silêncio em um canto, anotando as decisões que envolvem sua ação. Embora seja um orixás pouco conhecido, toda a criação está sob seus propósitos.

    Governa o tempo e o espaço, o ciclo vital que não muda com o transcorrer da eternidade, as oportunidades que a natureza nos dá. Ele acompanha e cobra o cumprimento do carma de cada ser humano, determinando o início e o fim de tudo. As relações desse orixá sempre se baseiam na troca: um pedido feito, quando atendido, deve ser pago.

    É considerado um orixá raro, ou seja, possui poucos filhos e raramente se manifesta. Ao contrário de grande parte dos orixás, Iroko não costuma "baixar" nas festas de santo. Ele é reverenciado por meio de oferendas à árvore que o representa. No Brasil, diz-se que o orixá habita a gameleira branca. Ficus gomelleira ou Ficus doliaria. Seu dia da semana é quinta-feira e seus adeptos usam colares verde e marrom.


Arquétipo


    O arquétipo de Iroko é o de pessoas eloquentes, inteligentes, competentes, teimosos e generosos. Gostam de diversão e prazeres: dançar, cantar, cozinhar, pintar, comer e beber bem. São líderes naturais e se empenham na palavra dada. Dotados de senso de justiça, são amigos queridos e inimigos terríveis, reconciliando-se com facilidade. Possuem um profundo respeito pela família e sua origem. São exigentes com a palavra dada, cobrando as promessas que lhe são feitas. Na vida cotidiana são extremamente pacientes, pois consideram o tempo o seu maior aliado. No trabalho, são dedicados e, por isso, conseguem impor muito respeito.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial: Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Bumba-Meu-Boi

    Esta é uma história de vontade.

    Numa fazenda de gado à beira do Rio São Francisco trabalhava um casal de escravos: Francisco e Catirina. Vai que Catirina ficou grávida. Numa noite em que a lua prateava o pasto, Catirina gemeu para o marido:

    - Estou com desejo de língua de boi.

    - Vontade de grávida é ordem - disse Francisco. - Mas os bois não são nossos. Você sabe, mulher.

    Naquela mesma hora, não é que apareceu um boi enorme, branco e gordo? De quem é, de quem não é... Francisco entrou para dormir, mas Catirina foi atrás. Tinha um olhar comprido que dava pena:

    - Quem me dera uma língua de boi...

    Francisco saiu e matou o coitado. Cozinhou a língua e pôs fim ao desejo da mulher. Chamou depois os vizinhos e repartiu o resto:

    - A pá é pro Itamá. A peitaça pro seu Vilaça. Pro meu sobrinho Antonil, o costaço. Pro seu Dodato, o pernil...

    Só sobraram os chifres e o rabo, que ninguém quis.

    Daí a dias, o dono da fazenda cismou de ver o rebanho:

    - Cadê o boizão, aquele que eu trouxe do Egito? O feitor procurou pela fazenda inteira. Deu a notícia:

    - Sumiu.

    - Sumiu, como?!

    Um escravo que tinha visto Francisco fazer a repartição, e não tinha ganhado nada, contou:

    - Vi o Chico matando ele.

    O amo caiu no choro. Era um homem feroz, mas triste. Socava a parede:

    - O meu boi Barroso que veio do Egito em caravela!...

    Dava dó.

    - Vou consolar o amo - disse Francisco, quando soube.

    - Está louco? - falou Catirina. - É melhor fugir.

    O pobre do amo olhava comprido o que restava do boi: o esqueleto com o rabo e os chifres.

    Mandou buscar curandeiros em todas as partes.

    O primeiro olhou, olhou. - Tá morto. E deixou uma lista de remédios. - Com três dias arriba.

    De fato. No terceiro dia o boi deu um pum. Foi só.

    Rezaram, recitaram mantras, cumpriram penitências. Nada. Dessa vez nem um traque.

    Alguém se lembrou de um pajé. Chegou com ervas e uma coleção de sapos secos. Acendeu um cachimbo e baforou os restos do boi. Também, nada.

    - O meu boi morreu!... - chorava o amo. - Que será de mim?

    - Manda buscar outro - sugeriu o feitor -, lá no Piauí.

    Ninguém queria entender o sofrimento dum homem tão rico.

    Enquanto isso, Francisco e Catirina estavam escondidos no município de Ão. Fica pra lá de Montes Claros e acabaram sabendo que um fazendeiro assim assim morria de paixão por um boi assassinado etc.

    - Se eu soubesse - suspirou Catirina -, não te pedia língua de boi aquela noite.

    - E se eu soubesse - falou Francisco -, não te fazia a vontade.

    O menino, que tinha nascido e já era grandinho, chamado Mateus, estava ouvindo a conversa.

    - Meu pai, minha mãe, eu resolvo o caso.

    Chegaram na fazenda. Francisco e Catirina ainda com medo do castigo. O amo, porém, só tinha olhos para chorar. Os escravos há muito tempo não faziam mais nada. As porteiras estavam escancaradas e um vento frio fazia redemoinho na própria sala da casa-grande.

    Lá estavam os restos do boi no terreiro; o esqueleto com o rabo e os chifres. Mateus levantou o rabo do boi e espiou lá dentro. Ninguém sabe o que ele viu. Assoprou três vezes.

    O boi viveu. Saiu chifrando quem estava perto. O amo não cabia em si de alegre. Pulava e abraçava os escravos. Perdoou Francisco e Catirina.

    Esse foi o primeiro bumba-meu-boi do mundo. Mais tarde, pra ficar mais bonito, inventaram as criaturas fantásticas: o Caipora, o Bicho Folharal, O Jaraguá e a Bernúncia. E outros animais, além do boi: a Burrinha, a Ema, o Cavalo-Marinho, o Urso, o Jacaré, o Urubu e muitos outros.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Junho de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

Ibejis

Ibeji é o orixá dos gêmeos, associado ao nascimento e à criatividade. Cada gêmeo é representado por uma imagem e, juntos, representam a dualidade.


    Ibejis são divindades gêmeas infantis e representam os irmãos, a infância, o momento em que a dependência da solidariedade é muito maior. Entre as divindades africanas, Ibejis indica a contradição, os opostos que caminham juntos. Eles demonstram que todas as coisas, em todas as circunstâncias, têm dois lados. Representam também a justiça que só pode ser feita se as duas medidas forem pesadas, se os dois lados forem ouvidos. Por ser criança, é associado a tudo o que se inicia: a nascente de um rio, o germinar das plantas, o nascimento de um ser humano.

    É um orixá e tem seu próprio culto, obrigações e iniciação. Divide-se em masculino e feminino (gêmeos). No Oyó, como Erês (crianças), são ligados às qualidades de Xangô e Oxum. São protetores dos que tiveram problemas ao nascer e daqueles que perderam um irmão, no caso de gêmeos. Em algumas casas de culto são referidos como Erês, em outras são cultuados como Xangô ou Oxum crianças.

    Alguns mitos dizem que os gêmeos Ibejis eram filhos de Iemanjá e companheiros de brincadeiras de Logunedé e Ewá. Conta-se que, certo dia, quando brincavam na cachoeira, um dos irmãos acabou se afogando. O que sobreviveu se tornou muito triste e melancólico. Sua apatia foi tão grande que acabou perdendo o interesse pela vida. Ele pediu a Orunmilá que trouxesse seu irmão de volta. Penalizado com a situação, Orunmilá transformou a ambos em imagens de madeira e os deu de presente a Oxum.

    Outra lenda narra que os Ibejis eram filhos de Iansã, que foram abandonados por ela nas águas. Oxum os encontrou e os criou como se fossem seus próprios filhos. Desde então, passaram a ser saudados em todos os rituais dedicados a Oxum.

    Eles são sincretizados com São Cosme e São Damião e sua celebração é realizada no dia 27 de setembro. Nesse dia, mesas repletas de doces e comidas de crianças são oferecidas em honra aos Ibejis. Seu dia da semana é sábado e suas cores são rosa e azul.


Arquétipo


    O arquétipo dos Ibejis demonstra espíritos jovens, brincalhões e bem-humorados. São irreverentes e enérgicos, demonstrando, muitas vezes, uma certa inocência, pois não conseguem ver muita maldade nas pessoas ou em situações. Mesmo quando adultos, demonstram um espírito e aparência jovens. São solidários e sempre que possível estão prontos a auxiliar os que necessitam. Em seus relacionamentos são dependentes, quase sempre teimosos e possessivos. São cativantes e também fiéis às pessoas que conquistam sua confiança. Entretanto, magoam-se com facilidade por serem muito sensíveis.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial: Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

Jesus e a Barca

    Narra Mateus: - "E ajuntou-se muita gente ao pé dele, de sorte que, entrando num barco, se assentou e toda a multidão estava em pé na praia." (Mateus, 13:2), passando a ensinar.

    A lição sugere várias reflexões, em convites oportunos para o equilíbrio do homem.

    A multidão, em todos os tempos, sempre tem se apresentado esfaimada de pão, de amor, de bens diversos.

    Na sua necessidade, perturba e perturba-se, tornando-se, não raro, agressiva e destruidora.

    Jesus compreendia a massa humana e sabia como conduzi-la.

    Atendeu-a sempre conforme as circunstâncias e de acordo com as suas aflições.

    Deu-lhe as palavras de Vida, concedeu-lhe pão e peixe, propiciou-lhe refazimento orgânico e equilíbrio emocional, restituindo a saúde sob diversos matizes.

    Ao Seu lado, todavia, sucediam-se as multidões ávidas, exigentes.

    Com frequência, após atendê-las, Ele se refugiava na solidão com Deus, orando e silenciando...

    Na referido passagem evangélica,  afirma-se que Ele entrou na barca, perto-longe da multidão e, após o convívio elucidativo pela palavra luminosa. Ele passou para outro lugar...

    Considera estes símbolos: a barca - o destino; a multidão - as tuas necessidades; o mar - a tua atual jornada.

    O teu encontro com Jesus não é casual, porém, um compromisso adredemente estabelecido.

    Ele tem conhecimento da tua rota e é o comandante da barca, que sabe conduzir com proficiência e sabedoria.

    Acalma as tuas necessidades e submete-as à Sua orientação, a fim de que sigas em paz.

    Há convites perturbadores em toda parte, conclamando-te ao desequilíbrio, e te apresentas quase ilhado no tumulto das paixões asselvajadas.

    Se já consegues percebê-lO, escuta-O nos refolhos da alma, deixando que Suas mãos te conduzam a barca.

    Não recalcitres, nem reclames.

    Intenta aproximar-se dEle pela doçura e resignação, vencendo o espaço que medeia entre ambos.

    Impregna-te da vibração que Ele irradia e plenifica-te, de modo a dispensares outros alimentos que te pareçam imprescindíveis.

    Quem veja Jesus não O esquecerá. Todavia, quem se deixe tocar por Ele, nunca mais viverá bem sem a Sua presença.

    Uma mulher equivocada, sentiu-O; um jovem rico viu-O e seus destinos se assinalaram de forma diversa.

    Todos os demais que Lhe sentiram a alma dúlcida, jamais foram os mesmos, tornando-se Suas cartas de luz e vida para a Humanidade.

    Assim, entra com Ele na barca e não O deixes seguir só.


Texto retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014, 5ª Edição.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

As Pérolas de Cadija

    Esta é a história de Cadija, uma menina negra e muçulmana do Senegal. Uma história semelhante a outras, de outros povos, em que há fadas e madrinhas más. Só que aqui, a fada existe na forma de anjo da guarda, o djin, e os perigos que a menina enfrenta suscitam os mistérios das culturas milenares que sobreviveram apesar da colonização.

    Era uma vez uma menina chamada Cadija. Sua mãe havia morrido e agora ela tinha de carregar seu irmãozinho nas costas. Passado um ano, seu pai resolveu casar de novo e então Cadija ganhou uma madrasta.

    Cadija pensou que fosse ser feliz com ela. Mas sabe-se lá por que a madrasta não gostou dela. Já tinha uma filha do primeiro casamento e talvez pensasse:

    - Quando meu marido morrer, essa Cadija vai ficar com tudo. E minha filha verdadeira com nada.

    Daí, toca a perseguir a enteada. Dava trabalhos impossíveis para a coitada. Acordava-a no meio da noite:

    - Anda pegar água. Anda varrer o pátio. Anda cozinhar inhame.

    Certa manhã seu ódio pela enteada chegou ao máximo. Tirou Cadija da cama aos berros:

    - Vá lavar esta colher! E só serve com água do mar. Não volte aqui com ela suja.

    Era um jeito de matar Cadija, pois até Dakar, onde ficava o mar, eram cinco dias e cinco noite de horrorosos caminhos.

    - Quem vai cuidar de meu irmãozinho? - perguntou a menina.

    Carrega contigo - respondeu a mulher com um sorriso mau. - Ou pensa que aqui você tem criada? Tem cada uma!

    Cadija partiu. Atravessou rios e matas. Só faltava atravessar uma savana para chegar a Dakar. A comida acabara e as duas barrigas, a dela e a do irmãozinho, começavam a roncar.

    - As-Salam! (A paz esteja sobre você) - cumprimentou um cameleiro.

    - As-Salam! - respondeu ela.

    - Está pensando em atravessar a savana sozinha? - perguntou o homem.

    - Estou.

    - Não faça isso. Sabe quem mora aí? O Quibungo.

    - Quem é? - perguntou Cadija.

    - Um monstro com um buraco na parte de trás do pescoço. Te engole. Depois não diz que não te avisei.

    - E se eu não encontrar com ele? Sempre fui uma menina de sorte...

    - Ah! - falou o cameleiro, atirando o manto para as costas. - Se não te encontrar o Quibungo vai encontrar um monstro pior. O Abutre Mortal, também chamado Arranca-Corações. Ou um ou outro.

    - Desanimada, Cadija sentou numa pedra. De repente sentiu uma brisa no rosto e nas mãos. E ouviu uma voz:

    - Eu te ajudo. Deixe seu irmãozinho esperando aqui. No lugar dele ponha esta pedra. Se você encontrar o Quibungo, já sabe o que fazer.

    Era uma iska, o djin que mora no vento.

    - E se ao invés do Quibungo eu encontrar o Abutre Mortal?

    Aí não posso fazer nada - respondeu o iska. - Ou um ou outro.

    Com o pedregulho nas costas, Cadija entrou na savana. No segundo dia de viagem apareceu um guerreiro lindo. Tinha arco e flecha e falou com toda gentileza:

    - Onde vais, flor do meu encanto?

    - A Dakar, lavar esta colher que minha madrasta me mandou.

    - E essa criança que você leva aí? Deixa ver.

    O guerreiro se abaixou para fazer gracinha.

    No seu pescoço apareceu o buraco escuro que não tinha fim. Cadija rapidamente levou as mãos às costas e virou o pedregulho lá dentro.

    O Quibungo mastigou e morreu.

    Em Dakar, um mendigo que estava na porta da mesquita pediu:

    - Me ajude, pelas barbas do profeta...

    - Se eu pudesse... - respondeu ela. - Só tenho esta colher.

    - Eu sei - disse o mendigo. - Espere anoitecer. Só lave a colher quando aparecer a Lua. Você vai ver.

    Cadija assim fez. Foi meter a colher na água e ela voltar cheia de pérolas. E assim muitas vezes, até encher a canga. Estava rica.

    Ao passar de volta pela savana, ouviu um ronco vindo de uma caverna. Devia ser o Abutre Mortal, o Arranca-Corações.

    Pegou o irmãozinho e chegou em casa. Tinham se passado oito dias e a madrasta, feliz, achava que ela não voltaria.

    Abrindo o saco de pérolas, Cadija fez a divisão. A madrasta queria mais. Puxou a menina para o quarto:

    - Onde foi que você arranjou esta riqueza? Temos bruxa aqui em casa e eu não sabia!

    - Foi no mar - respondeu. - Meti a colher e foi só.

    A mulher fingiu agradecer. E falou para a sua filha verdadeira:

    - Se esta boboca ficou rica, também ficarei. Posso carregar mais pérolas que vinte Cadijas juntas.

    Pegou um camelo e partiu. Ordenou aos criados que preparassem uma festa para quando voltasse. Mandou os cozinheiros fazerem cuscuz, seu prato preferido. Na manhã de décimo dia, porém, ela não voltou. De tarde, também não. Quando foi de noitinha e os convidados já iam embora, a filha verdadeira decidiu:

    - Minha mãe já deve estar chegando. Vamos comer ou o cuscuz estraga.

    Quando abriu o panelão, ficou branca de susto. Dentro do cuscuz havia um coração. Ainda estava batendo e ela desmaiou, pois sabia de quem era.

    Quanto a Cadija, pegou seu irmãozinho e foi morar bem longe dali.


História de Joel Rufino dos Santos retirada da Revista Nova Escola, maio de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.