domingo, 9 de outubro de 2022

A Vaca Estrela

    - Ufa, que barra! - exclamou dona Izaltina, diretora da escola. - Não adianta pedir ajuda para a prefeitura que nada vem. A escola está caindo e ninguém toma providência!

    - Escola de pobre num dá voto, né, dona Izaltina? - consolou uma das mães que estava sempre ali ajudando no que podia.

    - Quando será que isso vai mudar?

    Enquanto a mudança não chegava, o jeito era ir empurrando com a barriga, tocando a escola como dava, com meia dúzia de tostões furados recolhidos dos pais. Quando chovia, chovia tanto dentro quanto fora da escola. Todas as noites, faltavam lâmpadas, que se queimavam com muita frequência por causa da má qualidade da instalação elétrica. Os sanitários viviam entupidos e malcheirosos. O mobiliário arrebentado, as salas sujas e cheias de buracos. E junto com tudo isso, havia ainda o problema do mato e da grama em volta da escola.

    - Qualquer dia desses ainda vai surgir uma onça do mato.

    E olha que era quase verdade. Se não aparecesse onça, cobra até que seria bem possível...

    Dona Izaltina, desolada, explicava:

    - O que vocês querem que eu faça? Já pedi umas dez vezes e a prefeitura não mandou ninguém para podar o mato e a grama, nem resposta aos pedidos. Só se eu pegar a foice...

    Mas a situação foi se agravando: o mato subindo, a grama crescendo e todo mundo reclamando. Foi então que a diretora resolveu marcar uma reunião com pais e professores para dar um jeito no problema do mato e da grama. Reunião marcada, sempre as mesmas pessoas presentes, ela explicou, explicou a pediu ajuda, soluções, sugestões.

    - Falar com a prefeitura...

    - Não adianta. Cansei de pedir.

    - Pagar alguém...

    - Com que dinheiro? A APM não tem um centavo em caixa!

    - Chamar os pais para cortar a grama...

    A reunião pegou fogo: a turma que concordava com a ideia só concordava, mas nenhum deles podia nem sabia cortar grama e mato. Do outro lado, uma turma grande de pais e professores não concordavam de jeito nenhum, pois achavam que era obrigação do governo manter a escola em ordem.

    A coisa foi por aí e já estava quase virando bate-boca quando o Luizinho da 3ª série levantou a mão, perdido no meio da gritaria, e tentou sugerir:

    - A vaca Estrela pode ajudar, dona Izaltina.

    - Como?

    - Um avião?

    - Cavar o quê?

    - Estrela? O que o céu tem a ver com isso?

    - Vaga? Tá faltando vaga?

    Só quando o Luizinho falou e explicou pela terceira vez que o pessoal prestou atenção no garoto.

    A vaca Estrela. Minha vaca. Ela pode ajudar.

    - Como uma vaca pode ajudar, Luizinho?

    - É simples. Ela come muita grama. Come até mato, tudo o que aparece. Come tanto que o pasto lá do quintal da minha casa já está quase no fim.

    - E daí, Luizinho?

    - E daí eu posso soltar a vaca Estrela no quintal da escola que ela vai comer tudo, a grama, o mato...

    Silêncio.

    Silêncio total na reunião.

    Dona Izaltina, completamente surpresa com a ideia maluca do Luizinho, só conseguiu perguntar:

    - Você tem certeza de que ela come tudo?

    Luizinho respondeu no ato:

    - Certeza, certezinha, certezona, dona Izaltina. Ela come tudo o que vê pela frente.

    Foi um alívio geral. A sugestão foi aceita na hora, mais depressa ainda quando o menino garantiu que a vaca era mais mansa do que vaquinha de presépio.

    - E quando você traz a vaca Estrela?

    - Agora mesmo, se a senhora quiser!

    - Pode ir buscar, agora, Luizinho. Vamos dar um jeito nessa grama.

    Dona Izaltina agradeceu a presença de todos e todos se retiraram igualmente aliviados e sossegados, prevendo o fim da grama e do mato.

    A Zequinha da secretaria tentou mudar a opinião e a decisão da diretora:

    - A senhora não acha perigoso? A senhora não vai pedir autorização para trazer a vaca?

    - Autorização coisa nenhuma! Quero ver alguma autoridade aparecer aqui e falar qualquer coisa que seja. Eu boto a vaca em cima do primeiro que aparecer.

    Menos de meia hora depois o Luizinho apareceu com a vaca Estrela. Era uma vaca magricela, malhada, com cara de mansa, jeito de morta-em-pé e apetite de esfomeada. Deu até a impressão de que seus olhos brilharam quando ela viu tanta grama e mato.

    O fato é que a vaca Estrela do Luizinho deu conta do recado: em menos de um mês, além de engordar muitos quilos, ela acabou com a grama e com o mato da escola.

    Só que... como nada é perfeito no mundo... a vaca resolveu um problema e foi deixando outro. Você já imaginou qual? Pois é... nesse quase um mês em que ficou comendo grama e o mato, a vaca Estrela foi deixando por dia dois enormes montes de cocô pelo quintal da escola, espalhando um cheiro forte...


Conto retirado do livro de Treze Contos de Edson Gabriel Garcia, da série Conte Outra Vez, Atual Editora, 14ª Edição, São Paulo, 1988.

sábado, 8 de outubro de 2022

Enfrentando o medo

    A tristeza que se te insinua, dominando, a pouco e pouco, as paisagens vivas da tua existência, é sinal de alarme a que deves dar atenção. Ela resulta dos fenômenos contemporâneos do medo e da ansiedade que vives na conjuntura evolutiva. Necessitas observá-los sob uma óptica profunda, de modo a erradicar-lhes as causas, liberando-te da sua constrição.

    O medo, até certo ponto, é uma reação natural ante o desconhecido e se expressa de variadas formas no cotidiano.

    A iminência de um acontecimento desagradável; a surpresa em uma situação que parece insustentável; a expectativa por uma resposta que talvez seja negativa fazem-se acompanhar de um receio normal, que se pode transformar em ansiedade controlada.

    O medo do escuro, de fantasmas, de tragédias revela vinculação com o período infantil do qual o indivíduo ainda não se libertou, e que deve superar através da afirmação pessoal advinda da lógica, da razão e do esforço para o amadurecimento emocional.

    Referimo-nos, no entanto, a este receio que aumenta e exorbita, levando a estado de quase paroxismo, em decorrência dos acontecimentos de pequena monta ou de expectativas que produzem taquicardias, sudorese abundante, colapso periférico, expressando o desequilíbrio psicológico.

    Passada a crise, advém os efeitos em forma de melancolia, de depressão, caminhando para  os estados mais graves.

    É nesta fase que o organismo se torna mais susceptível à instalação de doenças psicossomáticas, tais os distúrbios digestivos, as úlceras, os problemas cardíacos...

    A ansiedade pode manifestar-se de maneiras diversas e é responsável por muitos outros males que afetam a saúde e o bem-estar pessoal.

    A mais excelente terapia contra o medo e a ansiedade é a irrestrita confiança em Deus, que criou a vida com objetivos elevados.

    A dor não é de origem divina. Tem raízes na rebeldia humana. Quando aparece noutras espécies de seres, é fenômeno degenerativo dos corpos que devem passar por transformações inevitáveis.

    A confiança em deus, igualmente, deve ser racional e não uma herança psicológica, sem estruturação na experiência dos fatos que nos demonstram a Sua realidade.

    Compreendendo que a finalidade da vida é o bem, o homem dá-se conta de que é o responsável por tudo quanto lhe acontece, portanto, cabendo-lhe trabalhar com afã para produzir causas cujos resultados felizes o alcançarão mais tarde.

    Isto posto, adquire a certeza de que somente lhe acontece aquilo que é necessário para a sua evolução deste modo equipando-se de valores ético-morais para enfrentar as enfermidades, os dissabores, os insucessos, com coragem, eliminando o medo e vencendo a ansiedade patológica.

    Reflexiona com calma a respeito do medo e seus sequazes.

    Busca-lhes as causas e passa-as pelo crivo da razão, intentando penetrar nos seus fundamentos. Eles podem ter raízes em problemas morais e espirituais do passado.

    Sejam, porém, de que ordem forem, exercita-te, mentalmente, nos processos para a sua eliminação.

    Ora a Deus, entregando-te a Ele em atitude dinâmica, sem os prejuízos de uma beatitude inoperante.

    Dispõe-te a enfrentar qualquer situação com o pensamento otimista. Se o resultado for negativo, considera-o valioso pela experiência que te advirá.

    Medita com calma a respeito de tua existência, permitindo-te crescer emocionalmente.

    Libera-te da compressão da posse, treinando solidariedade e caridade.

    Recorda-te que nunca estás a sós; que ninguém vive em solidão, exceto aqueles que se encerram no egoísmo, na depressão... Mesmo estes, estão acompanhados por Espíritos que lhe compartem a casa mental, a emoção perturbada.

    Faze a experiência de te brindares com o bem e constatarás que medo e ansiedade alguma resistem ao amor que provém do Infinito Amor, assim libertando-te da tristeza e do sofrimento injustificado.


Texto retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2015.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Mãe, me conta aquela...

    Pedrinho, de pijama, deitado, olhos procurando alguma coisa perdida no teto, pediu à mãe:

    - Mãe, me conta aquela...

    A mãe, deitada na cama ao lado, procurando descansar um pouco enquanto o filho se preparava para dormir, não teve jeito.

    - Aquela qual?

    - Aquela da Cinderela.

    - Ah!... Bem, era uma vez uma moça pobre e órfã que morava com a madrasta e suas três filhas.

    - Tudo isso, mãe? Tanto filho assim? Você não vive falando que ter mais de dois filhos em casa é loucura?!

    - ... ela era muito maltratada pela madrasta...

    - ... só porque queria, né, mãe? A senhora não vê na novela como as filhas brigam com as madrastas? Onde já se viu? Então, essa moça, além de órfã e pobre, era muito boba.

    - As coisas boas, as melhores roupas, a comida mais gostosa, tudo era para as filhas dela. O resto, o que sobrava, era para a enteada. Além disso, ela vivia sempre suja, por causa dos serviços de casa e do borralho do fogão...

    - Borralho, mãe? O que é isso?

    - Borralho é o resto das brasas e cinzas da lenha que queimou e fez fogo para preparar a comida.

    - Fogão de lenha, mãe?

    - É.

    - Mãe, isso não existe mais. As casas só têm fogão a gás.

    - Bem... um dia haveria um baile no reino para o príncipe escolher sua mulher. As filhas da madrasta encomendaram vestidos lindíssimos para as melhores costureiras do reino.

    - Elas não compraram vestido pronto nas lojas, mãe?

    - Não... mandaram fazer. No dia do baile, as três moças enfeitaram-se todas, mas mesmo assim, como eram horrorosas, continuaram feias. Na hora de sair para o baile, olharam com ar de pouco caso para a irmã de criação.

    - E ela não falou nada, mãe?

    - Não, filho. Foi para o canto da cozinha, perto do borralho, onde era seu lugar.

    - Puxa, mãe, que moça bola murcha! Tava esperando cair algum presente do céu?

    - Daí... de repente, apareceu sua fada madrinha e presenteou-a com um vestido lindíssimo, sapatos de cristal e uma carruagem puxada por seis cavalos brancos.

    - Pô, mãe, acho que você está por fora da história. Na verdade, a moça não tinha fada madrinha, coisa nenhuma. Ela foi mesmo é quebrar o maior pau com o pai dela e disse pro velho: "Olha aqui, pai, ou você me dá uns trocos para eu comprar uma roupa e ir no baile...". Certo, mãe?

    A mãe concordou:

    - É...

    - E ela deu mais um aperto no pai: "Que droga de pai é você, que deixa a madrasta fazer o que quer com sua filha!" O pai não teve outra saída senão arrumar mais dinheiro pra filha comprar suas coisas. Como ela era mais bonita, foi ao baile e acabou arrumando um namorado. Certo, mãe?

    A mãe continuava ouvindo:

    - ...

    - Depois do baile, suas irmãs comentaram: "Já era hora de arrumar namorado, pois está ficando velha!" Mas esse namoro não deu certo porque o cara era muito mandão e queria mandar um tudo na vida da pobre Cinderela.

    Pedrinho fez uma pausa, satisfeito.

    - Gostou da história, mãe?

        A mãe não respondeu. Pedrinho tornou a perguntar:

- Gostou, mãe?

A mãe não respondeu, claro. Tinha dormido gostosamente na cama ao lado. Pedrinho ajeitou-se também na cama e se preparou para mais uma noite de sono e sonhos. Como em todas as outras, certamente as fadas, bruxas, duendes, cinderelas e mágicos estariam fazendo parte da sua noite.


Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, da série Conte Outra Vez, Atual Editora, 14ª Edição, São Paulo, 1988.

Um Cofre Valioso

     Juca e Joca eram dois irmãos. Tinham lá suas diferenças, pois, afinal, cada um é cada um e ninguém é igualzinho a ninguém. No caso dos dois, um era esperto e o outro também.

    O avô deles era um sujeito bigodudo, que passou a vida inteira juntando dinheiro para comprar coisas. Por isso, quando quis dar um presente para os netos, a única coisa que apareceu na sua memória foi um cofre. Vai daí que, um dia, cada um ganhou do avô um cofre, para guardar seu rico dinheirinho ganhado e juntado.

    - Lugar de dinheiro é no cofre! - disse solenemente o avô ao entregar os presentes mal e porcamente embrulhados.

    O cofre de Juca era um porquinho barrigudo, cara de comilão. Ele pegou o porquinho-cofre e correu para o quarto. O cofre de Joca era um elefante, também barrigudo, cara de morto de fome. Ele também correu para o quarto, após ter pego seu cofre-elefante.

    O tempo foi passando e com ele coisas diferentes foram acontecendo. O cofre do Joca, pobre elefante barrigudo e morto de fome, acabou quebrado e jogado num canto qualquer da casa. O cofre do Juca, belo porquinho comilão, tinha uma fome insaciável e estava sempre a querer mais e mais dinheiro. Barrigudinho, o porquinho, cada vez mais cheio, estava sempre na estante. O dinheiro do Joca ia no sorvete, no gibi, no doce... O dinheiro do Juca... ah! esse ninguém via, ninguém sabia.

    Certa vez, Joca apareceu em casa com um álbum de figurinhas de super-heróis completinho. Não faltava nenhunzinho, nem mesmo He Man. Valia uma nota, completinho daquele jeito. Juca, logo que viu o álbum apresentado pelo irmão, encheu os olhos de vontade e foi logo negociando:

    - Quer vender esse álbum pra mim?

    Joca fez cara de importante, dono de ricos tesouros, e respondeu, depois de fingir que não entendera a pergunta:

    - O que você disse?

    Juca, sem perder tempo, foi de novo propondo:

    - Quer vender o álbum?

    - Bem... quanto você me dá por ele?

    Juca pensou, fez cálculos, meteu a mão no bolso e mandou:

    - Te dou duzentos cruzados.

    Joca esbravejou:

    - Você está brincando! Duzentos pelo Super-Homem, pelo Homem-Aranha, pelo He Man... Sabe quando? Nunquinha!

    Ele sumiu com o álbum e, durante alguns dias, os dois não falaram mais sobre o rico tesouro. Até que o Joca, sabe-se lá por quê, propôs:

    - Encontrei um jeito de vender o álbum pra você.

    - Que jeito? - perguntou o Juca, todo interessado na proposta do irmão.

    - Quero o seu cofrinho. Você me dá o cofre-porquinho e está certo.

    Juca espantou-se:

    O meu cofrinho? Mas ele...

    Joca cortou a resposta decidido.

    - É pegar ou largar!

    - Mas o meu cofrinho...

    - É pegar ou largar!

    - Mas o meu cofrinho... ele não...

    - É pegar ou largar!

    - Está bem... eu aceito.

    Joca ficou com o cofrinho e Juca com o álbum. Apenas alguns minutinhos, até Joca voltar gritando e esbravejando:

    - Você me enganou! Você não disse que seu cofrinho estava cheio de palitos de sorvete em vez de dinheiro! - berrou Joca por tudo quanto foi buraco do corpo.

    - Você não me deixou explicar, ora bolas! Eu tentei falar e você não me deixou.

    - Quero meu álbum de volta.

    - Nada disso! Negócio é negócio. Negócio feito não pode ser desfeito.

    Eles ainda trocaram argumentos, palavrões e explicações por alguns momentos, mas depois cada qual seguiu seu caminho.

    A história não terminou aqui: pois não é que dentro do cofrinho havia um palito de sorvete premiado!? E o prêmio... bem, o prêmio... o prêmio era um livro ilustrado, cheinho de fotografias e desenhos de super-heroínas: Mulher Maravilha, Batgirl, Poderosa Isis, She-Ra...

    Sabe o que aconteceu depois? Bem... isso é história para outro história.


Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, série Conte Outra Vez, Atual Editora, São Paulo, 1988, 14ª Edição.

sábado, 1 de outubro de 2022

O Tempo

    A calúnia zurze o látego em teu dorso com impiedade?

    A zombaria gargalha dos teus propósitos e ações com irreverência?

    Mantém-te calmo, e confia no tempo.

    A intriga rouba-te amigos antes devotados e experimentas solidão enquanto eles se voltam contra ti?

    Confia em Deus, e dá-lhes tempo.

    A inveja te persegue, arengando acusações que sabes injustas?

    Resguarda-te na oração, e deixa passar o tempo.

    O ódio se levanta e cumula o teu céu claro com nuvens sombrias, ameaçadoras?

        Persevera no trabalho, e apoia-te ao tempo.

        A competição infeliz rouba-te as oportunidades que contavas amistosas?

        Não desistas, e entrega tudo ao tempo.

        Sentes as forças caindo, enquanto os novos dominadores da situação sorriem nas carnes moças, afirmando-te ultrapassado?

    Persevera com coragem, e dá-lhes tempo.

A traição passou pela porta dos teus  sentimentos e deixou-te combalido?

Levanta, e concede-lhe a bênção do tempo.

As tuas palavras amigas foram voltadas contra ti e sentes cansaço para a defesa inútil?

Silencia, e encarrega o tempo.

Apontam-te como fracassado, aqueles a quem ajudaste e concedeste o teu amor, as tuas horas, as tuas esperanças?

Desculpa-os, e oferta-os ao tempo.

O tempo é de Deus.

As ações são dos homens.

Todas as tragédias e desaires que os homens sofrem, o tempo retifica.

A terra vencida pela tempestade, o tempo, em nome de Deus, a reverdece e a veste de flores.

Os que perseguem e são ingratos, aprendem com o tempo que o mal é um dardo cravado nas carnes da alma a dilacerá-las.

Nesse incessante passar do tempo, o sorriso de vitória se converte em carantonha de dor e a amargura se transforma em esperança.

O tempo a ninguém poupa, na sua inigualável tarefa de colocar as coisas e os homens nos seus necessários lugares.

Não reajas, precipitado, quando ofendido, com a sofreguidão de quem deseja imediata justiça.

Nunca te rebeles, porque te não reconhecem os valores positivos e somente te espezinham.

O tempo refaz e altera a paisagem terrestre, modificando, também, os acontecimentos morais.

O tempo demonstrou que o triunfo de Herodes, de Anás, de Caifás, de Pilatos, contra Jesus, foi uma ilusão de breves momentos.

Hoje, o vencido na Cruz, permanece como Vencedor, ensinando que só o amor, através do tempo, restabelece a verdade e tudo encaminha aos justos fins.


Retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Dor de Dente

    Joca acordou danado da vida.

    - Droga de dor de dente!

    Um dente de leite havia doído durante boa parte da noite, deixando o Joca sem dormir direito.

    - Droga, logo hoje que é domingo, esse dente me amolando.

    Mal havia levantado, sua mãe deu a primeira ordem do dia:

    - Joca, vem me ajudar a limpar a cas!

    Isso era costumeiro do domingo de manhã: sem escola para ir, sem tarefa para fazer, não tinha jeito de escapar.

    - Pô, mãe, hoje não! Tô com uma baita dor de dente.

    Meia hora depois, Joca ainda estava carrancudo, queixando-se da maldita dor de dente.

    O pai, como fazia todos os domingos, chamou o filho para ir à feira.

    - Vamos, Joca. Depois te compro um pastel de carne na barraca do chinês.

    - Hoje não, pai.

    O pai de Joca insistiu:

    - Por que não?

    - Tô com dor de dente.

    - Tá doendo muito, Joca?

    - Um pouco.

    E o domingo continuou como tantos outros domingos da vida do Joca.

    Vieram os amigos de sempre: primeiro o Tuta, chamando para soltar pipa no morro perto da escola.

    Depois o Pepê, chamando para andarem de bicicleta na pista cross que eles mesmos fizeram.

    Depois a Ritinha, chamando para um desfile de bandas na praça; o Daniel, chamando para brincar na casa dele; e o Juca, seu irmão, pedindo ajuda para limpar a casa do cachorro.

    Nada. O Joca com dor de dente, amuado, com cara de poucos amigos, sem querer papo com ninguém.

    - Vamos ter que procurar dentista ainda hoje. Esse menino tá muito jururu.

    - Amanhã, mãe. Dá para aguentar até amanhã.

    Depois veio o almoço. Almoço de domingo na casa do Joca é coisa fina: macarrão, carne, molho e muito catchup.

    - Vem comer, Joca.

    - Num quero.

    - Vem comer só um pouco.

    Joca não quis.

    O pai, preocupado com o filho, mas não querendo estragar o domingo da família, levantou-se da mesa e sugeriu:

    - Que tal a gente tomar sorvete na padaria Rainha do Pão Fresco?

    - Oba! - concordaram todos.

    Joca esticou os olhos, ainda borocoxô.

    - Vamos, vamos.

    E puseram-se a caminho. De saída, já na porta, a mãe do Joca, com o coração pequenino, vendo o filho ali adoecido, suspirou:

    - Pena que você não pode ir, né, Joca? Sorvete faz mal pra dor de dente.

    Assim é demais. Ninguém resiste!

    O Joca, num segundo, pôs-se de pé junto ao grupo, meteu um sorriso novo nos lábios e disse:

    - Já passou, mãe. A dor de dente já passou.


Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, série Conte Outra Vez, Atual Editora, 14ª Edição, São Paulo, 1988.


Homem pode ser mulher?

     Nós estávamos todos no quartinho dos fundos da casa do Zé Dirceu ensaiando uma peça de teatro para a aula de Língua Portuguesa. Eu, o Zé Dirceu, a Raquel, o Pedrão e o Engasgado (o nome dele não era esse, não: era apelido. Uma vez ele pegou escondido um lanche de um colega e quis comer depressa para não ser descoberto. Aí, já viu... engasgou e ganhou o apelido. O apelido pegou tão bem que hoje ninguém sabe o verdadeiro nome dele).

    Estávamos discutindo e trocando ideias a respeito da distribuição dos papéis. Quem faz o quê? Quem fica com o quê?

    - Eu faço o marido.

    - Eu faço o vendedor.

    O Zé Dirceu, dono da casa, fez biquinho e chantagem:

    - Eu quero é fazer o marido. De todos aqui, eu é que tenho mais jeito de homem.

    - Xiii... lá vem o machão da turma.

    - Que machão, coisa nenhuma! É que eu tenho uma baita cara de bravo!

    - Huummmm... bravinho, hein!?

    - Vamos parar com a brincadeira!

    Resolvi dar um palpite antes que a coisa engrossasse:

    - Tenho uma ideia: cada um escolhe seu papel preferido. A pessoa que escolher um papel e não tiver outro concorrente, já fica com o papel escolhido. O papel que for escolhido por mais de uma pessoa vai pra sorteio. A sorte decide pela gente.

    Pela cara dos meus amigos, percebi que todos tinham aceitado a sugestão. O único que ficou meio assim foi o Zé Dirceu.

    - E se eu não for sorteado para o papel de marido?

    Aí foi a vez do Engasgado falar por nós:

    - Se você não for sorteado, azar o seu. Fica com o papel que sobrar, ora bolas.

    Zé Dirceu tentou negociar:

    - Mas... a casa é minha.

    A Raquel arrematou:

    - Você fica com a casa e nós vamos ensaiar na rua. Está bom assim?

    Acho que isso entupiu a reclamação do Zé Dirceu, pois ele não falou mais nada.

    Fizemos a escolha. Dito e feito: o que todos nós pensamos aconteceu. Sobraram o papel de marido, com duas escolhas: o Zé Dirceu e o Engasgado; e o papel de empregada, sem escolha. Um dos dois ficaria com o papel de marido. O outro... bem, o outro... aí estava o problema: o outro ficaria com o papel de empregada. O sorteio foi feito, sem cambalacho, na frente de todos, com cinco pares de olhos acompanhando tudo, tintim por tintim. Adivinhe o que deu?

        - Engasgado foi sorteado... vai ficar com o papel de marido. Zé Dirceu... pra você sobrou o papel de empregada...

    Imaginem a cara do Zé Dirceu. Nós pensamos que ele fosse estourar. Os olhos brilhando muito, a pele vermelha, o rosto e o peito estufados:

    - Isso nunca!

    Saiu do quartinho dos fundos e entrou em casa. Esperamos mais um pouco e, como ele não deu as caras, fomos embora.

    -Como vamos explicar para a professora?

    - Explicando o que aconteceu, ué!

    - Será que ela vai acreditar?

    - Se não acreditar, paciência!

    Fomos embora. À tarde, teríamos aula e resolveríamos o que fazer. Não dava mesmo para arrumar outro colega, pois a classe inteira já havia sido dividida em grupos.

    Tivemos aula normalmente, cada qual na sua. O Zé Dirceu não falou com ninguém. Ficou jururu o tempo todo. Apenas no fim da tarde deu sinal de vida, mandando um bilhetinho para mim. Abri o papel e li:

Duda, já que vocês insistem e

já que não podem fazer a peça

sem a minha ajuda, avise a

turma que eu aceito ser a empregada.

Amanhã, às 9 horas, no

mesmo lugar.


    No dia seguinte, lá estávamos todos. Com os papéis escolhidos, começamos o ensaio. Foi um quiproquó danado. O Zé Dirceu deu um trabalhão e tanto para fazer o papel de empregada. Mas acabou acertando e dando um jeito.

    No dia da apresentação, ele esteve ótimo. Acho que até que foi por causa dele que fomos tão aplaudidos e convidados a apresentar nossa peça para as outras classes. O Zé Dirceu arrumou uma peruca loira, um sutiã emprestado da mãe, um vestido da irmã e se transformou numa verdadeira mulher. Até voz diferente ele inventou para cumprir bem sua parte.

    Sabe por que eu contei isso?

    Naquela época, eu era menina ainda. Depois cresci, me casei e tive três filhos. Um deles, um menino arteiro pra chuchu, entre uma vidraça quebrada por um chute torto e uma perna machucada por um tombo de bicicleta, de vez em quando resolve vestir minhas roupas para imitar e debochar da irmã mais velha...


Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, coleção Conte Outra Vez, Atual Editora, São Paulo, 1988.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

As Cocadas

    Eu devia ter nesse tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo.
    Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco. Acompanhei rente à fornalha todo o serviço, desde a escumação da calda até apuração do ponto. Vi quando foi batida e estendida na tábua, vi quando cortada em losangos. Saiu uma cocada morena, de ponto brando atravessada de paus de canela cheirosa. O coco era gordo, carnudo e leitoso, o doce ficou excelente. Minha prima me deu duas cocadas e guardou tudo mais numa terrina grande, funda e de tampa pesada. Botou no alto da prateleira.
    Duas cocadas só... Eu esperava quatro e comeria de uma assentada, oito, dez, mesmo. Dias seguidos namorei aquela terrina, inacessível. De noite, sonhava com as cocadas. De dia as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente. Sempre eu estava por ali perto, ajudando nas quitandas, esperando, aguando e de olho na terrina.
    Batia os ovos, segurava gamela, untava as formas, arrumava nas assadeiras, entregava na boca do forno e socava cascas no pesado almofariz de bronze.
    Estávamos nessa lida e minha prima precisou de uma vasilha para bater um pão-de-ló. Tudo ocupado. Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da mesa, deslembrada do seu conteúdo. Levantou a tampa e só fez: Hiiii... Apanhou um papel pardo sujo, estendeu no chão, no canto da varanda e despejou de uma vez a terrina.
    As cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de canela e feitas de coco leitoso e carnudo guardadas ainda mornas e esquecidas, tinham se recoberto de uma penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.
    Aói minha prima chamou o cachorro: Trovador... Trovador... E veio o Trovador, um perdigueiro de meu tio, lerdo, preguiçoso, nutrido e abanando a cauda. Farejou os doces em interesse e passou a lamber, assim de lado, com o maior pouco caso.
    Eu olhando com uma vontade louca de avançar nas cocadas.
    Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta - má e dolorida - de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro.

Crônica de Cora Coralina retirada do livro O Tesouro da Casa Velha; Global Editora, seleção de Dalila Teles Veras, São Paulo, 1989.

As almofadas de Dona Lu

Conheci há tempos uma senhora que se chamava Dona Lucinda. Para o marido era eternamente Lu e para os da roda, Dona Lu.

Dona Lucinda veio ao mundo com uma arte ingênua e inspiração irresistível de fazer almofadas, exatamente no tempo em que era requintado o seu uso. Tinha a mania desse inútil pertence. Espalhada na vastidão de sua casa sem criança, Dona Lu contava, rentes, afora, os dois monumentais e bem estofados e bem enfronhados do leito conjugal.

De cima das cadeiras e nos encostos, na assoalho, em todas as direções, na entrada e na saída, tolhendo os passos, e atrapalhando as pernas, estiravam-se, quadravam-se, ou arredondavam-se as almofadas da boa senhora.

Mania interessante que me deixou sempre na dúvida de como a gente se comporta entre elas. Nunca soube ao certo se era para a gente sentar em cima ou ajeitar o corpo cansado; ou se eram  simplesmente para deleite dos olhos. Visitas prudentes, às vezes, antes de se sentarem, punham a almofada no colo.

Tudo quanto caísse do céu por descuido e passasse pelos olhos da excelente senhora, seus dedos ágeis logo transformavam. Retalhos de seda. Vestidos velhos descosidos, ticos de renda, véus usados de noiva, penas de galinha, palmilhas de sapatos velhos. Canhões de meias imprestáveis e até cabelo cortado das amigas, Dona Lu, com sua mania excelsa e habilidade inata, transformava em almofada, tradicional, clássica ou modernista. Era uma inspiração.

Não havia noiva que se casasse, amiga que se lembrasse de fazer anos, casal que festejasse bodas de prata, que não recebessem, para enfeite, deleite ou repouso, uma almofada de Dona Lu. Na teimosa abstinência dos filhos, dedicava-se às almofadas.

O marido conformou-se com a mania (com que não se conformam os maridos depois de 10 anos de vida conjugal?) e passava os dias no escritório porque não tinha em casa onde pôr os pés.

Conheci uma outra senhora, cujo maior pesar era não possuir tantas almofadas como Dona Lu.

Bem sabia ela que o marido da amiga não tinha em casa dois palmos desimpedidos por onde arrastasse descuidado os chinelos caseiros. Tinha o escritório, pensava. Fosse para o escritório.

Com franqueza, depois de dez anos de vida conjugal, o marido só tem mesmo um lugar seguro, apropriado, que lhe vai bem e onde não atrapalha - o escritório.

A amiga relava-se silêncio, no subconsciente. Passou a decorar o feitio, o modelo e a tática de Dona Lu. Logo mais começou a fabricação. Discreta no começo, ganhou impulso e foi longe, querendo mesmo ultrapassar a amiga.

No dia em que terminou a vigésima, discretamente deu uma festinha às pessoas de sua roda mais íntima. Competição sempre teve força e o fabrico continuou. O marido, amigo da paz doméstica, desistiu do dique que tentou opor à avalanche.

Como não tinha escritório fora do lar, diminuiu as passadas pela casa. Fazia voltas prudentes e cautelosas para alcançar um objeto mais afastado.

Pensou no desquite, pensou numa demorada excursão pela selva amazônica, onde não houvesse almofadas, pensou num incêndio, num terremoto e outras muitas coisas.

Afinal, pela força da inação, das pernas e da vontade, acabou paralítico numa cadeira de rodas, rodeado de almofadas.


Conto de Cora Coralina retirado do livro O Tesouro da Casa Velha, seleção de Dalila Teles Veras; Global Editora, São Paulo, 1989.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Tanto Mar

Sei que estás em festa, pá

Fico contente

E enquanto estou ausente

Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá

Com a tua gente

E colher pessoalmente

Uma flor no teu jardim

Sei que há léguas a nos separar

Tanto mar, tanto mar

Sei, também, quanto é preciso, pá

Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá

Cá estou doente

Manda urgentemente

Algum cheirinho de alecrim

Foi bonita a festa, pá

Fiquei contente

Ainda guardo renitente

Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá

Mas certamente

Esqueceram uma semente

N'algum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar

Tanto mar, tanto mar

Sei, também, quanto é preciso, pá

Navegar, navegar

Canta primavera, pá

Cá estou carente

Manda novamente

Algum cheirinho de alecrim


Letra original da música Tanto Mar, de Chico Buarque, bem diferente da versão dele no então LP de 1978. Aqui, a gravação é da cantora brasileira Ciça Marinho em seu belíssimo CD intitulado Além Mar, Além Mim, gravado em São Paulo no ano de 2012. Filha de portugueses, manteve o sotaque de seus pais na gravação do disco...