domingo, 17 de março de 2024

A escola educa?

Numa tribo indígena não existe a escola como um momento separado. Todo o cotidiano é um processo educativo. O aparecimento da escola, como um momento do cotidiano, está ligado à progressiva divisão social do trabalho. Na medida em que a convivência social tornou-se mais complexa, o cotidiano compartimentou-se em momentos específicos, cada um deles como um sistema autônomo, com sua lógica e regras próprias.

Ninguém espera que a família ou o clube ensine álgebra ou química. Não se espera também que a escola dê educação sexual, considerada tarefa familiar. Essa divisão cartesiana ou funcionalista dos processos pedagógicos tampouco contempla e entrelaçamento das esferas, pois a família nem sempre se integra na função de complementaridade escolar. Mesmo a religião é tida como esfera à parte. O resultado desse processo é a fragmentação da realidade. Cada vez se percebe menos o mundo em que se vive. Estabelece-se a dicotomia entre a fome de pão e de beleza. Educa-se para saciar a primeira, sem considerar o sentido mesmo da existência.

O processo educacional abarca, numa concepção totalizante, quatro dimensões: transmissão do patrimônio cultural, despertar das potencialidades espirituais, reflexão sobre o que se vive e capacidade de modificar a realidade. Hoje, a escola restringe-se à primeira dimensão. O acesso ao saber justifica-se por razões de ordem instrumental. Alijado da criatividade e da reflexão, transforma-se em processo de domesticação intelectual. Basta conferir os livros didáticos que já vêm com respostas às questões levantadas, como se fossem universais, neutras, sem implicações ideológicas. Daí a perplexidade quando a resposta do educando não coincide com a da editora ou a do autor. Não se admite que uma mesma questão possa ter diferentes soluções. Assim, a aprendizagem confina-se na memorização, com a mera reprodução do saber.

Filha da tradição cartesiana, a escola só se preocupa com a pessoa do pescoço para cima. Desconsidera pois o vasto leque de potencialidades não estritamente intelectuais, mas lúdicas, artísticas e espirituais, que não podem ser trabalhadas ao nível dos conceitos. Acentua-se a divisão entre o saber intelectual e o experimental. A escola, ao separar o espaço do aprendizado do espaço da existência, impede o sujeito de pensar o cotidiano com suas implicações. Essas aparecem fragmentadas, como se o assalto a banco não tivesse nenhuma relação com a política salarial nem as medalhas de ouro conquistadas numa Olimpíada com o investimento na área social.

Questões fundamentais são ignoradas pela escola, como a relação do educando com doenças, fracassos, frustrações medos e mortes. Diante das situações-limite da vida reina o silêncio. Educa-se para a competitividade e o sucesso e não para tecer laços de solidariedade que amenizem situações conflitivas. Em suma, falta à escola abordar o sentido da existência.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

sábado, 16 de março de 2024

A nós o coração suplementar

Quem anuncia é um cientista chamado Adrian Kantrowitz. O homem se propõe a utilizar um tubo de borracha, ligado à corrente sanguínea, através do qual é automaticamente posto a funcionar um aparelho elétrico fora do corpo, que ajudará o funcionamento do coração, quando este começar a ratear, seja por falta de forças, seja por excesso de trabalho. A isto o cientista dá o nome de "coração suplementar".

Bonito nome, hein? Coração Suplementar! Claro, o doutor falou que se experimento poderá ser aperfeiçoado a ponto de cada um, um dia, poder adquirir o seu coração suplementar. E então a gente fica imaginando como seria bom se esse coração, além de ajudar o funcionamento do coração principal nas suas funções fisiológicas, ajudasse também nas suas funções sentimentais.

Ah... como isto seria admirável! Um coração suplementar para satisfazer a doce amada, com quem gostaríamos de deixar o coração durante todas as horas, as alegres e as tristes, as decisivas ou as dúbias, as certas ou as indefinidas, qualquer hora enfim, porque a ela pertence o nosso coração que pulsa sentimento.

Mas ele mora num quarto conjugado junto com aquele que pulsa sangue e que é preciso levar para o ouro e o pão; impossível separá-los na dura lida, que onde vai um vai outro, unidos e tão inúteis um para o outro, em seus destinos tão diversos.

Meu Deus, como eu estou hoje!

Que venha o coração suplementar e que o doutor seja tão genial a ponto de definir as funções dando a um os prosaicos afazeres e ao outro as lidas do sentimento. E que o suplementar fique sendo aquele e o principal fique sendo este.

E aí então, oh, meu amor, você não vai reclamar mais a angústia maior da minha ausência, porque eu chegarei feliz para dizer que tenho de ir ali e volto já, mas acrescentando com toda a sinceridade d'alma:

- Até já, querida! Deixo aqui contigo o meu coração principal!


Crônica de Stanislaw Ponte Preta retirada do livro Dois amigos e um chato, Coleção Veredas, Editora Moderna,  26ª Edição, 1997, São Paulo.

Glorifiquemos (11)

 "Ora, a nosso Deus e Pai  seja dada glória para todo o sempre." - Paulo (FILIPENSES, 4:20.)


Quando o vaso se retirou da cerâmica, dizia sem palavras:

- Bendito seja o fogo que me proporcionou a solidez.

Quando o arado se ausentou da forja, afirmava em silêncio:

- Bendito seja o malho que me deu forma.

Quando a madeira aprimorada passou a brilhar no palácio, exclamava, sem voz:

- Bendita seja a lâmina que me cortou cruelmente, preparando-me a beleza.

Quando a seda luziu, formosa, no templo, asseverava no íntimo:

- Bendita seja a feia lagarta que me deu vida.

Quando a flor se entreabriu, veludosa e sublime, agradeceu, apressada:

- Bendita a terra escura que me encheu de perfume.

Quando o enfermo recuperou a saúde, gritou, feliz:

- Bendita seja a dor que me trouxe a lição do equilíbrio.

Tudo é belo, tudo é grande, tudo é santo na casa de Deus.

Agradeçamos a tempestade que renova, a luta que aperfeiçoa, o sofrimento que ilumina.

A alvorada é maravilha do céu que vem após a noite na Terra.

Que em todas as nossas dificuldades e sombras seja nosso Pai glorificado para sempre.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 13 de março de 2024

Viver perigosamente

Cresce a síndrome do medo. São exceções os que ousam pregar no carro este adesivo que pode ser comprado em camelôs: "Gosto de viver perigosamente. Moro no Rio." Isso vale para São Paulo, Belo Horizonte e qualquer outra grande capital. O medo, como um vírus, toma conta dos nervos e das mentes das pessoas. Medo de assalto, o que induz o cidadão a tornar-se de sua própria casa, trancada com mil chaves, dotada de alarme de segurança e quebrada, no visual, pelas grades que cobrem as janelas.

Fui prisioneiro da ditadura militar e lembro do macabro ritual das visitas semanais. Cada familiar submetido ao vexame de revistas humilhantes, as comidas fatiadas, as latas perfuradas e até os ovos quebrados por amostragem. Identificação, pertences deixados na portaria, chamada do preso, trancas e portas num abrir e fechar que ressoava, metálico, no fundo da alma. Os "terroristas" metiam medo na cabeça paranoica da repressão, desconfiada de que um pedaço de bolo poderia conter dinamites.

Hoje, o medo é provocado pelo desconhecido. Tia Liloca, quando recebe visitas, repete o ritual do presídio: o porteiro do prédio deve exigir identidade, o nome é anunciado por interfone, o elevador destrancado no andar em que ela mora, o visitante conferido pelo olho mágico e, por fim, suas fechaduras de roliças chaves dentadas abertas uma a uma.

Doença do momento é a agorafobia - medo de lugares públicos. Teme-se que a praça esconda ladrões atrás das árvores, fantasmas desfilem pelas ruas à noite e crianças pedintes se transformem em perigosos assaltantes ao se aproximar do carro. Cresce o número de pessoas que preferem não sair à noite, jamais usam joias e entram em pânico se alguém se dirige a elas para perguntar onde fica tal avenida. O homem é, enfim, o lobo do homem.

De onde vem tanto medo? Da sociedade que nos abriga, marcada por abissal desigualdade. Se não somos iguais em direitos e nas mínimas condições de vida, por que se espantar com reações diferentes? Como exigir polidez de um homem que sente na pele a discriminação racial e, na pobreza, a social? Como esperar um sorriso de uma criança que, no barraco em que mora, vê o pai desempregado descarregar a bebedeira na surra que dá na mulher? A discriminação humilha e a humilhação gera ressentimento, amargura e revolta. Cada pessoa relegada involuntariamente à pobreza é uma bomba de efeito retardado. A TV acabou com aquele tipo de pobre abnegado que, na minha infância, passava de casa em casa recolhendo restos de comida e roupas velhas. Agora, todos são indistintamente atingidos pelo mesmo - e poderoso - apelo de consumo, que nos quer hedonistas, consumistas e narcisistas.

Nenhum animal teme o seu semelhante. Exceto o bicho homem e mulher. Justamente porque a elite que manda neste país nos impõe a dessemelhança. O objetivo é o lucro e não uma nação saudável, culta e soberana. O que importa é especular, e não produzir. Emprego vira loteria, e salário, esmola.

"Quem vive sob o domínio do medo nunca será livre", dizia Horácio. O contrário do medo não é a coragem, é a fé. Não apenas religiosa, mas cívica, política, utópica. Acreditar que o futuro possa ser melhor e diferente. "Sem medo de ser feliz."


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

domingo, 10 de março de 2024

Tia Quitéria e os telejornais

Tia Quitéria jamais perde o Jornal Nacional. Às oito da noite em ponto, ei-la à frente do televisor, as mãos úmidas, o coração palpitante, à espera do Cid Moreira. Acredita piamente que o locutor cara-da-Globo se enamorou dela. Tentei convencê-la do contrário. "Observe como me olha; veja como suspira ao me ver aqui!" Não há jeito. Há 25 anos, tia Quitéria flerta com o apresentador global que, nesse quarto de século, trocou os cabelos pretos por brancos, adquiriu rugas, tornou-se menos ágil na fala. Envelhece com a Globo, que já não sabe produzir humor, oferece prato requentado tipo Xuxa, afoga notícias em cosméticos e não se envergonha de sua compulsão governista.

Tarde da noite, minha tia cochila entre agulhas de crochê enquanto aprecio a elegante irreverência de Lilian Wite Fibe. Não é um mero apêndice vivo da emissora nem um simples transmissora de notícias. Tem presença própria e flexão inteligente na voz, o que lhe permite dar um toque crítico, quiçá irônico, às novidades que, na boca de Sérgio Chapelin, ressoam apenas como locução anasalada do texto. Moreira e Chapelin sabem modular a entonação da voz. São ótimos à publicidade. Lilian modula o próprio conteúdo da notícia. Não se restringe a emitir, interpreta, como o fazia Joelmir Betting em seus tempos de Bandeirantes.

Nisso tia Quitéria e eu estamos de acordo: na Globo, Joelmir perdeu a sua marca registrada, a fina ironia articulada em metáforas bem-humoradas. Quitéria lamenta que, agora, ele pouco sorri e já não imprime à voz e aos gestos as flexões de outrora. Engessado pelo padrão global de oficialidade, trocou as estocadas de um pugilista pela calculada postura de árbitro das oscilações da economia.

Quando liga no Bóris Casoy, tia Quitéria afasta a cristaleira. Receia que tamanha corpulência, que ocupa toda a tela tropece em algum fio do estúdio e caia do lado de cá, dentro da sala. Enfático, Bóris transcende as notícias. Livre para opinar, seu moralismo cívico ajuda-nos a cultivar a virtude da indignação e sua parcialidade política faz-nos sonhar com um telejornal que ofereça as várias versões de um mesmo fato.

Por fidelidade ao Cid Moreira, minha tia recusa-se a ir para a cama com o Jô Soares. Notívago, curto o espetáculo. Jô é multimídia. Não anda, baila; não fala, entretém; não pergunta, questiona. Culto e inteligente, informa e forma com a vantagem de possuir talento artístico. Faça sol ou chuva, seu  bom humor se irradia. Jamais o veremos com aquela indisfarçável depressão que contagiou os apresentadores da Globo logo após o caso Ricúpero.

Da Manchete, tia Quitéria comenta que Carlos Chagas jamais envelhece, sequer um fio branco no bigode farto. Professoral, ele daria um bom diretor de escola, diz ela. Não gosto de seu inveterado pessimismo quando se trata de notícias favoráveis aos setores progressistas. "Impeachment de Collor?" exclamou certa feita com seu costumeiro tom interrogativo. E concluiu: "Não passa de sonho de uma noite de verão". Para a felicidade geral da nação, equivocou-se. Minha tia está convencida de que Márcia Peltier é uma princesa sem coroa. Destituída também da emoção, ela não perde o sorriso angelical nem quando fala de tragédia. Se fechar o sorriso, não fica séria, fica triste.

Tia Quitéria acha o Chico Pinheiro com cara de ator de cinema, sem o talento interpretativo de Marília Gabriela, que somatiza a notícia. Ele transmite os fatos de olho no papel. Marília o faz de olho no telespectador. Porém, que se cuide. Minha tia promete que, se Marília enfiar aquela caneta  na cara dela, vai lá no estúdio dar-lhe uns tabefes.

Tia Quitéria tem saudades do rádio antes do advento da televisão. Os locutores não tinham rosto, mas a notícia tinha cara, sotaque, personalidade e aparente neutralidade. Na TV, o visual pasteurizado da maioria do apresentadores deixa a impressão de que eles insistem em se sobrepor à notícia. É o jogo da sedução televisiva fragilizando a informação jornalística. Tia Quitéria é incapaz de se lembrar de uma única notícia transmitida ontem pelo Cid Moreira. Mas adora o modo que ele olha nos olhos dela.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

sábado, 9 de março de 2024

Certamente (10)

 "Certamente cedo venho." - (APOCALIPSE, 22:20.)


Quase sempre, enquanto a criatura humana respira na carne jovem, a atitude que lhe caracteriza o coração para com a vida é a de uma criança que desconhece o valor do tempo.

Dias e noites são curtos para a internação em alegrias e aventuras fantasiosas. Engodos mil da ilusão efêmera lhe obscurecem o olhar e as horas se esvaem num turbilhão de anseios inúteis.

Raras pessoas escapam de semelhante perda.

Geralmente, contudo, quando a maturidade aparece e a alma já possui relativo grau de educação, o homem reajusta, apressado, a conceituação do dia.

A semana é reduzida para o que lhe cabe fazer.

Compreende que os mesmos serviços, na posição em que se encontra, se repetem a determinados meses do ano, perfeitamente recapitulados, qual ocorre às estações de frio e calor, floração e frutescência para a Natureza.

Agita-se, inquieta, desdobra-se, no afã de multiplicar as suas forças para enriquecer os minutos ou ampliá-los, favorecendo as próprias energias.

E, comumente, ao termo da romagem, a morte do corpo surpreende-o nos ângulos da expectativa ou do entretenimento, sem que lhe seja dado  recuperar os anos perdidos.

Não te embrenhes, assim, na selva humana, despreocupado de tua habilitação à luz espiritual, ante o caminho eterno.

No penúltimo versículo do Novo Testamento, que é a Carta do Amor Divino para a Humanidade, determinou o Senhor fosse gravada pelo apóstolo a sua promessa solene: - "Certamente, cedo venho."

Vale-te, pois, do tempo e não te faças tardio na preparação.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 2 de março de 2024

Estejamos Contentes (9)

 "Tendo, porém, sustento e com que nos cobrirmos, estejamos com isso contentes." - Paulo. (I TIMÓTEO, 6:8.)


O monopolizador de trigo não poderá abastecer-se à mesa senão de algumas fatias de, para saciar as exigências da sua fome.

O proprietário da fábrica de tecidos não despenderá senão alguns metros de pano para a confecção de um costume, destinado ao próprio uso.

Ninguém deve alimentar-se ou vestir-se pelos padrões da gula e da verdade, mas sim de conformidade com os princípios que regem a vida em seus fundamentos naturais.

Por que esperas o banquete, a fim de ofereceres algumas migalhas ao companheiro que passa faminto?

Por que reclamas um tesouro de moedas na retaguarda, para seres útil ao necessitado?

A caridade não depende da bolsa. É fonte nascida no coração.

É sempre respeitável o desejo de algo possuir no mealheiro para socorro do próximo ou de si mesmo, nos dias de borrasca e insegurança, entretanto,, é deplorável a subordinação da prática do bem ao cofre recheado.

Descerra, antes de tudo, as portas da tua alma e deixa que o teu sentimento fulgure para todos, à maneira de um astro cujos raios iluminem, balsamizem, alimentem e aqueçam...

A chuva, derramando-se em gotas, fertiliza o solo e sustenta bilhões de vidas.

Dividamos o pouco, e a insignificância da boa-vontade, amparada pelo amor, se converterá com o tempo em prosperidade comum.

Algumas sementes, atendidas com carinho, no curso dos anos, podem dominar glebas imensas.

Estejamos alegres e auxiliemos a todos os que nos partilhem a marcha, porque, segundo a sábia palavra do apóstolo, se possuímos a graça de contar com o pão e com o agasalho para cada dia, cabe-nos a obrigação de viver e servir em paz e contentamento.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Uma carícia verde no verde

Tudo brilhava, doía a vista, perfumava e dava muita paz. A mata muito verde e fresquinha, os bichos se escondiam nela. E, vez ou outra, punham o focinho pra fora ou ousavam ir pra estrada. Os passarinhos cantavam numa variedade bonita de sons. O menino não fazia qualquer barulho. Queria escutar e descobrir que tipo de passarinho piava. E ficava imaginando, além do som, a plumagem. Jabuticaba do mato e outras frutinhas miúdas vinham depois das chuvas. Numa ou noutra árvore, o menino apanhava orquídeas ou parasitas pra mãe pôr no orquidário.

Uma tardinha, alguém ateou fogo no pasto. E o fogo foi comendo tudo, foi entrando pra mata. E o fogo comeu árvores, flores e frutos. Comeu o verde, o amarelo, o vermelho, o roxo, o rosa e tantas cores mais. E o fogo espantou os bichos. Destruiu ninhos, ovos, filhotes e vida. E lambeu todo o pasto, matando o alimento do gado, dos cavalos e das cabras.

O pai, o menino, todos os homens da fazenda e os vizinhos tentavam destruir o fogo. Só muito tempo depois, já de madrugada, é que conseguiram.

Amanhecia. O menino não conseguia dormir. Foi pro alpendre da casa da fazenda. E viu que o pai estava lá, encolhido no banco. E sentiu que o pai chorava por dentro. Chorava seco e calado. E o menino, que só sabia chorar gritando, pela primeira vez chorou seco e calado. Passou as mãos nos cabelos do pai e sentou perto. Depois, segurou aquelas mãos fortes, grandes e calosas. Mãos que suavam frio. E o menino sentiu um arrepio, mesmo não sendo mais inverno.

Dois meses depois, vieram as chuvas, as muitas chuvas de dezembro. O pai e o menino saíram, gostando de sentir os pingos no rosto, no corpo, agradecidos como a terra. Dias depois, ainda juntos, viram o capim renascer na pastaria. E um olhou pro outro e se abraçaram, chorando diferente. Pai e filho se agacharam e ficaram acariciando o verde que brotava. Ficaram muito tempo descobrindo novos brotos explodindo em vários tons de verde aqui e ali. E só então olharam um pro outro, certos de que já dividiam tudo. Antes, a dor e o choro seco. Agora, o riso solto, a gargalhada e as lágrimas da alegria.


Conto de Elias José retirado do livro O Furta-Sonos e outras histórias, Série Era Outra Vez, Atual Editora, 4ª Edição, São Paulo, 1989.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

O Marido do Dr. Pompeu

Ninguém estranhou quando, depois de vinte e cinco anos de casamento, filhos criados, a mulher do dr. Pompeu pediu o divórcio. As razões dela eram normais para a época: não queria mais ser apenas uma dona de casa. Queria viver sua própria vida, estudar Psicologia, ter sua própria carreira. Tudo bem. O escândalo, para mostrar como ainda existem preconceitos, foi quando souberam que o dr. Pompeu, em vez de outra mulher, arranjara um marido.

- Quem diria, hein? O Pompeu.

A própria mulher foi pedir satisfações.

- Pompeu, você enlouqueceu?

- Por quê?

- Todos estes anos, eu nunca desconfiei que vocês fosse... desses.

- Desses o quê?

- Você sabe muito bem. Um...

A mulher se calou porque nesse exato momento chegou em casa o marido do dr. Pompeu. Um homem apenas um pouco mais velho do que ele, grisalho, ar respeitável. Um empresário de muito conceito.

- Alô... - disse o marido do dr. Pompeu, um pouco constrangido.

- Oi! - disse o dr. Pompeu, alegremente.

- Boa-tarde - disse a mulher, seca.

O marido do dr. Pompeu foi tomar seu banho, ouvindo a promessa do dr. Pompeu que o jantar estaria na mesa num instantinho. Quando a mulher ia recomeçar a falar, o dr. Pompeu a deteve com um gesto.

- Não é nada do que você está pensando - disse.

- Que eu estou pensando, não, Pompeu. Que todo mundo está pensando.

- Nós temos um acordo. Eu cuido da casa para ele,  supervisiono o trabalho das empregadas, faço compras, faço tudo para que ele tenha uma vida doméstica organizada e feliz. Em troca, ele me sustenta. Não temos nenhum contato sexual porque nenhum de nós é, como você disse com tanta eloquência, desses...

- Mas Pompeu...

- Eu não tenho do que me queixar. Meu padrão de vida melhorou. Ele me dá dinheiro para tudo que eu preciso. Inclusive, aliás, para pagar a sua pensão. E hoje eu posso fazer o que sempre sonhei. Não trabalho, não me preocupo com as contas, com a segurança da família, com todas essas coisas de homem. E o melhor: quando tenho que descrever minha profissão, posso botar "Do Lar".

- Mas Pompeu!

- E agora me dá licença que preciso tratar do nosso jantar. Depois do jantar ele vê o Jornal Nacional e eu fico esperando a hora da minha novela. Passe bem.


Crônica de Luís Fernando Veríssimo retirado do livro Comédias da Vida Privada - 101 Crônicas escolhidas, 14ª Edição, L&PM Editores, Porto Alegre, 1995.

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Apoiando-se no espaço vazio

Durante mais de 20 anos partilhou a cama com sua esposa chinesa. E embora Ching-Ping-Mei não lhe tivesse dado filhos, sabia o quanto ela os desejara. Várias vezes, ao longo daquele tempo, dissera-lhe ter estado grávida, perdendo a criança em lamentáveis acidentes. E ele piedosamente fingira acreditar, para não ferir sua delicada sensibilidade oriental.

Gentilmente, amavam-se. Recato, escuridão, jogos de leques. Assim se procuravam desde sempre na pesada penumbra do quarto. Corpos nunca revelados, névoa de incenso, o amor envolto em véus e cortinados, conservando o mistério dos primeiros dias.

Porém, adoecendo Ching-Ping-Mei, exigiu o médico que se abrissem janelas e se fizesse luz, tornando possível o exame. E embora ele se mantivesse do lado de fora da porta, em discreta espera, não lhe foi permitido escapar à revelação trazida junto com o diagnóstico.

A paciente logo sararia, comunicou-lhe o médico, porém ele considerava seu dever comunicar-lhe que à luz da medicina, e não obstante a graça e a doçura inegáveis, sua esposa Ching-Ping-Mei era, na verdade, um homem.

Atordoado, cambaleou sentindo esboroar-se o cerne do amor, estendeu as mãos à frente. Mas em que apoiar-se, se ele próprio, apesar da barba e dos bigodes, e sem que sua amada jamais desconfiasse, era, e tinha sido ao longo daqueles anos todos, mulher?


Conto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.