segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O Príncipe-Tatu

    Essa história se passou em Minas, no tempo de Tiradentes. Tinha ouro de ar com o pau. E moça bonita assim.

    Vai que um grande minerador estava na janela com a mulher tomando a fresca. Passou um caçador com um tatu às costas. A mulher, que não tinha filhos, cutucou o marido:

    - Ah, quem me dera ter um filho... Mesmo que fosse como aquele tatu.

    Nove meses passados, olha que lhe nasceu um filho. Era um tatu perfeito.

    Foi criado com todo luxo. Capa de seda, botas de Sevilha, chapéu com pena de avestruz. Par ir à missa, cadeirinha nas costas de quatro escravos.

    - Lá vai o príncipe-tatu - diziam nas esquinas.

    Com dezoito anos, o príncipe-tatu chamou o pai de lado:

    - Quero me casar com a filha do conde.

    O conde tinha três filhas e não se importou de dar uma. Obediente, a moça concordou. Pôs uma condição:

    - Meu quarto vai ser todo preto. De luto.

    Foi a maior festa da história de Minas. Veio Isidoro, o mártir, e Chica da Silva, com seu séquito. Terminado o baile, foram os noivos para seus aposentos. O príncipe-tatu ia de cara amarrada. Trancou a porta:

    - Querias que nosso casamento fosse de luto? Pois vai ser agora!

    Pulou em cima da moça e a estrangulou. Na manhã seguinte, mentiu:

    - Foi à cozinha no escuro e rolou da escada.

    Passados alguns anos, o príncipe-tatu mostrou desejo de casar com outra filha do conde. Este, louco para agradar ao ricaço pai do tatu, concordou. Marcado o dia, a moça exigiu:

    - Caso de bom grado. Mas as cortinas, a roupa de cama e o travesseiro serão pretos. De luto.

    A mesma coisa. Durante o baile, o tatu era todo risos. Quando os convidados se foram, trancou a porta e engrossou a voz:

    - Tu não querias luto? Vais ter!

    De manhã, com a cara lavada, mentiu:

    - Se assustou com um rato e despencou da escada.

    A terceira filha do conde, chamada Isolda, pediu ao pai:

    - Quero me casar com o príncipe-tatu.

    O pai primeiro recusou. Tanto porém Isolda insistiu, que lavou as mãos:

    - Sua cabeça é seu mestre. E quem avisa amigo é.

    Deixe estar que Isolda consultara um babalaô. Babalaô é um sacerdote da religião dos orixás. Ele joga búzios, uma espécie de contas, e lê o seu destino pela maneira como os búzios se colocam. Mistérios.

    Quando o príncipe-tatu perguntou como Isolda queria o quarto, ela respondeu:

    - Colorido e alegre.

    Quando ele trancou a porta, ela continuou sorrindo.

    Ao contrário das irmãs, que tinham feito cara de morte. Foi aí que ele tirou o casaco e veio a ser o homem bonito que era.

    Isolda não cabia em si de alegria. Contou às amigas, aos parentes, aos pais do príncipe-tatu. Com pouco, Minas Gerais inteira sabia do segredo do príncipe encantado.

    A mãe do príncipe veio, certa noite, espiar o filho com forma humana. Ele dormia, na calma da sua beleza.

    Ela teve uma ideia:

    - Onde ele guarda o casco?

    - No baú - informou Isolda.

    Acenderam o forno e puseram o casco lá dentro:

    - Assim ele não corre mais perigo de virar tatu.

    O cheiro de osso queimado tomou conta da casa. O príncipe despertou. Correu para a cozinha, com um pressentimento. Abriu o forno. Gemia:

    - O que vocês fizeram? O que vocês fizeram?!

    Com muito esforço, conseguiram acalmá-lo.

    Ele explicou:

    - Faltavam só cinco dias para o encantamento acabar.

    Isolda nada dizia. Chorava. A mãe do príncipe, se achando culpada, coitada, arranhava as paredes com as unhas. Tamanho arrependimento!...

    Lá pelas tantas, o príncipe-tatu se despediu:

    - A partir de hoje, se vocês quiserem me ver, só nas terras de Aruanda.

    Aruanda é o outro nome de Luanda, a capital de Angola. Fica na África, do outro lado do mar. Uma boa parte dos nossos avós veio de lá. Agora, se Isolda e a mãe do príncipe-tatu descobriram onde era, se foram visitá-lo, se ele se livrou para sempre do encantamento... Uma vez fiz essas perguntas à minha avó, que foi quem me contou essa história. Ela olhou pela janela, tirou uma baforada no cachimbo e me respondeu:

    - Ah, isso ninguém sabe...


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Agosto de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


Pertencente ao folclore mineiro, essa história foi aqui recontada pelo autor, da mesma forma que outras histórias pertencentes à cultura branca são incorporadas e recontadas pelos negros do Brasil. A terra de Aruanda é uma referência a Luanda, capital da Angola, vista no Brasil como o lugar post-mortem dos negros que foram para cá trazidos à força. Todos os personagens mencionados são negros e usam títulos de nobreza misturando seus próprios títulos de origem - reis, príncipes - com os da corte branca - condes. Essa mistura e a encenação do papel do branco da classe dominante (que aparece hoje nas alegorias das Escolas de Samba), eram comuns nas Minas Gerais, onde a lavra do ouro permitiu que muitos negros comprassem sua liberdade e passassem a adotar títulos de nobreza, mesmo que informalmente. Para entender mais esse período a que se refere a história, o filme 'Xica' da Silva, com Zezé Motta no papel principal, dá uma ideia estilizada.

Iroko

Iroko é o orixá tradicionalmente representado por uma suntuosa árvore e o guardião das matas. Representa a dinastia dos orixás e ancestrais.


    Iroko é uma árvore africana também conhecida como Rôco, Irôco. É também um orixá cultuado no Candomblé do Brasil pela nação Ketu e, como Loko, pela nação Jêje. Conhecido também como "Tempo", é um orixá muito antigo. De acordo com as lendas, Iroko foi a primeira árvore plantada e, por ela, os orixás desceram à Terra. Outros mitos narram que Iroko foi a única árvore que sobreviveu no planeta após uma grande devastação que aconteceu por causa de uma briga entre a Terra e o Céu.

    Algumas tradições ligam Iroko aos Orixás de Daomé (Nanã, Obaluaê, Oxumarê), e em outras ele é associado a Xangô. O seu culto é cercado de cuidados, mistérios e muitas histórias. Representa a ancestralidade, nossos antepassados. Além disso, é considerado o seio da natureza, a morada dos orixás.

    Para o povo iorubá, Iroko é uma das quatro árvores sagradas cultuadas onde se pratica a religião dos orixás. Representa a ancestralidade, os nossos antepassados, o seio da Natureza, a morada dos Orixás. Ela simboliza também a morada dos espíritos infantis, conhecidos como abiku. Dessa forma, desrespeitar Iroko, a grande e suntuosa árvore, é desrespeitar suas origens, sua própria dinastia e seu sangue.

    Iroko está sempre presente em todas as reuniões dos orixás. Geralmente fica em silêncio em um canto, anotando as decisões que envolvem sua ação. Embora seja um orixás pouco conhecido, toda a criação está sob seus propósitos.

    Governa o tempo e o espaço, o ciclo vital que não muda com o transcorrer da eternidade, as oportunidades que a natureza nos dá. Ele acompanha e cobra o cumprimento do carma de cada ser humano, determinando o início e o fim de tudo. As relações desse orixá sempre se baseiam na troca: um pedido feito, quando atendido, deve ser pago.

    É considerado um orixá raro, ou seja, possui poucos filhos e raramente se manifesta. Ao contrário de grande parte dos orixás, Iroko não costuma "baixar" nas festas de santo. Ele é reverenciado por meio de oferendas à árvore que o representa. No Brasil, diz-se que o orixá habita a gameleira branca. Ficus gomelleira ou Ficus doliaria. Seu dia da semana é quinta-feira e seus adeptos usam colares verde e marrom.


Arquétipo


    O arquétipo de Iroko é o de pessoas eloquentes, inteligentes, competentes, teimosos e generosos. Gostam de diversão e prazeres: dançar, cantar, cozinhar, pintar, comer e beber bem. São líderes naturais e se empenham na palavra dada. Dotados de senso de justiça, são amigos queridos e inimigos terríveis, reconciliando-se com facilidade. Possuem um profundo respeito pela família e sua origem. São exigentes com a palavra dada, cobrando as promessas que lhe são feitas. Na vida cotidiana são extremamente pacientes, pois consideram o tempo o seu maior aliado. No trabalho, são dedicados e, por isso, conseguem impor muito respeito.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial: Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Bumba-Meu-Boi

    Esta é uma história de vontade.

    Numa fazenda de gado à beira do Rio São Francisco trabalhava um casal de escravos: Francisco e Catirina. Vai que Catirina ficou grávida. Numa noite em que a lua prateava o pasto, Catirina gemeu para o marido:

    - Estou com desejo de língua de boi.

    - Vontade de grávida é ordem - disse Francisco. - Mas os bois não são nossos. Você sabe, mulher.

    Naquela mesma hora, não é que apareceu um boi enorme, branco e gordo? De quem é, de quem não é... Francisco entrou para dormir, mas Catirina foi atrás. Tinha um olhar comprido que dava pena:

    - Quem me dera uma língua de boi...

    Francisco saiu e matou o coitado. Cozinhou a língua e pôs fim ao desejo da mulher. Chamou depois os vizinhos e repartiu o resto:

    - A pá é pro Itamá. A peitaça pro seu Vilaça. Pro meu sobrinho Antonil, o costaço. Pro seu Dodato, o pernil...

    Só sobraram os chifres e o rabo, que ninguém quis.

    Daí a dias, o dono da fazenda cismou de ver o rebanho:

    - Cadê o boizão, aquele que eu trouxe do Egito? O feitor procurou pela fazenda inteira. Deu a notícia:

    - Sumiu.

    - Sumiu, como?!

    Um escravo que tinha visto Francisco fazer a repartição, e não tinha ganhado nada, contou:

    - Vi o Chico matando ele.

    O amo caiu no choro. Era um homem feroz, mas triste. Socava a parede:

    - O meu boi Barroso que veio do Egito em caravela!...

    Dava dó.

    - Vou consolar o amo - disse Francisco, quando soube.

    - Está louco? - falou Catirina. - É melhor fugir.

    O pobre do amo olhava comprido o que restava do boi: o esqueleto com o rabo e os chifres.

    Mandou buscar curandeiros em todas as partes.

    O primeiro olhou, olhou. - Tá morto. E deixou uma lista de remédios. - Com três dias arriba.

    De fato. No terceiro dia o boi deu um pum. Foi só.

    Rezaram, recitaram mantras, cumpriram penitências. Nada. Dessa vez nem um traque.

    Alguém se lembrou de um pajé. Chegou com ervas e uma coleção de sapos secos. Acendeu um cachimbo e baforou os restos do boi. Também, nada.

    - O meu boi morreu!... - chorava o amo. - Que será de mim?

    - Manda buscar outro - sugeriu o feitor -, lá no Piauí.

    Ninguém queria entender o sofrimento dum homem tão rico.

    Enquanto isso, Francisco e Catirina estavam escondidos no município de Ão. Fica pra lá de Montes Claros e acabaram sabendo que um fazendeiro assim assim morria de paixão por um boi assassinado etc.

    - Se eu soubesse - suspirou Catirina -, não te pedia língua de boi aquela noite.

    - E se eu soubesse - falou Francisco -, não te fazia a vontade.

    O menino, que tinha nascido e já era grandinho, chamado Mateus, estava ouvindo a conversa.

    - Meu pai, minha mãe, eu resolvo o caso.

    Chegaram na fazenda. Francisco e Catirina ainda com medo do castigo. O amo, porém, só tinha olhos para chorar. Os escravos há muito tempo não faziam mais nada. As porteiras estavam escancaradas e um vento frio fazia redemoinho na própria sala da casa-grande.

    Lá estavam os restos do boi no terreiro; o esqueleto com o rabo e os chifres. Mateus levantou o rabo do boi e espiou lá dentro. Ninguém sabe o que ele viu. Assoprou três vezes.

    O boi viveu. Saiu chifrando quem estava perto. O amo não cabia em si de alegre. Pulava e abraçava os escravos. Perdoou Francisco e Catirina.

    Esse foi o primeiro bumba-meu-boi do mundo. Mais tarde, pra ficar mais bonito, inventaram as criaturas fantásticas: o Caipora, o Bicho Folharal, O Jaraguá e a Bernúncia. E outros animais, além do boi: a Burrinha, a Ema, o Cavalo-Marinho, o Urso, o Jacaré, o Urubu e muitos outros.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Junho de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

Ibejis

Ibeji é o orixá dos gêmeos, associado ao nascimento e à criatividade. Cada gêmeo é representado por uma imagem e, juntos, representam a dualidade.


    Ibejis são divindades gêmeas infantis e representam os irmãos, a infância, o momento em que a dependência da solidariedade é muito maior. Entre as divindades africanas, Ibejis indica a contradição, os opostos que caminham juntos. Eles demonstram que todas as coisas, em todas as circunstâncias, têm dois lados. Representam também a justiça que só pode ser feita se as duas medidas forem pesadas, se os dois lados forem ouvidos. Por ser criança, é associado a tudo o que se inicia: a nascente de um rio, o germinar das plantas, o nascimento de um ser humano.

    É um orixá e tem seu próprio culto, obrigações e iniciação. Divide-se em masculino e feminino (gêmeos). No Oyó, como Erês (crianças), são ligados às qualidades de Xangô e Oxum. São protetores dos que tiveram problemas ao nascer e daqueles que perderam um irmão, no caso de gêmeos. Em algumas casas de culto são referidos como Erês, em outras são cultuados como Xangô ou Oxum crianças.

    Alguns mitos dizem que os gêmeos Ibejis eram filhos de Iemanjá e companheiros de brincadeiras de Logunedé e Ewá. Conta-se que, certo dia, quando brincavam na cachoeira, um dos irmãos acabou se afogando. O que sobreviveu se tornou muito triste e melancólico. Sua apatia foi tão grande que acabou perdendo o interesse pela vida. Ele pediu a Orunmilá que trouxesse seu irmão de volta. Penalizado com a situação, Orunmilá transformou a ambos em imagens de madeira e os deu de presente a Oxum.

    Outra lenda narra que os Ibejis eram filhos de Iansã, que foram abandonados por ela nas águas. Oxum os encontrou e os criou como se fossem seus próprios filhos. Desde então, passaram a ser saudados em todos os rituais dedicados a Oxum.

    Eles são sincretizados com São Cosme e São Damião e sua celebração é realizada no dia 27 de setembro. Nesse dia, mesas repletas de doces e comidas de crianças são oferecidas em honra aos Ibejis. Seu dia da semana é sábado e suas cores são rosa e azul.


Arquétipo


    O arquétipo dos Ibejis demonstra espíritos jovens, brincalhões e bem-humorados. São irreverentes e enérgicos, demonstrando, muitas vezes, uma certa inocência, pois não conseguem ver muita maldade nas pessoas ou em situações. Mesmo quando adultos, demonstram um espírito e aparência jovens. São solidários e sempre que possível estão prontos a auxiliar os que necessitam. Em seus relacionamentos são dependentes, quase sempre teimosos e possessivos. São cativantes e também fiéis às pessoas que conquistam sua confiança. Entretanto, magoam-se com facilidade por serem muito sensíveis.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial: Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

Jesus e a Barca

    Narra Mateus: - "E ajuntou-se muita gente ao pé dele, de sorte que, entrando num barco, se assentou e toda a multidão estava em pé na praia." (Mateus, 13:2), passando a ensinar.

    A lição sugere várias reflexões, em convites oportunos para o equilíbrio do homem.

    A multidão, em todos os tempos, sempre tem se apresentado esfaimada de pão, de amor, de bens diversos.

    Na sua necessidade, perturba e perturba-se, tornando-se, não raro, agressiva e destruidora.

    Jesus compreendia a massa humana e sabia como conduzi-la.

    Atendeu-a sempre conforme as circunstâncias e de acordo com as suas aflições.

    Deu-lhe as palavras de Vida, concedeu-lhe pão e peixe, propiciou-lhe refazimento orgânico e equilíbrio emocional, restituindo a saúde sob diversos matizes.

    Ao Seu lado, todavia, sucediam-se as multidões ávidas, exigentes.

    Com frequência, após atendê-las, Ele se refugiava na solidão com Deus, orando e silenciando...

    Na referido passagem evangélica,  afirma-se que Ele entrou na barca, perto-longe da multidão e, após o convívio elucidativo pela palavra luminosa. Ele passou para outro lugar...

    Considera estes símbolos: a barca - o destino; a multidão - as tuas necessidades; o mar - a tua atual jornada.

    O teu encontro com Jesus não é casual, porém, um compromisso adredemente estabelecido.

    Ele tem conhecimento da tua rota e é o comandante da barca, que sabe conduzir com proficiência e sabedoria.

    Acalma as tuas necessidades e submete-as à Sua orientação, a fim de que sigas em paz.

    Há convites perturbadores em toda parte, conclamando-te ao desequilíbrio, e te apresentas quase ilhado no tumulto das paixões asselvajadas.

    Se já consegues percebê-lO, escuta-O nos refolhos da alma, deixando que Suas mãos te conduzam a barca.

    Não recalcitres, nem reclames.

    Intenta aproximar-se dEle pela doçura e resignação, vencendo o espaço que medeia entre ambos.

    Impregna-te da vibração que Ele irradia e plenifica-te, de modo a dispensares outros alimentos que te pareçam imprescindíveis.

    Quem veja Jesus não O esquecerá. Todavia, quem se deixe tocar por Ele, nunca mais viverá bem sem a Sua presença.

    Uma mulher equivocada, sentiu-O; um jovem rico viu-O e seus destinos se assinalaram de forma diversa.

    Todos os demais que Lhe sentiram a alma dúlcida, jamais foram os mesmos, tornando-se Suas cartas de luz e vida para a Humanidade.

    Assim, entra com Ele na barca e não O deixes seguir só.


Texto retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014, 5ª Edição.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

As Pérolas de Cadija

    Esta é a história de Cadija, uma menina negra e muçulmana do Senegal. Uma história semelhante a outras, de outros povos, em que há fadas e madrinhas más. Só que aqui, a fada existe na forma de anjo da guarda, o djin, e os perigos que a menina enfrenta suscitam os mistérios das culturas milenares que sobreviveram apesar da colonização.

    Era uma vez uma menina chamada Cadija. Sua mãe havia morrido e agora ela tinha de carregar seu irmãozinho nas costas. Passado um ano, seu pai resolveu casar de novo e então Cadija ganhou uma madrasta.

    Cadija pensou que fosse ser feliz com ela. Mas sabe-se lá por que a madrasta não gostou dela. Já tinha uma filha do primeiro casamento e talvez pensasse:

    - Quando meu marido morrer, essa Cadija vai ficar com tudo. E minha filha verdadeira com nada.

    Daí, toca a perseguir a enteada. Dava trabalhos impossíveis para a coitada. Acordava-a no meio da noite:

    - Anda pegar água. Anda varrer o pátio. Anda cozinhar inhame.

    Certa manhã seu ódio pela enteada chegou ao máximo. Tirou Cadija da cama aos berros:

    - Vá lavar esta colher! E só serve com água do mar. Não volte aqui com ela suja.

    Era um jeito de matar Cadija, pois até Dakar, onde ficava o mar, eram cinco dias e cinco noite de horrorosos caminhos.

    - Quem vai cuidar de meu irmãozinho? - perguntou a menina.

    Carrega contigo - respondeu a mulher com um sorriso mau. - Ou pensa que aqui você tem criada? Tem cada uma!

    Cadija partiu. Atravessou rios e matas. Só faltava atravessar uma savana para chegar a Dakar. A comida acabara e as duas barrigas, a dela e a do irmãozinho, começavam a roncar.

    - As-Salam! (A paz esteja sobre você) - cumprimentou um cameleiro.

    - As-Salam! - respondeu ela.

    - Está pensando em atravessar a savana sozinha? - perguntou o homem.

    - Estou.

    - Não faça isso. Sabe quem mora aí? O Quibungo.

    - Quem é? - perguntou Cadija.

    - Um monstro com um buraco na parte de trás do pescoço. Te engole. Depois não diz que não te avisei.

    - E se eu não encontrar com ele? Sempre fui uma menina de sorte...

    - Ah! - falou o cameleiro, atirando o manto para as costas. - Se não te encontrar o Quibungo vai encontrar um monstro pior. O Abutre Mortal, também chamado Arranca-Corações. Ou um ou outro.

    - Desanimada, Cadija sentou numa pedra. De repente sentiu uma brisa no rosto e nas mãos. E ouviu uma voz:

    - Eu te ajudo. Deixe seu irmãozinho esperando aqui. No lugar dele ponha esta pedra. Se você encontrar o Quibungo, já sabe o que fazer.

    Era uma iska, o djin que mora no vento.

    - E se ao invés do Quibungo eu encontrar o Abutre Mortal?

    Aí não posso fazer nada - respondeu o iska. - Ou um ou outro.

    Com o pedregulho nas costas, Cadija entrou na savana. No segundo dia de viagem apareceu um guerreiro lindo. Tinha arco e flecha e falou com toda gentileza:

    - Onde vais, flor do meu encanto?

    - A Dakar, lavar esta colher que minha madrasta me mandou.

    - E essa criança que você leva aí? Deixa ver.

    O guerreiro se abaixou para fazer gracinha.

    No seu pescoço apareceu o buraco escuro que não tinha fim. Cadija rapidamente levou as mãos às costas e virou o pedregulho lá dentro.

    O Quibungo mastigou e morreu.

    Em Dakar, um mendigo que estava na porta da mesquita pediu:

    - Me ajude, pelas barbas do profeta...

    - Se eu pudesse... - respondeu ela. - Só tenho esta colher.

    - Eu sei - disse o mendigo. - Espere anoitecer. Só lave a colher quando aparecer a Lua. Você vai ver.

    Cadija assim fez. Foi meter a colher na água e ela voltar cheia de pérolas. E assim muitas vezes, até encher a canga. Estava rica.

    Ao passar de volta pela savana, ouviu um ronco vindo de uma caverna. Devia ser o Abutre Mortal, o Arranca-Corações.

    Pegou o irmãozinho e chegou em casa. Tinham se passado oito dias e a madrasta, feliz, achava que ela não voltaria.

    Abrindo o saco de pérolas, Cadija fez a divisão. A madrasta queria mais. Puxou a menina para o quarto:

    - Onde foi que você arranjou esta riqueza? Temos bruxa aqui em casa e eu não sabia!

    - Foi no mar - respondeu. - Meti a colher e foi só.

    A mulher fingiu agradecer. E falou para a sua filha verdadeira:

    - Se esta boboca ficou rica, também ficarei. Posso carregar mais pérolas que vinte Cadijas juntas.

    Pegou um camelo e partiu. Ordenou aos criados que preparassem uma festa para quando voltasse. Mandou os cozinheiros fazerem cuscuz, seu prato preferido. Na manhã de décimo dia, porém, ela não voltou. De tarde, também não. Quando foi de noitinha e os convidados já iam embora, a filha verdadeira decidiu:

    - Minha mãe já deve estar chegando. Vamos comer ou o cuscuz estraga.

    Quando abriu o panelão, ficou branca de susto. Dentro do cuscuz havia um coração. Ainda estava batendo e ela desmaiou, pois sabia de quem era.

    Quanto a Cadija, pegou seu irmãozinho e foi morar bem longe dali.


História de Joel Rufino dos Santos retirada da Revista Nova Escola, maio de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


Ewá

Ewá é considerada uma divindade feminina das águas, o orixá do Rio Yewá, na Nigéria. Sua origem ainda hoje é polêmica.


    Ewá é associada a um orixá feminino oriundo de Daomé, conhecido como Dan. A força desse orixá se concentrava numa cobra que engolia sua própria cauda, dando-lhe um sentido de perpetuidade. Talvez por isso, muitas vezes, ela também seja considerada a metade feminina de Oxumarê.

    Assim como Iemanjá e Oxum, Ewá é uma entidade feminina das águas. É reverenciada como a dona do mundo e dos horizontes e associada à fecundidade. Segundo algumas lendas, era filha de Nanã e irmã de Obaluaê, Ossain e irmã gêmea de Oxumarê. Conta-se que sua grande beleza ganhou fama em diversos reinos e atraiu um grande número de pretendentes ao reino de Nanã. Eles lutavam entre si para conquistar o coração de Ewá que,  constrangida com a situação, foi obrigada a escolher um noivo. Aflita e indecisa diante de tanta confusão, ela acabou perdendo sua forma, transformando-se numa poça d'água que se evaporou com o sol. Em pouco tempo, o vapor desenhou no céu uma nuvem branca na forma de um coração.

    Outra lenda conta que Ewá era uma linda virgem que se entregou a Xangô. Iansã, mulher de Xangô, enciumada e irada a perseguiu. Para fugir da deusa dos ventos e tempestades, ela se escondeu nas matas com Oxóssi, com quem aprendeu a ser uma guerreira e caçadora.

    Devido à complexidade de seu ritual, Ewá é cultuada apenas em três casas na Bahia. Pouco se sabe sobre seus trajes, suas insígnias e rituais. Ela representa o orixá da alegria, da beleza, dos cantos e das satisfações que a vida pode nos dar. É responsável pela mudança das águas, do estado sólido ao gasoso, gerando as nuvens e chuvas. Está ligada às mutações dos vegetais e animais, às mudanças e transformações, rápidas ou lentas, orgânicas ou inorgânicas. Ela rege tudo o que nasce, representando a própria beleza contida naquilo que tem vida.

    Ewá é considerada protetora das virgens e de tudo o que é inexplorado. Ela tem o poder da vidência, atributo que lhe foi concedido por Orunmilá. Como "Senhora do Céu", ela está no lugar onde o homem não pode alcançá-la. O seu dia da semana é segunda-feira e seus adeptos usam cordões verde-mar e rosa.


Arquétipo


    O arquétipo de Ewá é de pessoas alegres, que gostam de dançar, cantar e aproveitar ao máximo tudo o que a vida pode lhes proporcionar. Generosas e bondosas, adoram novidades e são muito criativas. No entanto, são um pouco volúveis e facilmente mudam de opinião e pensamento, principalmente diante de alguma novidade. Detestam a rotina e, por este motivo, estão sempre modificando coisas e situações em sua vida. Geralmente são pessoas dotadas de muita beleza, interna e externa.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial - Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

O Leão de Mali

    Esta história me foi contada por Ismail Mamadu, o griô. Ela traz, de forma simbólica, o mito da fundação do reino de Mali, hoje República do Mali, na África Ocidental. País de onde veio grande parte dos antepassados dos brasileiros de hoje - os mandingas. O mito também mostra o sincretismo entre a religião islâmica (os djins são como duendes para o muçulmano) e as crenças tribais (os babalaôs, que eram os guardiões das muralhas e hoje são os adivinhos). Esse mito, como tantos outros de outros povos, trata do conflito entre o homem e seus limites naturais. Concretamente, ele conta como uma tribo, entre tantas outras daquela região, ergueu-se e se sobrepôs às outras, fundando um reino. Um mito semelhante à leda do Rei Arthur, só que faz parte da herança cultural africana. Aconteceu centenas de anos atrás.

    Um búfalo imenso e horroroso assolava as terras de Do, no país dos mandingas. Não se podia ir à fonte sozinho, não se podia dormir sem o fogo aceso e sem sentinelas. O monstro não escolhia idade. Entre uma colheita e outra, matou cento e sete caçadores e feriu setenta e sete! Apareciam estraçalhados no meio da savana, o embornal das flechas vazio.

    Até que vieram de muito longe dois irmãos caçadores, Oulamba e Oulani. Tinham o cabelo fofo como a flor do algodão e seu andar era rápido como o dos filhos da tribo Traoré. Iam atravessar um rio para chegar às terras de Do, quando viram uma velha mendiga.

    - Em nome de Alá, o Todo-Poderoso, me deem um pouco de comida - pediu.

    Eles não tiveram dúvida. Abriram a mochila e dividiram o que tinham. Ela comeu em silêncio. Limpou as mãos e olhou fixamente para eles.

    - Eu sei que vocês vieram caçar o búfalo assassino. Como foram bons comigo, tenho uma coisa a lhes dizer: eu sou o búfalo que vocês estão procurando! Matem-me e vão receber o prêmio prometido pelo rei. Só peço uma coisa.

    - O que é? - perguntaram os dois irmãos.

    - O prêmio é a moça mais linda de Do. Peço que escolham a mais feia de todas.

    Mataram a mulher-búfalo. Ao último suspiro, ela se transformara no horrendo animal. O rei de Do mandou juntar no mercado todas as jovens que havia, algumas de pele macia como o veludo da noite, outras, medrosas como a lua crescente. Iam esquecendo o prometido, quando o irmão mais novo viu uma corcundinha com caroços por todo o corpo. Era tão feia, mas tão feia, que cobria o rosto com um véu de pano grosso.

    - É essa! - disseram ao mesmo tempo.

    O povo de Do teve uma pena enorme dos dois heróis. Eles pegaram Sogolon (assim se chamava ela) pela mão e voltaram para a tribo dos Traoré. Mas qual dos dois se casaria com Sogolon? O babalaô jogou búzios e não encontrou resposta. Resolveram então presenteá-la ao rei de outra tribo mandinga, Naré Maghan. Encontraram-no debaixo de um baobá, à entrada da cidade. Ali sentava toda tarde com seus ministros para atender o povo. Naré Maghan aceitou o estranho presente e mandou marcar as bodas. Nunca se saberá por quê.

    Não demorou a se arrepender. Sogolon não aceitava dormir na mesma cama. Uma noite ele forçou e o corpo dela se encheu de pelos, de cima a baixo. Arranhado, ele se desesperou:

    - Essa mulher não é humana.

    Até que uma noite um djim - anjo da guarda dos muçulmanos - o visitou em sonho. Naré Maghan acordou Sogolon.

    - Meu djim me explicou tudo. Você entrou na minha vida para ser sacrificada aos deuses. Levanta que vou buscar minha faca.

    Sogolon desmaiou de medo. Mais tarde, quando voltou a sí, estava grávida.

    O filho de Sogolon e Naré Maghan se chamou Sundiata Mari Djata. Babalaôs de todo país foram chamados para dizer que futuro teria. Uns não viram nada, outros preferiram calar.

    Sundiata não era feio como a mãe. Mas tinha um problema: com 3 anos não aprendera a andar. Engatinhava pelo palácio como um cãozinho. Tinha também uma fome enorme e os criados começaram a chamá-lo de príncipe-leão. A mãe parecia não se importar com a desgraça mas o rei não escondia as lágrimas:

    - Quem vai me suceder? Nunca houve no mundo um rei de quatro!

    Sogolon engravidou outra vez. Nasceu uma menina, Kolonkan, feia como a mãe. O pobre Naré Maghan perdeu a paciência. Construiu uma cabana no fundo do quintal e mandou para lá a esposa e os dois filhos.

    - Perdão. Não sei onde estava com a cabeça quando aceitei Sogolon em casamento. Não posso deixar o trono para o aleijadinho. E duvido que haja na Terra quem queira casar com minha filha.

    Então, Naré Maghan casou-se com uma belíssima princesa e teve com ela um filho. Era normal e de pernas fortes. Andou ao completar 1 ano de idade. Naré Maghan se sentia orgulhoso e podia morrer descansado.

    Em Niani havia muitas forjas, pequenas e grandes. A maior era a forja real, onde se faziam as armas do reino. O mestre guardava uma vara comprida e muito antiga de ferro. Dizia a tradição que seria rei dos mandingas quem dobrasse, em sonho, o mestre das forjas:

    - Leve a vara para o aleijadinho.

    De manhã, ele bateu na cabana de Sogolon. Sundiata, como sempre, se arrastava pelos cantos. Tinha então 7 anos e nunca ficara de pé. Ele se apoiou nela, rangeram as juntas e as cartilagens. Conseguiu ficar de pé. Com o peso, a vara dobrou-se e virou um arco. Com ele, Sundiata fez a guerra contra os parentes invejosos e os inimigos dos mandingas. Fundou um país, que até hoje se chama Mali. Ele é o Leão de Mali.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da revista Nova Escola, Abril de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

Oxalá

Oxalá, "O Grande Orixá ou "Rei de Pano Branco" ocupa uma posição incontestável e única entre os deuses iorubás. Ele é a divindade criadora incumbida pelo Ser Supremo de criar a terra sólida, povoá-la e modelar a forma física do homem.


    Oxalá possui outros nomes descritivos de sua natureza e caráter: Obatalá, contração de Oba-ti-o-nla, "o rei que é grande" ou Oba-ti-ala, "o rei em vestes brancas".

    Segundo os mitos, Oxalá foi o primeiro a ser criado por Olodumaré, o deus supremo que o encarregou de criar o mundo com o poder de sugerir e o de realizar. Ele traz consigo a memória de outros tempos, as soluções encontradas no passado para situações semelhantes, merecendo, portanto, o respeito de todos numa sociedade que cultuava seus ancestrais.

    Oxalá representa o conhecimento empírico colocado acima do conhecimento especializado que cada orixá pode apresentar (Ossain, a liturgia; Oxóssi, a caça; Ogum, a metalurgia; Oxum, a maternidade; Iemanjá, a educação, etc.).

    Associado à criação do mundo e da espécie humana, ele se apresenta de duas formas: jovem, como Oxaguian e velho como Oxalufan. Oxaguian é o único orixá funfun que guerreia usando uma espada e um escudo que recebeu de Ogum. Ele sempre evitava ao máximo o confronto, tentando resolver os problemas de outra maneira. Entretanto, se os argumentos não davam resultado, ele entrava na guerra lutando até o final, custasse o que custasse. A guerra, entretanto, não deve ser interpretada ao pé da letra, mas num sentido mais abrangente, como a luta pela sobrevivência.

    Segundo a tradição, Oxalufan com o seu cajado (opaxoro) separou o céu e a Terra, que no início dos tempos se encontravam no mesmo nível de existência. O pássaro que se apresenta pousado em seu cajado é um mensageiro que faz a ligação entre os dois mundos. Muitas vezes, esse orixá é apresentado como um velho, todo curvado e retorcido precisando ser amparado por não poder andar.

    Na Bahia, particularmente, Oxalá é considerado o maior dos orixás e o mais venerado. Seus adeptos usam colares de contas brancas e vestem-se, geralmente, de branco. Sexta-feira é o dia da semana consagrado a ele. O hábito do uso de roupas brancas nesse dia se estende a todos aqueles que frequentam o Candomblé, mesmo aos consagrados a outros orixás.

    Oxalá é sincretizado na Bahia com o Senhor do Bonfim, por ter um grande prestígio e inspirar fervorosa devoção aos habitantes de todas as categorias sociais.


Arquétipo


    O arquétipo de Oxalá é o de pessoas tranquilas, calmas, respeitáveis e dignas de confiança. Sabem argumentar muito bem e conseguem convencer as pessoas devido às suas boas intenções. Embora sejam amáveis e prestativos, não são submissos. Adoram a organização e a limpeza e são perfeccionistas em todas as coisas que fazem. Por usarem o raciocínio na solução de problemas, dificilmente têm explosões emocionais. Geralmente são lentos em suas decisões porque pensam muito antes de agir. Centralizam as coisas em torno de si, o que pode muitas vezes sobrecarregá-los.


Retirado da revista Sexto Sentido Especial: Orixás; Mythos Editora, São Paulo, 2010.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

A Sagrada Família

    Essa história aconteceu há 10 mil anos. Naquele tempo, o deserto do Saara não era como hoje - de uma banda a outra, um mundo de areia, pedras e escorpiões. Nem deserto era. A paisagem era verde. Chovia normalmente e muitos rios corriam por lá.

    Um deus que tinha corpo de homem saiu do Saara para a beira do rio Nilo, um rio comprido que nasce no centro da África e vai desembocar no mar Mediterrâneo.

    O deus se chamava Osíris e tinha a pele escura como a maioria dos africanos. Osíris queria ensinar aos moradores do Nilo coisas úteis e decentes: não comer serpentes, cozinhar o pão, fazer tijolos, cobrir o sexo... Era um deus civilizador. Todo povo tem um.

    Junto com Osíris veio Toth, um escriba. A profissão dele era escrever. Toth tinha de anotar a sentença dos que morriam. Osíris tinha uma balança. Num prato botava o coração do morto, no outro, uma pena que simbolizava a Verdade. Se o coração e a pena pesassem igual, o sujeito tinha sido bom. Se o coração fosse mais pesado, tinha sido mau. Toth anotava. Os maus eram devorados por um monstro horrendo. Os bons iam se divertir num campo verde sem fim.

    Sendo esse ofício de Toth, se podia pensar:

    - Era uma criatura fúnebre.

    Engano. Como sabia escrever, inventou as ciências e as artes. Foi também quem deu nome às coisas. Por decisão dele, pedra ficou sendo pedra, raiva ficou sendo raiva, Lua ficou sendo Lua e assim por diante.

    Toth era sozinho, mas Osíris tinha mulher. Se chamava Ísis.

    Moça inteligente e decidida, Ísis ensinou as egípcias a cuidar dos filhos, a limpar móveis e tratar dos jardins. Para protegê-las inventou o casamento. Os rapazes não podiam se aproveitar delas e ir embora.

    Vai a bela Ísis tinha um irmão ambiciosíssimo: Seth. Osíris reinava no Egito do Norte, Seth, no Egito do Sul. Seth inventava picuinhas, a irmã se preocupava, mas Osíris preferia ignorar.

    - Deixa estar. Inveja não é crime.

    Certa manhã, Osíris achou que os egípcios já sabiam demais. Seus médicos curavam laringite, esquistossomose, doenças da vista... Os cirurgiões abriam maxilares para drenar o pus, remendavam cabeças e pernas quebradas... Os dentistas faziam obturações com cimento e pontes de ouro... Cálculos, como o do volume da pirâmide truncada, os matemáticos faziam com os pés nas costas. Decidiu civilizar outras terras. Deu o cetro para Ísis e partiu.

    - Quando voltas? - ela perguntou de olhos molhados.

    - Talvez um dia. Talvez nunca. Centenas de anos se passaram sem nenhum deles envelhecer. É assim no tempo dos mitos.

    Uma tarde, Ísis passeava na beira do Nilo quando passou por sobre sua cabeça uma nuvem de cambaxirras. Era um sinal de que seu marido estava de volta. Ela perfumou o palácio e sentou com as mucamas para esperar.

    Seth, que tinha espiões por toda parte, ficou sabendo. Armou uma emboscada na saída do deserto e capturou Osíris. Fechou o corpo num cofre de ferro que mandava vir da Assíria e jogou no Nilo.

    As lágrimas que derramou Ísis! Aconselhada pelo escriba, começou a procurar o estranho ataúde rio acima. Nada. Teve um sonho: Osíris estava debaixo de uma tamargueira, perto da vila de Biblos, na Fenícia. Era longe, mas, desde menina, não se sabe porquê, acreditava em sonhos que tivessem árvores.

    Ísis passara a infância na Núbia, centro da África. Segundo a tradição, após o dilúvio, Noé teve um filho negro de nome Cam. Cam se mudou para a África e teve dois filhos: Misr, que deu origem aos egípcios, e Çaxe, que deu origem aos núbios (núbios ou cuxitas são a mesma coisa). Pois bem: na Núbia, Ísis aprendera como se penteiam as rainhas e como se ressuscitam os mortos. Para se aproximar da tamargueira, sob a qual Osíris estava enterrado, ela se transformou num gavião. Pousou num galho da árvore e, sem ninguém saber como, engravidou.

    Assim, quando Osíris voltou a viver, tinha um filho. Chamava-se Hórus. Era bem escuro e sua testa brilhava como o Sol, mesmo em dias nublados. Quando Seth tomou conhecimento, não perdeu tempo. Ofereceu uma recompensa e localizou Osíris num pântano do delta do Nilo. Lá as águas tinham um cheiro doce insuportável.

    Dessa vez pediu um machado e retalhou o corpo de Osíris em 14 pedaços e os espalhou ao longo do rio. Não contava com a paciência de Ísis: ela procurou incansavelmente e foi juntando uma por uma as partes do marido. Faltou uma: o pênis.

    Néftis, que tinha sido mulher de Seth e conhecia bem sua maldade, explicou:

    - Não adianta procurar. A essa altura os malditos caranguejos do Nilo o comeram.

    Osíris abriu os olhos e viu as emendas de um corpo que fora belo como um feixe de papiros. Tristíssimo, fitou o deserto de onde viera um dia:

    - Pretendo ser o deus do Inferno. Meu tempo no mundo expirou. Obedeçam meu filho Hórus como se fosse a mim.

    Dessa sagrada família - Osíris, Ísis e Hórus - descendem os faraós construtores das pirâmides, como as de Gizé, de Quéops, de Micherinos...


Texto de Joel Rufino dos Santos publicado na revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril; edição de Março de 1993.