sexta-feira, 4 de março de 2022

Issum Boshi, o Polegarzinho

    Um casal que viveu muito tempo atrás ia sempre ao templo orar e rogar por um filho, mesmo que ele fosse do tamanho de um dedo.

    Seu desejo foi atendido. O filho que nasceu era do tamanho de um polegar e recebeu um nome tão bonito quanto ele: Issum Boshi. Era esperto e saudável, embora permanecesse sempre do mesmo tamanho.

    Viviam os três muito felizes na mesma casa, mas um dia chegou a hora de ele partir. Issum Boshi queria conhecer a capital.

    Muito pesarosos, os pais não tiveram como dissuadi-lo da ideia. De uma agulha de costura fizeram para ele uma espada, única arma para defender-se dos perigos que teria de enfrentar.

    Viajando num barco pouco maior que um dedal, contornando o rio que corria ao lado de sua casa, enfrentando as carpas que queriam devorá-lo, desviando-se das pedras e tomando cuidado para não despencar nas cachoeiras, Issum Boshi finalmente chegou à capital.

    Teve de ficar muito atento para não ser pisoteado por aquela quantidade tão grande de pessoas até atingir as portas de um grandioso palácio. O senhor que o atendeu a muito custo conseguiu divisá-lo junto aos seus chinelos de madeira, mas ouviu atentamente o que ele lhe dizia, com muita convicção:

    - Senhor, é nesta casa que quero trabalhar. Sei que aqui poderei prestar serviços valiosos.

    Foi contratado para servir a linda filha do senhor, que era muito dedicada à arte de caligrafia. Ao preparar-lhe as tintas para o treino diário, foi logo tratando de aprender todos os passos do ofício.

    Certo dia a moça decidiu ir ao templo para fazer suas orações acompanhada de Issum Boshi e de alguns fiéis empregados.

    Confiante e corajosa, partiu também disposta a enfrentar um perigosíssimo gigante, armado com um martelo, que vivia por aquela região.

    Já estavam voltando das orações quando o gigante surgiu diante deles. Todos fugiram, apavorados. Só Issum Boshi, com sua espada feita de agulha de costura, enfrentou o perigoso inimigo. Zombando muito dele, o gigante o engoliu inteirinho.

    Polegarzinho não perdeu tempo. Desceu goela abaixo do gigante, espetando-o sem parar. Do estômago subiu para a garganta, provocando intensa dor e obrigando o gigante a cuspi-lo e a fugir espavorido para as montanhas.

    Na pressa, o inimigo esqueceu o martelo.

    A jovem patroa de Polegarzinho, vendo o martelo, disse as palavras que soaram como música aos seus ouvidos:

    Ouvi falar da existência de um martelo que tem o poder de atender a qualquer pedido ao se dar marteladas com ele. Quer fazer um pedido, Issum Boshi?

    - Ah! Eu gostaria imensamente de crescer.

    A moça bateu de leve com o martelo em sua cabeça, fazendo o pedido com muita suavidade.

    - Cresça, Issum Boshi. Cresça!

    Ele foi crescendo e crescendo e se transformou no rapaz mais bonito que a filha do senhor tinha visto em toda a sua vida.

    Issum Boshi chamou os pais e todos viveram juntos e felizes por muitos e muitos anos.


Uma lenda japonesa adaptada por Sylvia Manzano. Retirado do revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Setembro de 1994.

quinta-feira, 3 de março de 2022

O Pássaro do Poente

    Esta lenda, acontecida muito tempo atrás, começa numa manhã de inverno, quando um jovem socorre uma cegonha que havia sido atingida por uma flecha.

    Sendo humilde, bom e trabalhador, fica comovido com o profundo olhar de gratidão que recebe da cegonha antes dela alçar voo para os ares.

    Dias depois, já a avançadas horas da noite, alguém bate à sua porta. Uma linda e delicada moça, que havia se perdido no caminho devido ao mau tempo, vem lhe solicitar abrigo por apenas uma noite.

    Imediatamente acolhida pelo bondoso rapaz, ela vai se aquecer ao pé do fogo que crepitava alegremente na lareira. E como o inverno era muito rigoroso, a moça foi ficando. Preparava deliciosas refeições.

    Conversando muito, um se sentindo alegre na companhia do outro, acabaram se apaixonando. E resolveram se casar.

    Quando chega a primavera, a jovem esposa faz um pedido ao marido:

    - Gostaria de possuir um tear. Você poderia vender na cidade os tecidos que eu fizesse.

    Com prontidão, seu pedido foi atendido.

    Construído o quarto do tear, a mulher avisa que se trancaria durante três dias para realizar sua tarefa e impõe uma condição ao marido:

    - Jamais você deverá olhar enquanto eu estiver tecendo. Curiosíssimo, o marido esperou os três dias passarem e ficou maravilhado com o tecido que a mulher trazia nas mãos.

    A delicadeza das estampas e a leveza do pano imediatamente atraíram um comprador, que por ele pagou várias moedas de ouro.

    O homem voltou correndo para casa, trazendo as boas novas para a esposa, que prometeu tecer outro pano no dia seguinte.

    Repetindo a recomendação de jamais poder ser observada enquanto tecia, a mulher trancou-se novamente no quarto.

    Quando saiu, com um trabalho ainda mais deslumbrante que o primeiro, estava pálida e abatida.

    O marido nada percebeu, ansioso que estava pelo tilintar das moedas de ouro em seu bolso.

    Pela terceira vez ela se trancou no quarto, repetindo a mesma recomendação. Mas, desta vez, o marido não resistiu. A curiosidade dominou seu coração e ele foi espiar pelo buraco da fechadura, tratando de aquietar sua consciência:

    - Que mal poderá fazer uma olhadinha apenas? Assim pensou e assim fez. Lá dentro viu uma cegonha frente ao tear, arrancando suas próprias penas para entremeá-las aos fios e compor os desenhos.

    Ao final do terceiro dia, trazendo nas mãos o tecido acabado, a mulher disse, com muita tristeza nos olhos e na voz:

    - Sou aquela cegonha salva por você na neve. Voltei, transformada em mulher, para agradecer aquele seu ato de amor espontâneo e desinteressado. Agora que você já sabe de tudo, não posso continuar vivendo aqui.

    As súplicas e rogos do marido de nada adiantaram. Ele viu, por entre as lágrimas, uma cegonha magra e já quase sem penas voando em linha reta, com muita determinação, em direção ao poente.


Uma lenda japonesa adaptada por Sylvia Manzano. Retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Agosto de 1994.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Santo Antônio dá fogo aos homens

    No tempo em que não existia o fogo, os homens, desesperados, foram implorar ajuda a Santo Antônio. O fogo se achava no inferno e Santo Antônio, apiedando-se dos homens, resolveu ir buscá-lo.

    Santo Antônio trabalhara como guardião de porcos e um dos seus leitões o acompanhava sempre. Então lá foram eles: Santo Antônio, o leitão e seu bastão de férula. Assim, apresentou-se na porta do inferno:

    - Tenho frio e quero me esquentar. Abram para mim.

    - Não. Nós não o reconhecemos. Não abrimos pra você. O porco, é claro, deixamos entrar. Você, não!

    E foi aí que tudo começou: o porco, assim que se viu no inferno, começou a aprontar uma grande confusão. Os diabos não conseguiam agarrá-lo nem expulsá-lo e acabaram apelando para Santo Antônio, que ficara do lado de fora da porta:

    - Venha buscar aquele seu porco maldito.

    Santo Antônio entrou mais que depressa no inferno, tocou o porco com seu bastão e ele aquietou-se imediatamente.

    - Bom - disse o santo homem -, já que estou aqui, vou me sentar um pouco e esquentar as minhas mãos.

    A todo instante passava um diabo correndo para contar a Lúcifer sobre almas que ele fizera cair em tentação. Santo Antônio aproveitava para dar-lhe pancadas nas costas com seu bastão de férula.

    - Abaixe imediatamente esse bastão - disseram os diabos. - Não gostamos dessas brincadeiras.

    Santo Antônio, que na verdade era muito brincalhão, pousou o bastão a seu lado e o primeiro diabo que passou correndo para dar uma boa notícia a Lúcifer tropeçou e deu de cara no chão.

    - Já perdemos a paciência com esse bastão. Vamos queimá-lo já.

    Dizendo isso, os diabos colocaram a ponta dele nas chamas. O porco, como que avisando, começou a revirar tudo: montes de lenha, ganchos, tochas.

    Santo Antônio, muito calmo, disse apenas:

    - Se quiserem que o acalme é só me devolverem o bastão.

    Dito e feito. O bastão foi devolvido e o porco acalmou-se novamente.

    Para alívio de todos os diabos, lá se foram Santo Antônio, o bastão e o porco. O que eles não sabiam é que o bastão era de férula, uma madeira que apresenta a seguinte propriedade: por ter o miolo poroso, se uma centelha penetra nela, fica queimando escondida, sem que se perceba.

    Vendo-se em liberdade, Santo Antônio girou o bastão pelos ares, as centelhas começaram a voar e, para grande alegria dos homens, a partir daquele instante houve fogo na terra.

    Feliz, Santo Antônio voltou ao seu deserto para meditar. Junto com seu porco, é claro.


Uma lenda italiana adaptada por Sylvia Manzano. Retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Junho de 1994.

terça-feira, 1 de março de 2022

A lenda do galo de Barcelos

    Barcelos é uma bela cidade povoada de inúmeros monumentos, que fica na região do Minho, norte de Portugal. O mais consagrado de todos os monumentos é um simples e pequeno galo: em barro, multicolorido, cabeça erguida e um certo ar viril de desafio. As características do verdadeiro galo de Barcelos são:

* corpo preto com bordas multicoloridas;

* crista vermelha

* corações vermelhos, símbolo do amor, circundados por bolinhas brancas, símbolo da paz;

* trevo de quatro folhas, símbolo da sorte;

* folhas verdes imitando as folhas de oliveira;

* miosótis coloridos, símbolo silvestre.

    Conta a lenda que toda a aldeia de Barcelos andava alarmada com um crime praticado nessas terras.

    Certo dia apareceu ali um galego (nome depreciativo dado aos nascidos na Galícia), que se tornou imediatamente suspeito de tal crime. As autoridades resolveram prendê-lo e, apesar dos seus juramentos de inocência, ninguém acreditou nele.

    O galego se dirigia a São Tiago de Compostela em cumprimento de uma promessa. Era fervoroso devoto do santo que se venerava em Compostela, assim como de São Paulo e de Nossa Senhora.

    Mesmo assim foi condenado à forca.

    Antes de ser enforcado, pediu que o levassem à presença do juiz quew o condenara.

    De má vontade, o magistrado, que nesse momento estava no meio de um banquete com alguns amigos, atendeu àquele pobre homem.

    O condenado voltou a reafirmar sua inocência perante o incrédulo público, dizendo: - É tão certo eu estar inocente, como certo é esse galo cantar quando me enforcarem.

    Risos e comentários não se fizeram esperar, mas, pelo sim e pelo não, ninguém tocou no galo.

    Então, o que parecia impossível tornou-se realidade. Amanheceu e o peregrino estava pra ser enforcado. O galo assado ergueu-se na mesa e cantou.

    Já ninguém duvidava da inocência do condenado.

    O juiz, homem temente a Deus e temeroso de cometer semelhante injustiça, vestido ainda de camisolão, correu desabalado até a forca.

    Com espanto viu o pobre homem com a corda ao pescoço. Gritando desesperadamente "soltem este homem, soltem este homem", viu finalmente o homem ser solto e mandado embora em paz.

    Passados anos, o homem voltou a Barcelos e fez erguer o monumento em louvor  à Virgem e a São Tiago.


Uma lenda portuguesa adaptada por Sylvia Manzano. Retirado da Revista Nova Escola, Março de 1994. Fundação Victor Civita. Editora Abril.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

O Amazonas e a Amazônia

    Um dia, as índias que viviam perto de um rio cuja nascente provinha de uma lágrima da Lua ficaram seriamente zangadas com seus maridos.

    Eis como tudo aconteceu:

    Os índios, segundo uma lei imemorial, foram caçar: trouxessem ou não algum animal, a cada vez, assim que voltavam, ordenavam à mulher que lhes desse imediatamente algo para comer. Mas elas que não pensassem em lhes colocar sob o nariz aqueles beijus comuns, senão eles começavam a dar altos brados, e as infelizes não paravam de chorar.

    Isso vinha acontecendo desde sempre, até aquela manhã na qual, quando os índios saíram da aldeia, Toenza, a esposa do próprio chefe, convocou as outras índias para um Conselho.

    E esse Conselho foi um verdadeiro sucesso, pois a mulher do chefe entendia desses assuntos melhor do que o marido.

    - Por que, durante todo o dia, pilamos mandioca para fazer farinha, preparamos as flechas e as lanças, consertamos as cabanas, tratamos de cozinhar, enquanto os homens não fazem coisa alguma, e à tarde não trazem nada, nem um papagaio? Sabemos de tudo isso muito bem, e sem eles estaríamos bem mais felizes do que com eles...

    As outras a aprovaram com entusiasmo, pois aquelas palavras vinham do coração. Por isso, a mulher do chefe malhou o ferro enquanto ele ainda estava quente.

    - Escutem o meu plano. Hoje à noite, quando os homens voltarem, encontrarão preparadas as melhores comidas e as bebidas de que mais gostamos. Depois, dormirão bem depressa, e então nós tomaremos os arcos, as zarabatanas, as flechas e as redes deles e fugiremos...

    - Mas para onde? Seja onde for, eles nos encontrarão..., murmurou uma jovem índia, que acabava de se casar.

    - Conheço um lugar que todo mundo desconhece. E, caso nos encontrem, com certeza levaremos a melhor sobre qualquer intruso, respondeu, segura de si, a mulher do chefe.

    As outras não fizeram mais perguntas; já estavam bem felizes de pensar que, no final de tudo aquilo, logo não teriam mais nada a ver com os homens.

    Naquela noite, quando os caçadores retornaram ao acampamento, como de costume, quase de mãos abanando, seus olhos se arregalaram de espanto e, já de longe, as bocas se encheram d'água.

    Diante das fogueiras, as índias temperavam um filhote de pecari, peixes e ovos de tartaruga. Havia beiju de mandioca espalhado por toda parte em abundância e as moringas estavam cheias do delicioso e capitoso álcool de coco.

    Os índios começaram a comer com formidável apetite e suas esposas, todas sorridentes, lhes traziam carne e mais carne, e não esqueciam de servir bebida. Elas próprias se mantinham respeitosamente um pouco afastadas, e não comiam sequer uma migalha da comida.

    Não demorou muito para que, por todo acampamento, ecoassem roncos satisfeitos.

    Era o que Toenza esperava. A um sinal dela, as mulheres se apossaram das armas dos índios e do seu curare, o temível veneno que eles passavam na ponta das flechas; carregaram as redes de dormir às costas e, em fila indiana, saíram do acampamento em silêncio.

    Durante dias e noites, a mulher do chefe as guiou através da floresta; elas atravessaram um grande rio e chegaram ao sopé de rochedos selvagens.

    - É aqui, nas Montanhas das Virgens! Aqui estaremos ao abrigo dos homens! - declarou Toenza. E elas sabiam muito bem do que Toenza estava falando.

    Os índios, abandonados por suas mulheres, logo encontraram o rastro delas e tentaram, pela doçura ou pela força, convencê-las a voltar com eles. Mas as mulheres, como feras, os obrigavam a fugir, ameaçando-os com suas flechas envenenadas.

    Montanhas das Virgens porque nenhum homem pode chegar lá. E, por causa do nome de Toenza, que foi sendo deformado, hoje se chamam Amazônia, e o grande rio em cujas margens aconteceu esta história se chama Amazonas.


Texto retirado do livro Alguns Contos e Fábulas - Contos da América do Sul, Volume 4. Tradução de Thereza Christina F. Stummer, Paulus Editora, São Paulo, 2002.

A dama pé de cabra

    Conta a lenda que nada detinha D. Diogo Lopes, infatigável caçador: nem neve, nem o frio, nem a chuva. Em seu cavalo branco, corria pelos montes em busca de javalis, veados, lobos e ursos.

    Certo dia, perseguindo um javali no monte agreste, ouviu um lindo cantar. Levantou os olhos e viu uma mulher de extraordinária beleza: cabelos louros, face gentil e mãos brancas como a neve. Aproximou-se e perguntou:

    - Senhora, quem sois vós, que logo me cativaste?

    Seu riso puro e cristalino saltitava nas dobras do vento.

    - Sou uma dama tão nobre como tu.

    O coração de D. Diogo parecia querer estourar de amor dentro do peito.

    - Se casares comigo, senhora, terás as minhas terras e os meus castelos.

    - Deles não preciso. Guarda tuas terras, que delas precisas para cavalgar.

    - Que queres, então, para que sejas minha?

    Fingindo-se envergonhada, ela baixou os olhos e, quando respondeu, sua voz fez com que D. Diogo perdesse de vez a cabeça.

    Só tens que me jurar uma coisa: jamais tornar a fazer o sinal-da-cruz que tua mãe te ensinou desde pequeno.

    Apaixonadíssimo, já não conseguia resistir aos encantos da mulher e tratou de sossegar a própria consciência. "As benzedeiras não me servem para nada mesmo. Na próxima oportunidade mato duzentos mouros e meus pecados serão perdoados."

    E, enfim, exclamou:

    - Será como queres. Faço tua vontade. Arrebatou-a nos braços e partiram velozes para o castelo.

    À noite, quando se deitaram, notou que a dama tinha pés de cabra. Em compensação seu corpo era esbelto e esguio, sua pele escorregadia como seda e ele não perguntou mais nada.

    O casal viveu feliz por alguns anos e dessa união nasceram dois filhos: um menino, chamado Inigo, e uma menina, chamada Sol.

    D. Diogo amava a mulher e os filhos. Não trocava nada por um bom lume e um jantar no aconchego da família.

    Certa noite, conversavam alegremente sentados à mesa quando D. Diogo reparou que o seu melhor cão de caça dormitava junto à lareira. A cachorra, que pertencia à bela dama, farejava o aposento muito inquieta.

    D. Diogo pegou um pedaço de osso com bastante carne e atirou-o ao seu cão, gritando:

    - Silvano, precisas te alimentar. À cachorra não dou nada, porque não para quieta.

    O cão satisfeito dispunha-se a saborear o osso quando, de repente, soltou horrendo uivo de dor. A cachorra abocanhara-lhe a garganta.

    D. Diogo correu imediatamente até ele, que tinha o pescoço coberto de feridas.

    - Meu Deus, nunca vi uma coisa assim, parece coisa de belzebu! - E, esquecendo-se do juramento feito há anos, benzeu-se repetidas vezes.

    Foi o suficiente: a mulher começou a berrar, como se a estivessem trespassando com um ferro em brasas.

    Assombrado, D. Diogo olhou para ela e o que viu foi um animal horrendo. De boca torta e olhos revirados, erguia-se no ar, levando debaixo do braço esquerdo a filha Sol. Soltou um último grito e desapareceu por uma fresta junto ao teto.

    Só então D. Diogo compreendeu: sua mulher era o diabo em forma de gente! Desconsolado, partiu para a guerra. Foi lutar contra os mouros, no sul da Espanha.


Uma lenda portuguesa adaptada por Sylvia Manzano. Retirado da Revista Nova Escola, Março de 1994. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


Esta lenda foi contada por Alexandre Herculano, um grande escritor português. É uma história muito antiga, do tempo em que a Península Ibérica estava dividida entre cristãos ao norte e mouros ao sul. Nesse tempo, toda a gente acreditava em demônios, magia, forças do bem e do mal. O diabo resistia a tudo, menos ao sinal-da-cruz.

O Filho de Luísa

    Uma boa história pode começar de qualquer maneira. Esta começa com uma quitandeira da Bahia. Chamava-se Luísa. O sobrenome deixo para dizer depois.

    Luísa era pequena, bem negra e tinha lábios roxos - diferente de quase todo mundo, que tem lábios cor-de-rosa. Outra coisa: a maior parte dos negros da Bahia, naquele tempo,  era escrava. Luísa não. Por quê? Não sei. Quando começou esta história, ela já era livre - e nada, nada sabemos dela antes disso.

    Luísa também não era cristã. Era uma problema? Para as autoridades era. Tinham receio de negros que não fossem cristãos. "Se acreditam em outros deuses", pensavam, "podem pedir ajuda a eles e esses deuses vão ajudá-los contra nós. É melhor, aqui na Bahia, só permitir o deus cristão.

    Para Luísa, porém, ter outra religião não era problema. Ela achava que todo mundo pode ter a sua. Quanto mais religiões e deuses, melhor. Quem estava certo nesse ponto? Não sei. Queria apenas contar uma história e já estou enredado em discussão.

    Luísa tinha outra estranheza. Quer dizer, que se considerava estranheza. Namorava negros e brancos. Não olhando a cor, se apaixonava dia sim, dia não. Tinha uma queda especial por sujeitos de mão cabeluda.

    - Beleza não põe mesa - dizia para as amigas.

    - Tem mão cabeluda? É meio caminho andado.

    Uma tarde veio à quitanda um certo Oliveira. Luísa o primeiro que viu foram as mãos. Servia. Uma hora que Luísa saiu do balcão para pegar uns tomates, Oliveira sapecou-lhe um beliscão no pescoço. Luísa respondeu com uma obrada que jogou Oliveira no chão. Era a paquera da época. Naquele mesmo dia começaram a namorar firme. Aí não tev mais beliscão nem ombrada.

    Não há mal que sempre dure. Nem bem. Luísa fazia parte de uma sociedade secreta de negros malês. Eram negros de religiões não-cristãs, que preparavam uma revolta pela liberdade de todos os escravos da Bahia.

    Religiões não-cristãs, na verdade, eram duas: a muçulmana e o candomblé. Luísa era muçulmana e simpatizava com o candomblé, de forma que era a pessoa ideal para o movimento. Em fevereiro de 1835, estourou a revolução dos malês. Luísa foi presa e comeu o pão que o diabo amassou. Castigada com duzentas chibatadas, teve hora que ela desejou ter morrido. Pensou que ia apodrecer na cadeia. Mas, um belo dia, quem veio soltá-la? Oliveira. Ele era branco e foi ao juiz com uma conversa comprida: ia se responsabilizar pela quitandeira e coisa e tal.

    Luísa, é claro, ficou muitíssimo agradecida. Foram andando pela rua e ela contou uma coisa para ele: estava grávida e tinha sido sorte não perder a criança. Oliveira também contou uma coisa: era jogador profissional de cartas. Estava vendo aquele chapéu de pissandó, aquela medalha de São Judas Tadeu de ouro trinta quilates? Tinha ganho no sete-e-meio.

    Quando fez nove meses, nasceu o menino. Batizaram-no Luís, mas não vou dizer o sobrenome. Era negro fosco como Luísa e tinha a testa alta e o nariz fino como Oliveira. Não sei se disse que ele era português. Oliveira gostava sinceramente de Luísa.

    Então, dando sorte no jogo, abriu uma loja para ela vender doces de alfenim. Luísa continuava agradecida. Jurou que não ia mais se meter em revolução. Em troca, Oliveira jurou que ia procurar trabalho honesto e largar os ases e os curingas.

    Nenhum dos dois cumpriu o prometido. Um dia estourou nova revolução dos malês. Luísa combateu e voltou a ser presa. Oliveira arrumou uma dívida grande no jogo. Aí, pegou o filho:

    - Vou te apresentar a um velho amigo, no cais da Ribeira.

    Quando se aproximaram desse amigo, falou: "Esse é meu filho, que te falei". Piscaram o olho. O homem, zaque! Botou algemas no garoto.

    - Pai, manda ele me soltar! - pediu Luisinho.

    Oliveira foi escapulindo de mansinho:

    - Perdão, meu filho. Mas foi tua mãe que mandou te vender. Você ainda vai ser feliz.

    Luisinho, acorrentado no porão, chorou até o Rio de Janeiro.

    Os anos se passaram. Do Rio, Luís foi vendido pra São Paulo. Subiu a pé, acorrentado pelo pescoço, a Serra do Mar. Era inteligente e determinado como a mãe - que, agora posso dizer, se chamava Luísa Mahin. O sofrimento da escravidão não o destruiu. Uma das suas tarefas era estudar com os filhos do senhor.

    Aproveitou para aprender o que eles tinham preguiça de aprender. Se tornou rábula, que quer dizer advogado sem diploma. Começou provando no tribunal que tinha direito à liberdade, pois era filho de mulher livre. Em seguida, iniciou - junto com outros estudantes e jornalistas - a Campanha Abolicionista. Conseguiu, ele sozinho, libertar mais de mil escravos, provando na Justiça que eles tinham direito à liberdade porque tinham sido escravizados depois da proibição do tráfico. Seu nome e sobrenome: Luís Gama.

    Um dia, voltou à Bahia e procurou o pai. Tinha morrido. Procurou a mãe. Não acreditou nunca que ela o tivesse vendido. Luísa tinha partido. Mas o nome de Luís Gama ficou, para sempre, na História do Brasil, como uma figura pioneira da Campanha Abolicionista.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Dezembro de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Bonsucesso dos Pretos

    No interior do Maranhão tem uma vila que se chama Bonsucesso. Ninguém, porém, a chama assim. Todos dizem Bonsucesso dos Pretos. Por quê? Vou contar.

    Há longo tempo, debaixo da escravidão, uma moleca desagradou ao senhor. Não sei o nome dela. Vamos chamá-la de Felipa, um nome que se usava muito antigamente. Gozado essa coisa de nome... No tempo do Onça, por aqui ninguém se chamava Simone, Mônica, Karen ou Roberta. Era Felipa, Anacleta, Jacinta, Jovina...

    Aborrecido, o senhor usou seu triste direito de castigar. Mandou levarem Felipa à floresta. Fosse amarrada num pé de pau, até morrer de fome e de sede. Isso se as onças e cobras não fizessem o serviço primeiro.

    A mãe da escravinha se ajoelhou aos pés do dono:

    - Perdoe, perdoe... - gemia.

    - Eu prometo ser sua escrava para o resto da minha vida.

    - Escrava você já - respondeu ele.

    - Não prometa o que não pode cumprir. Levante daí.

    A própria esposa dele se meteu:

    - Perdoa dessa vez. Dá outro castigo. No mato ela morre.

    - É pra morrer. Você é mulher, mas pode entender uma coisa: estamos cercados de escravos. Se não formos duros, eles não nos respeitam. Se não nos respeitam, estamos fritos. De brancos aqui só temos eu, você e o padre. Já pensou? É negro pra todo lado.

    Pois o padre também pediu:

    - Faça como Nosso Senhor. Perdoe.

    O dono fitou a batina com desprezo:

    - Nosso Senhor não viveu aqui, no meio dessa gente. Cuide de suas orações, que é melhor.

    O feitor passou a corda nos pulsos de Felipa. E saiu com ela. Andou, andou, até achar uma clareira:

    - Aqui está bom. Já verás, negra do diabo.

    Passada uma semana o dono chamou o feitor:

    - Vá ver a negrinha. Confirme se já morreu.

    O malvado viu os urubus e pensou: "O serviço acabou".

    Qual! Felipa continuava amarradinha. Mas inteira. Ao seu lado uma gamela de frutas e outra de água.

    - Quem te deu isso? - foi gritando.

    - Minha madrinha.

    - E tu lá tem madrinha? - e chutou as gamelas.

    Passada outra semana, o dono ordenou de novo:

    - Vá lá ver.

    Outra vez o feitor achou as gamelas. Dessa vez com favos de mel. Chutou tudo, como da primeira vez. Rogou uma praga:

    - Que este moleque que te protege o carregue o demo!

    - Não foi moleque. - respondeu Felipa.

    - Foi minha madrinha.

    O dono deixou passar um mês:

    - Vá buscar o esqueleto.

    Felipa estava melhor do que antes. Gordinha.

    O dono não acreditou:

    - Você não está me mentindo? Traga a sujeita aqui. Ou vai você pro tronco.

    Quando o feitor chegou, Felipa já estava solta. Achou estranho. Bateu o mato. Se houvesse alguém, ele achava. Nada. Botou Felipa na frente e veio pra fazenda. Imaginem a surpresa do povo quando cruzaram o terreiro. Na presença do amo, Felipa não baixou os olhos.

    - Se você tem parte com o capeta, vá dizendo - ordenou ele.

    - Quem te deu comida e água?

    - Minha madrinha.

    - Faz de conta que eu acredito. Quem é tua madrinha?

    - O senhor mande ver.

    - Vamos fazer o seguinte. O feitor volta lá contigo. Se encontrar essa tua madrinha, você está livre. Se não...

    O feitor afiou o facão e lá foram. No lugar em que Felipa ficou amarrada, estava agora uma Nossassenhorazinha de dois palmos de altura. Desconfiado, o feitor enganchou a imagem nas costas e lá veio.

    - Como prometi - falou o senhor -,  você está livre.

    Puseram a santinha numa capela com altar de madeira lavada. No outro dia quando foram ver, cadê ela? O senhor apertou Felipa.

    - Mande ver no pé de pau onde o senhor me prendeu.

    Trouxeram a imagem de volta. No outro dia, ela voltou ao mato. E assim diversas vezes. Na décima vez, o senhor trancou a imagem num cofre de ferro que comprou em São Luís. Era do Reino, que pra ele o ferro da terra não valia nada.

    A violência atraiu desgraças. Uma cobra mordeu o feitor e ele bateu as botas. Deu praga no algodoal e se perdeu tudo. A senhora teve erisipela e ficou com perna de elefante. Cosme, o quilombola, passou por perto da fazenda e vinte escravos fugiram pra se encontrar com ele. (Bom, esta última coisa foi desgraça somente pro senhor. Pros que fugiram foi felicidade.)

    O padre, que estava ali pra impedir desgraças, deu um conselho: botasse a imagem num prato, largasse no rio. Onde ela parasse, é que ela queria ficar. A senhora obrigou o marido a fazer promessa: se ficasse boa, libertava dez escravos. Pelo rio abaixo, a Nossassenhorazinha parou onde hoje é Bonsucesso dos Pretos, porque ali vivem até hoje, os descendentes do povo de Felipa.


Texto de Joel Rufino dos Santos retirado da Revista Nova Escola, Novembro de 1993. Fundação Victor Civita, Editora Abril.


Bonsucesso dos Pretos é um dos inúmeros quilombos contemporâneos existentes no Brasil, espalhados por vários Estados. A origem dessas comunidades negras fechadas se perde na história da própria escravidão e das rebeliões escravas. Como são raros os registros sobre o surgimento dessas comunidades, em geral uma lenda ou um mito de criação explica tudo. Em Bonsucesso, a lenda é um exemplo típico de catolicismo popular, muito comum em todo o Brasil. Hoje, essas terras são protegidas pela Constituição como propriedade dos descendentes de escravos que nelas vivem. 

Episódios Transitórios

    Nas raízes profundas dos distúrbios e doenças que afligem a criatura humana, encontramos causas de natureza espiritual, muitas vezes escamoteadas, escondidas sob os escombros de diversos fatores degenerativos.

    Nunca será demasiado repetir-se que o Espírito é sempre o responsável pela carga de mazelas que lhe pesam no transcurso da reencarnação.

    Gerador de atos reprocháveis no passado, recolhe as suas consequências no presente, a se manifestarem em variadas expressões, com o objetivo de contribuir para o despertamento do equivocado ou para proporcionar-lhe recuperação dos erros.

    Seja como for, cada Espírito reencarna, na Terra, atrelado aos seus valores transatos, que lhe constituem motivo de ascensão, através dos sofrimentos e das realizações de enobrecimento.

    Simultaneamente, os desafetos então gerados não silenciam a animosidade no olvido ou no perdão, especialmente se se trata de pessoas vingativas, perversas ou atrasadas moralmente.

    Graças a isso, iremos encontrar, na gênese profunda de muitas enfermidades, especialmente naquelas denominadas mentais, a presença da obsessão como fator desencadeante do problema ou como agravante a complicar-lhe o quadro.

    Todos os pacientes que estertoram nas enfermidades físicas e mentais são, por sua vez, endividados que se enquadram nos severos dispositivos das Leis Divinas, a fim de que se retemperem na luta e se liberem das culpas que conduzem.

    Nesses indivíduos devedores existem matrizes que facilitam o intercurso psíquico com os seus parceiros de outrora, hoje em renhida oposição, e por cujo meio lhes descarregam as energias deletérias que terminam por desarmonizar-lhes o corpo, a mente e perturbar-lhes a alma.

    Não negando a gênese estudada pelos nobres pesquisadores terrestres, na fauna microbiana, nos fenômenos psicopatogênicos e outros, anotamos estes que são de natureza cármica.

    Não desconhecemos que, nas crises de identidade, nos conflitos, nos complexos e em muitas outras alienações mentais, estão embutidos os resultados das conturbações psicossociais, socioeconômicas, sociomorais; todavia, a percepção mediúnica em distonia responde pela vinculação com Entidades perturbadoras e ociosas, que ainda se comprazem na ignorância do dever e no desrespeito à harmonia que deve existir em todos e em toda parte.

    O processo terapêutico de recuperação depende principalmente do enfermo, a partir do momento em que este se resolva por mudar de atitudes moral e mental em relação à vida, a si próprio e ao seu próximo.

    O direcionamento mental e moral correto proporciona o reequilíbrio que, a pouco e pouco, se instala nos painéis do psiquismo e nos órgãos do corpo físico.

    Posteriormente, ou de forma simultânea, a orientação evangélica aos desencarnados que perseveram nas más inclinações auxiliá-los-á a despertar para a realidade na qual se encontram, alternando-lhes, por vontade própria, o comportamento.

    Sem desconsiderarmos os tratamentos compatíveis, nas áreas da ciência médica, o esforço pessoal e o cultivo do otimismo como a ação do bem, são de relevantes resultados para a cura necessária.

    Diante de qualquer alteração negativa no ritmo da tua saúde, faze um balanço dos teus atos e busca o fator desencadeante do processo enfermiço.

    Se o não encontrares nos dias atuais, conscientiza-te que vem de ontem...

    Ninguém sofre sem razão justificável, pois que, se tal ocorresse, estaríamos diante de uma aberração da justiça de Deus.

    De imediato, propõe-te à higiene moral e mental abrindo-te ao amor, que gera saúde, e à confiança em Deus, que a sustenta, prosseguindo em harmonia, durante o tratamento que se te faça necessário.

    Recorda que o estado ideal e normal do ser é o de saúde, sendo a doença, o desequilíbrio, o desconforto, apenas episódios transitórios a caminho da recuperação.


Retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis,  Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2015.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A Pérola Fosforescente

    O Rei dos Dragões vivia, muito tempo atrás, bem distante daqui, no mar Ocidental. Ele tinha uma filha muito linda e ajuizada, que só lhe dera satisfação e alegria. Mas agora, com quase dezoito anos, começava a lhe dar preocupações. O rei dos dragões queria lhe dar um esposo, as ela teimava em não querer se casar. Um pretendente era magro demais, o outro muito gordo, o terceiro muito tolo, e assim por diante.

    Um dia o Rei, que não aguentava mais todas aquelas recusas, disse à filha:

    - Minha filha querida, diga-me afinal: que tipo de homem você deseja para esposo?

    - Não quero um homem rico, nem um alto funcionário; o que desejo é um rapaz honesto e corajoso - respondeu a donzela, corando um pouco.

    O Rei dos Dragões ordenou então a seus conselheiros que começassem a procurar um noivo como a sua filha queria. O general Caranguejo apresentou-se, mas a moça não o aceitou; o ministro Rã veio lhe propor alguém, mas a princesa só fazia sacudir a cabeça em sinal de recusa, até que, finalmente, o general Lagosta veio anunciar, todo glorioso, que havia encontrado o noivo ideal: um órfão, chamado A-eul, que morava não muito longe dali, no golfo; pobre, sim, mas com um coração de ouro e que não tinha medo de nada.

    Um noivo assim não podia agradar exageradamente ao Rei dos Dragões. Ele mandou chamar a filha e lhe disse:

    - Minha filha, é verdade que esse noivo não me agrada nem um pouco. Quem sabe como é de fato essa famosa coragem dele? Além disso, ele não tem sangue real, e não convém à nossa família.

    Mas a moça cismou que era aquele o noivo que ela esperava. Fugiu para o seu quarto, recusando-se a sair de lá, e começou a se lamentar e a derramar tantas lágrimas que isso fez o nível do mar subir.

    O Dragão, seu pai, não sabia o que fazer. Mandou chamar os seus conselheiros mais fiéis e conversou demoradamente com eles. Finalmente o general Lagosta teve uma ideia.

    Naquela noite A-eul, que morava não muito longe de lá, bem na curva do golfo, teve um sonho. Viu surgir um ancião de cabelos brancos, que lhe disse:

    - A-eul, vá depressa até a margem do rio, pois a sua noiva o espera lá.

    Naquele instante, acordou e contou o sonho ao irmão, que dormia na mesma cama. Mas aquele irmão mais velho tinha um temperamento invejoso. Ele esfriou depressa o entusiasmo do caçula:

    - O que está pensando? Como se uma noiva pudesse estar esperando por você! Quem iria aceitá-lo como noivo, pobre como você é? Durma, é melhor.

    A-eul voltou a dormir e o irmão aproveitou para se levantar sem fazer barulho e ir depressa até a beira do rio. Mas A-eul acordou e sentiu o lugar vazio ao seu lado. Lembrou-se então da visão que tivera e, para tirar tudo a limpo, também correu até o rio. Seu irmão saíra primeiro, mas ele foi tão rápido que os dois chegaram ao mesmo tempo.

    A água do rio estava calma e parecia adormecida e sua superfície irradiava uma luz prateada que se espalhava ao longe. A lua estava suspensa bem alto no céu, brilhante como uma moeda de ouro. Nas ondinhas murmurantes que vinham tocar de leve na margem banhava-se uma linda jovem e seus longos cabelos flutuavam ao sabor das ondas que a embalavam.

    - Bela donzela, você me aceita como seu marido? - perguntou-lhe ousadamente A-eul.

    - Não, ele não; escolha a mim! - exclamou depressa o irmão mais velho.

    - Eu me casarei com aquele que me trouxer a pérola fosforescente - declarou a jovem.

    - E onde se encontra essa pérola? - perguntaram, ao mesmo tempo, os dois irmãos.

    - Está escondida no palácio do meu pai, o poderoso Rei dos Dragões. Vou dar a cada um de vocês um grampo que lhes permitirá acalmar as águas agitadas do mar - disse ela.

    E enquanto falava, tirou dos cabelos dois grampos de prata, deu um a cada um dos irmãos e desapareceu, mergulhando nas águas do rio.

    Juntos, os dois irmãos se inclinaram diante do lugar onde a princesa dos Dragões tinha desaparecido e se puseram a caminho na mesma hora. Um deles tomou emprestado do vizinho um cavalo veloz e foi a galope para o mar Ocidental. A-eul vestiu o seu grande chapéu de palha, calçou suas sandálias de fibra de cânhamo e se pôs a caminho ao longo do rio, rumo ao Oriente.

    Era longo o caminho até o mar Ocidental do Rei dos Dragões, um caminho difícil, cheio de emboscadas assustadoras. Depois de passar muitos dias galopando, o mais velho dos irmãos foi parar num vilarejo totalmente invadido pelas águas, com todas as suas casas inundadas; as pessoas tinham de se movimentar de barco. O cavaleiro perguntou o que tinha acontecido e lhe responderam:

    - Faz dez dias que fortes chuvas fizeram o rio sair do leito, e agora, apesar do bom tempo, ele não quer voltar para lá; pelo contrário, a água continua subindo. Que coisa horrível! Parece que existe um jeito de fazer o rio voltar ao seu leito: batendo nele com a vara de ouro que se encontra no palácio do Rei dos Dragões.

    - É justamente para lá que estou indo - respondeu, todo orgulhoso, o irmão mais velho. - Vou trazer-lhes essa vara de ouro.

    E A-eul, que estava a pé, chegou pouco depois àquele mesmo vilarejo inundado. Ao saber do desastre que havia atingido aquele infeliz povoado, também prometeu trazer a vara de ouro do palácio do Rei dos Dragões, se porventura conseguisse obtê-la. Em seguida, retomou o seu caminho e, finalmente, chegou à beira do mar Ocidental. Mas, e o que foi que viu? Seu irmão, que tinha saído bem à sua frente, lá estava, parado, olhando a água que rugia, as ondas que arrebentavam como se estivessem furiosas.

    - Não tenha medo! - disse A-eul ao irmão e atirou com força nas águas fervilhantes o grampo que a princesa lhe dera.

    No instante em que o grampo tocou na primeira onda, a água se acalmou como que por encanto e abriu-se um caminho no mar, para permitir que os dois irmãos penetrassem no reino das águas.

    No palácio, foram recebidos pelo Rei dos Dragões em pessoa. Os dois irmãos lhe apresentaram educadamente o pedido: desejavam levar a pérola fosforescente para obter a mão de sua filha.

    - Sei o que os traz aqui - disse-lhes o Rei. - E vou realizar o desejo de vocês. Mas, neste reino das águas, a lei só permite que um mortal leve consigo um único objeto, apenas um tesouro. Portanto, escolham bem!

    Depois de falar assim, o Rei os levou até a câmara dos tesouros. Quando lhes abriu a porta, os dois irmãos prenderam a respiração, de tão admirados. As paredes eram todas incrustadas de pedras preciosas, o chão era feito de jade, e por onde se olhasse só se viam mil cintilações de diamantes, de ouro e pérolas. No centro de todo aquele esplendor, um brilho superava todos os outros: o da pérola mais rara, da pérola que brilha na noite, a pérola fosforescente!

    A-eul contemplou aquela maravilha, que poderia lhe valer a mão da sedutora princesa, mas, infelizmente, não podia levar a pérola! Na aldeia inundada o aguardavam, cheias de esperança e confiança, as pessoas a quem ele havia prometido, se pudesse, levar a vara de ouro que faria o rio retornar ao seu leito. Sem hesitar mais, foi para ela que se dirigiu, pedindo educadamente ao Rei:

    - Se Vossa Majestade permitir, levarei esta vara de ouro.

    No mesmo instante, o irmão mais velho se precipitava sobre a pérola fosforescente, apossando-se dela e por nada deste mundo a soltaria!

    - Levem cada um de vocês o seu tesouro. Talvez ele lhes traga a felicidade! - disse o Rei dos Dragões, com um estranho sorriso.

    Com isso, os dois irmãos saíram juntos do palácio.

    Quando chegaram à margem, o mais velho pulou para a sela e retomou a galope o caminho de volta. Não demorou a chegar ao vilarejo inundado, onde foi logo cercado pelos seus infelizes habitantes.

    - A vara de ouro, - gritaram - trouxe a vara de ouro?

    - Não, o Rei dos Dragões não deixou que a trouxesse - respondeu o jovem, que incitou o cavalo a continuar o seu caminho.

    Nesse meio-tempo, A-eul vinha vindo. Estava a pé, teve de caminhar muitos dias e noites, mas finalmente chegou ao vilarejo, onde a água subia cada vez mais.

    - Meus amigos, - gritou de longe - eu lhes trouxe a vara de ouro, a abençoada vara de ouro que me foi dada pelo Rei dos Dragões!

    Enquanto falava, debruçou-se sobre a água e começou a chicoteá-la com a vara de ouro. E - milagre dos milagres! a água começou imediatamente a recuar, a descer para o seu leito, onde retomou tranquilamente o seu curso de antes. O reconhecimento da população não tinha limite.

    - Como poderemos lhe retribuir tamanho favor, nosso jovem amigo e protetor?

    Tinham lágrimas nos olhos, por estarem em tal estado de pobreza que nenhum deles tinha nem mesmo um pequenino presente para dar ao jovem. Mas um deles viu, no lodo deixado pelo rio, uma grande concha. Abrindo-a, descobriu uma pérola negra, toda suja, mas afinal de contas uma pérola.

    - Rapaz, não temos nada apropriado para lhe dar, mas lhe pedimos que leve esta pérola como uma lembrança nossa.

    A-eul recebeu a pérola, agradeceu, e retomou seu caminho, dizendo com seus botões que a pérola que a princesa queria não era uma pobre pérola como aquela. Apesar de tudo, o sentimento de ter praticado uma boa ação o consolava.

    Nesse meio-tempo, o irmão mais velho já havia chegado ao golfo, onde encontrara a princesa. Inclinando-se profundamente diante dela, disse:

    - Princesa, trago-lhe a pérola fosforescente. Peço-lhe, então, que seja a minha mulher.

    - Volte à noitinha - respondeu ela. - Somente  a noite pode decidir se esta que você me traz é realmente a pérola fosforescente ou apenas uma pérola comum.

    Quando veio a noite, o irmão mais velho voltou à beira do rio com seu tesouro. Mas - oh, espanto! - a pérola brilhante, a pérola de oriente luminoso, não emitia o menor raio na escuridão da noite.

    - A pérola que você me trouxe não é a verdadeira - zangou-se a princesa.

    - Mas isso é impossível - disse zangado o irmão mais velho.

    Pegou a pérola da mão da princesa, para vê-la melhor, e, de repente, a pérola estourou. Na palma da mão do moço havia agora apenas uma gota de água.

    Alguns dias depois foi a vez de A-eul chegar à beira do golfo. Ele disse logo à princesa:

    - Peço-lhe que não me queira mal, princesa, mas não pude trazer-lhe a pérola do palácio real.

    - E o que traz aí, amarrado na ponta do seu lenço? -  perguntou ela curiosa.

    - Não é grande coisa, princesa. Apenas uma pérola bem comum, que me foi dada por uma boa gente, a caminho daqui.

    - Dê-me a pérola - disse a princesa, que a pegou e a colocou delicadamente na mão dele, que ela lhe pedira que estendesse.

    A-eul arregalou os olhos como duas rodas de carroça. Sim, era a formosa pérola, a pérola que ilumina a noite, a pérola fosforescente! Parecia que a luz viera pousar na sua mão. Dela saíam raios luminosos, que iam se perder na distância, fazendo brilhar toda a superfície do golfo.

    A princesa dos Dragões pegou então a pérola e a atirou para o alto, bem alto nos ares. A-eul olhava o que estava acontecendo, não acreditando no que via, todo estupefato. Acima de suas cabeças, ergueu-se nos ares um palácio encantado e no seu ponto mais alto cintila a pérola fosforescente, que parece indicar-lhes o caminho.

    A princesa segurou A-eul pela mão, dizendo com voz suave:

    - Olhe lá, no alto, é o seu coração bom e corajoso que está resplendendo!

    E o levou consigo para o seu palácio aéreo.


Um conto chinês; texto retirado do livro Alguns Contos e Fábulas, Volume 3; tradução de Thereza Christina F. Stummer, Paulus Editora, São Paulo, 2002.