terça-feira, 29 de março de 2022

O homem que não sabia nem ler

    Um menino andando na rua encontrou um homem sentado na calçada. O menino ia da escola para casa. O homem descansava depois de um dia duro de trabalho.

    - Moço, que horas são?, perguntou o menino.

    O homem disse que não tinha relógio e, para falar a verdade, nem sabia ver as horas.

    O menino não entendeu.

    O homem explicou:

    - Não sei para que servem aquele ponteirão e aquele ponteirinho.

    Eles giram, giram e giram, mas não consigo entender direito como funciona.

    - Mas é tão fácil!, espantou-se o menino. O ponteirinho marca as horas e o ponteirão marca os minutos. Por exemplo: se o ponteirinho está no dez e o ponteirão está no cinco, isso quer dizer que são 10 horas e 25 minutos.

    O sujeito balançou os ombros.

    - Mas qual é o dez e qual é o cinco? Não sei ter os números.

    O homem tinha idade para ser pai do menino.

    - O senhor não conhece os números?

    - Nem os números e nem as letras.

    - O senhor não sabe ler?

    - Nem ler, nem escrever.

    O menino espiou aquela pessoa sentada na calçada.

    - Às vezes na rua, disse o homem, olhando as letras dos cartazes, eu pergunto: o que será que elas dizem? Outras vezes, na banca, fico admirando as revistas, os jornais... queria tanto poder ler as notícias, entender o que se passa no mundo, ler os letreiros dos ônibus e saber para onde eles vão...

    O homem suspirou.

    - Queria tanto ir para baixo de uma árvore, abrir um livro e ler uma história...

    Um automóvel entrou na curva soltando uma fumaça preta.

    - Eu não sou daqui, continuou o sujeito. Minha cidade fica depois da serra, pegando a estrada, passando a outra serra e depois a outra, lá longe, perto do mar.

    E seus olhos brilharam tristes.

    - Às vezes, fico me lembrando de casa, de minha mãe, meu pai, meus irmãos...

    O menino procurou um lugar para sentar.

    - Você sabe escrever?, quis saber o homem.

    O menino estufou o peito:

    - Já sou quase da terceira série!

    O outro sorriu:

    - Tenho uma noiva lá na minha terra. Ela é uma princesa. A coisa mais linda do mundo. Um dia a gente vai casar...

    Examinou o menino:

    - Escreve uma carta pra mim?

    Dizendo sim com a cabeça, o menino tirou um caderno e uma caneta esferográfica do fundo da mochila.

    O homem foi falando. O vento soprava morno. O homem contou que a cidade era grande. Contou que estava sozinho. Contou que sentia medo. Contou que quase tinha juntado um dinheirinho, que estava morto de saudade e que no fim do ano, se Deus ajudasse, pegava o ônibus e voltava para casa.

    O menino escreveu tudo com letra caprichada, dobrou o papel e entregou ao homem.

    A Lua havia surgido sem ninguém perceber.

    O menino precisava ir embora.

    O homem apertou a mão do menino.


Conto de Ricardo Azevedo retirado da Revista Nova Escola, Março de 1997. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

segunda-feira, 28 de março de 2022

Contanabos, o senhor das montanhas

    Entre a Silésia e a Boêmia estende-se uma enorme cadeia de montanhas em cujo interior vive o poderoso Espírito das Rochas, o afamado Contanabos. Esse príncipe dos espíritos da terra possui na superfície terrestre apenas um espaço reduzido, de algumas milhas de extensão, cercado pela serra pedregosa. mas em profundidade seu domínio é enorme e desce por milhas e milhas até o centro da Terra. Ele, o Contanabos, reina sobre as minas de metais e as jazidas de pedras preciosas, manda nos vulcões e em todos os espíritos das entranhas da terra e das montanhas. Tem também o poder de transfigurar-se no que lhe der vontade: pode aparecer em forma de homem ou de animal, grande ou pequeno, anão diminuto ou monstro assustador.

    De vez em quando gosta de afastar-se dos seus domínios das profundezas e de subir, para observar os míseros e medrosos seres humanos, à custa dos quais se diverte, ora de maneira cruel e zombeteira, ora demonstrando-lhes, disfarçado de várias formas, benevolência e generosidade. Porque o soberano das montanhas, o gigante Contanabos, tem gênio variável e instável, ora calmo, ora turbulento, ora malvado, ora bondoso, ora frio e insensível, ora caloroso e carinhoso, cheio de contradições, mas sempre surpreendente.

    Há séculos e séculos, contam-se dele as mais estranhas histórias, engraçadas umas, outras apavorantes. Ninguém sabe seu nome verdadeiro, mas foi por causa de uma de suas aventuras, acontecida há centenas de anos, que recebeu do povo da região o apelido de Contanabos. Ele detesta essa alcunha, porque ganhou-a num episódio de que tem vergonha, acontecido na única vez em que tentou ser realmente humano.

    É uma longa história, mas por enquanto basta contar que, há muito, muito tempo, numa das vezes em que o Espírito das Rochas subiu à superfície da terra, ele se apaixonou por uma formosa princesa. Então, transformando-se num belo príncipe, raptou-a e levou-a para seu palácio subterrâneo, onde queria casar-se com ela. Mas ela já era noiva de um príncipe do reino vizinho e não queria saber de casamento com seu raptor, por mais belo, rico e poderoso que ele fosse. Para livrar-se dele, astutamente o enganou dizendo que se casaria, se numa só noite ele contasse todos os nabos mágicos da sua enorme horta - sem errar, nem mesmo por um. Se errasse um que fosse - para mais ou para menos - ela não se casaria com ele.

    O Espírito das Rochas concordou com a condição, que julgou fácil e pôs-se logo a contar os nabos, o que fez até rapidamente. Mas toda vez que conferia a contagem, dava uma diferença e ele passou a noite inteira contando e recontando os nabos.

    Enquanto isso, a esperta princesa, usando um dos nabos mágicos que ele lhe dera para satisfazer suas vontades, transformou-o em fogoso corcel e fugiu do reino subterrâneo, deixando o poderoso Espírito das Rochas a ver navios. Foi assim que ele acabou ganhando o ridículo apelido de nabos ou, simplesmente, Contanabos.


Mito popular alemão recontado por Tatiana Belinky. Retirado da revista Nova Escola, Dezembro de 1996. Fundação Victor Civita. Editora Abril.

domingo, 27 de março de 2022

Os Viajantes e o Monstro

    Um rapaz ganhou de seu pai uma arma e saiu pelo mundo. Andou, andou, até que encontrou um sonhador. Passaram a ser dois, viajando juntos. De manhã, o sonhador disse: 

    - Sonhei com um ladrão que seguia conosco.

    E assim foi. Encontraram um construtor de barcos e passaram a ser quatro, viajando juntos. Na outra manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei com um colador de coisas quebradas que viajava conosco.

    E assim foi. Encontraram um colador e passaram a ser cinco, viajando juntos. Na outra manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei com um soba que nos prendia e punha na cadeia.

    Nós podemos não saber o que é um soba. Mas os quiocos sabem muito bem que é um chefe de aldeia, muito importante e com muitos poderes, uma espécie de rei. Por isso, os viajantes nem se espantaram quando chegaram a uma aldeia e o soba disse ao rapaz da arma:

    - Teu pai roubou minha filha! Ou você me devolve a moça, ou ficam todos sendo meus escravos!

    Prendeu todos eles e mandou espancá-los. De manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei que é verdade o que ele diz: teu pai roubou mesmo a moça e a vendeu a um monstro, lá no mar. Sonhei que nós a encontrávamos, mas o monstro era muito feroz e quebrava nosso barco todo. Aí eu acordei.

    O rapaz chamou o soba e disse:

    - Sabemos onde está tua filha. Se nos soltares, vamos buscá-la.

    O soba então prometeu que, se a trouxessem, daria a eles o sobado. E eles partiram.

    Andaram, andaram, andaram e dormiram. De manhã, o sonhador disse:

    - Sonhei que chegávamos a uma aldeia com muitas moças. Uma delas estava fazendo cestos em forma de cone, cheios de desenhos. Essa era a filha do soba.

    E o ladrão respondeu:

    - Deixa que eu roubo.

    Os outros se esconderam no mato, bem na beira do mar. O construtor de barcos começou a trabalhar e o ladrão entrou na aldeia. Chegou perto da moça e, conversa vai, conversa vem, foi falando no pai dela, na mãe dela, e a moça logo viu que ele vinha salvá-la. Na primeira chance, fugiu com ele para o mato. Entraram no barco, que já estava pronto e partiram todos. Quando o monstro percebeu, ficou furioso e partiu o barco deles em pedacinhos. O rapaz da arma deu um tiro e arrancou a cabeça do monstro. Mas ele tinha várias, era só botar uma nova. Enquanto fazia a troca, o colador de coisas quebradas consertou o barco e os fugitivos se afastaram. Daí a pouco, o monstro se aproximou outra vez: novo tiro, nova troca de cabeças, novo conserto de barco. De cada vez, a aldeia do soba ficava mais perto. Até que eles conseguiram chegar e o monstro viu que não adiantava insistir. Ninguém conseguia vencer os cinco amigos.

    O soba cumpriu a palavra. Deu o sobado ao rapaz e deu também a filha em casamento. Os outros casaram e ficaram sendo ajudantes do soba, porque nessas coisas de sobado - garantem os quiocos - é sempre muito útil ter a ajuda de um sonhador, um ladrão, um construtor e um consertador.


Conto tradicional dos quiocos, um povo angolano recontado por Ana Maria Machado. Retirado do revista Nova Escola, Novembro de 1996. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

sábado, 26 de março de 2022

Libertação de Consciência

    Não aguardemos que o aplauso do mundo coroe as nossas expectativas.

    Não esperemos que as alegrias nos adornem de louros ou que uma coroa de luz desça sobre a nossa cabeça vestindo-nos de festa.

    Quem elegeu Jesus, não pode ignorar a cruz da renúncia.

    Quem O busca, não pode desdenhar a estrada áspera do Gólgota.

    Quem com Ele se afina, não pode esquecer que, Sol de primeira grandeza como é, desceu à sombra da noite, para ser o porto de segurança luminosa, no qual atracaremos a barca de nosso destino.

    Jesus é o nosso máximo ideal humano, Modelo e Guia seguro.

    Aquele que travou contato com a Sua palavra nunca mais O esquece.

    Quem com Ele se identifica, perdeu o direito à opção, porque a sua, passa a tornar-se a opção d'Ele, sem o que, a vida não tem sentido.

    Não é esta a primeira vez que nos identificamos com o Seu verbo libertador. Abandoná-lo é infidelidade, que O troca pelos ouropéis e utopias do mundo, de breve duração.

    Não é esta a nossa experiência única no santuário da fé, que abraçamos desde a treva medieval, erguendo monumentos ao prazer, distantes da convivência com a dor.

    Voltamos à mesma grei, para podermos, com o Pensamento Divino vibrando em nós, lograr uma perfeita identificação.

    Lucigênitos, procedemos do Divino Foco, para o qual marchamos.

    Seja, pois, a nossa caminhada assinalada pelas pegadas de claridade na Terra, a fim de que, aquele que venha após os nossos passos, encontre as setas apontando o caminho.

    Jesus não nos prometeu os júbilos vazios dos tóxicos da ilusão. Não nos brindou com promessas vãs, que nos destacassem no cenário transitório da Terra. Antes, asseverou, que verteríamos o pranto que precede à plenitude, e teríamos a tristeza e a solidão que antecedem à glória solar.

    Não seja, pois, de surpreender que, muitas vezes, a dificuldade e o opróbrio, o problema e a solidão caracterizem a nossa marcha. Não seja de surpreender, portanto, que nos vejamos em solidão com Ele, já que as Suas, serão as mãos que nos enxugarão o pranto, enquanto nos dirá suavemente: - Aqui estou!

    Perseveremos juntos, cantando o hino da alegria plena na ação que liberta consciências, na atividade que nos irmana e no amor que nos felicita.


Texto retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Como os Campos

    Preparavam-se aqueles jovens estudiosos para a vida adulta, acompanhando um sábio e ouvindo seus ensinamentos. Porém, como fizesse cada dia mais frio com o adiantar-se do outono, dele se aproximaram e perguntaram:

    - Senhor, como devemos vestir-nos?

    - Vistam-se como os campos, respondeu o sábio. Os jovens então subiram até uma colina e durante dias olharam para os campos. Depois dirigiram-se à cidade, onde compraram tecidos de muitas cores e fios de muitas fibras. Levando cestas carregadas, voltaram para junto do sábio.

    Sob o seu olhar abriram os rolos das sedas, desdobraram as peças de damasco e cortaram quadrados de veludos e os emendaram com retângulos de cetim. Aos poucos, foram recriando em longas vestes os campos arados, o vivo verde dos campos em primavera, o pintalgado da germinação. E entremearam fios de ouro no amarelo dos trigais, fios de prata no alagado das chuvas, até chegarem ao branco brilhante da neve. As vestes suntuosas estendiam-se como mantos. O sábio nada disse.

    Só um jovem pequenino não havia feito sua roupa. Esperava que o algodão estivesse em flor para colhê-lo. E, quando teve os tufos, os fiou. E, quando teve os fios, os teceu. Depois vestiu sua roupa branca e foi para o campo trabalhar.

    Arou e plantou. Muitas e muitas vezes sujou-se de terra. E manchou-se do sumo das frutas e da seiva das plantas. A roupa já não era branca, embora ele a lavasse no regato. Plantou e colheu. A roupa rasgou-se, o tecido puiu-se. O jovem pequenino emendou os rasgões com fios de lã, costurou remendos onde o pano cedia. E, quando a neve veio, prendeu em sua roupa mangas mais grossas para se aquecer.

    Agora a roupa do jovem pequeno era de tantos pedaços que ninguém poderia dizer como havia começado. E estando ele lá fora uma manhã, com os pés afundados na terra para receber a primavera, um pássaro o confundiu com o campo e veio pousar-se no seu ombro. Ciscou de leve entre os fios, sacudiu as penas. Depois levantou a cabeça e começou a cantar.

    Ao longe, o sábio, que tudo olhava, sorriu.


Conto de Marina Colasanti pertencente ao livro inédito Longe Como O Meu Querer, vencedor da primeira edição do Prêmio Latinoamericano de Literatura Infantil Y Juvenil Norma - Fundalectura de que participaram 141 obras de 13 países, em maio. Retirado da Revista Nova Escola. Outubro de 1996. Fundação Victor Civita. Editora Abril.

O livro de Marina Colasanti foi lançado em 1997 pela Editora Ática na Série Sinal Aberto.

quinta-feira, 24 de março de 2022

Moisés salvo das águas

    Há muitos anos e muitos séculos, quando o povo judeu era escravo no Egito, chegou uma época em que o soberano, chamado faraó, temendo que esse povo se tornasse numeroso demais e ameaçasse se revoltar, decretou que todas as crianças do sexo masculino nascidas de mãe judia fossem afogadas no Rio Nilo. E houve muito luto, pranto e tristeza nas famílias judias, obrigadas a sacrificar seus bebês meninos.

    Mas quando o casal Yoschabed e Amram teve seu terceiro filho, um lindo menino, a mãe, depois de resistir à cruel ordem do faraó e conseguir escondê-lo durante três meses, acabou tendo de livrar-se dele, para que toda a família não fosse sacrificada. Então, em desespero de causa, ela calafetou com betume uma cestinha de vime, colocou dentro dela o bebezinho e mandou que sua filha Míriam a levasse até o rio, com o irmãozinho dentro, pusesse a cesta na água entre os juncos e ficasse escondida, para ver o que aconteceria. A menina assim fez e, oculta entre os juncos, ficou observando.

    Pouco depois, chegou à margem do rio, conversando e rindo, a princesa egípcia, filha do faraó. Ela ouviu o choro da criancinha dentro da cesta e, aproximando-se, viu o menino bonito e forte ali abandonado. Encantada e compadecida, percebendo que se tratava de uma das crianças judias condenadas à morte por afogamento, a princesa disse que queria ficar com ela e levá-la consigo para o palácio.

    Ouvindo isso, Míriam se encheu de coragem, saiu do seu esconderijo e, dirigindo-se respeitosamente à princesa, disse que conhecia uma mulher judia que acabara de perder seu filhinho e que poderia alimentar esse menino, até ele crescer um pouco e poder ser levado ao palácio do faraó. Pediu, então, licença para buscar essa mulher. A princesa, contente, concordou. Imediatamente Míriam foi correndo buscar sua própria mãe e levou-a à presença da princesa. Yoschabed, trêmula de emoção, ouviu a princesa dizer que lhe confiava a criança para ela amamentar e cuidar até que estivesse em condições de ser levada para o palácio, onde ela mesma, a princesa, iria criá-la e educá-la como se fosse seu filho - um príncipe egípcio. Disse ainda que iria chamá-lo de Moisés, já que o tinha tirado das águas.

    Rindo e chorando de felicidade, Yoschabed, a mãe, e Míriam, a irmã, levaram o pequeno Moisés de volta para casa, onde puderam ficar com ele durante alguns anos. Foi o suficiente para Moisés ficar conhecendo seu próprio povo e lembrar-se dele mesmo após ser levado ao palácio do rei, onde foi criado, de fato, como um verdadeiro príncipe egípcio. Um príncipe que viria a ser um grande líder e libertador do povo judeu da escravidão do Egito.


Conto de Tatiana Belinky adaptado da Bíblia, Êxodo 2. Revista Nova Escola, Setembro de 1996. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

quarta-feira, 23 de março de 2022

O Gato Professor

    Numa alta montanha se escondia um tigre de patas pesadas e lentas, que não podia andar nem saltar com agilidade. Tinha força, mas essa de pouco lhe valia porque raramente conseguia agarrar a presa que cobiçava.

    Um belo dia, quando o tigre saía da sua gruta à procura de alimento, cruzou com um gatinho que vinha pulando e saltando alegremente. Os movimentos flexíveis e a agilidade do gatinho despertaram a inveja no tigre, que pensou consigo mesmo: "Que bom se eu pudesse ser ágil assim". Então, em tom suplicante, dirigiu-se ao gatinho:

    - Mestre Gato, pode ensinar-me a arte de passar ligeiro por montes e vales, saltando como você?

    O gatinho bem sabia que o tigre era bicho de maus bofes. Pensou que ensinando-lhe a sua arte poderia colocar em perigo a própria vida. Então respondeu, cautelosamente:

    - Não digo que não, mas tenho medo de que quando souber correr e saltar como eu você se mostre ingrato.

    O tigre fez uma vênia profunda e disse:

    - Mestre Gato, se você se dignar a tomar-me como aluno, prometo que jamais serei ingrato. Se alguém o ofender, juro que darei minha própria vida para defendê-lo.

    Juramento é coisa séria. O gatinho acreditou nas palavras hipócritas da fera e, com pena da sua lentidão, aceitou o tigre como aluno. Um aluno tão aplicado que não demorou muito para o gatinho ensinar ao tigre tudo o que sabia, faltando só uma aula.

    No dia dessa última aula, o tigre estava tão animado, pensando que logo, logo poderia agarrar e devorar o seu rechonchudo e apetitoso professor, que ficou com a boca cheia d'água. Mas o gatinho, que já ia ensinar o seu último truque ao tigre, percebeu que o seu aluno o olhava com olhos cobiçosos, literalmente babando de apetite. E quando o tigre lhe perguntou, querendo certificar-se, se o mestre Gato já lhe ensinara tudo o que sabia, o gatinho disse:

    - Sim, naturalmente. Ensinei-lhe tudo, tudinho.

    Mas ficou bem atento. Aí o tigre, querendo ser astuto, falou, para desviar a atenção do professor:

    - Mestre Gato, olhe atrás de você quem está subindo naquela árvore!

    E assim que o gatinho se voltou, o tigre escancarou a bocarra, arreganhou os dentes e deu um pulo para a frente. mas o gatinho, que já pressentia a traição, foi mais esperto: rápido como um raio, de um salto só, ele trepou na árvore e, do alto de um galho, fora do alcance do tigre, olhou severo para o seu aluno e gritou, indignado:

    - Fera ingrata! É assim que você honra o seu juramento? Por sorte eu não lhe ensinei como trepar nas árvores, senão já lhe estaria servindo de sobremesa.

    - Você não me ensinou tudo, gato danado! - rosnou o tigre, lançando-se furioso contra a árvore, sem poder escalá-la e mordendo sua casca sem resultado.

    Mas o gatinho, saltando de galho em galho e de árvore em árvore, só parava de vez em quando para acariciar os bigodes e olhar zombeteiramente para o tigre. Este urrava de frustração e raiva impotente, vendo-se logrado pelo esperto gatinho, que saltou ágil e alegre até sumir de vista.


Conto do folclore chinês recontado por Tatiana Belinky e retirado da Revista Nova Escola, Agosto de 1996. Fundação Victor Civita, Editora Abril.

terça-feira, 22 de março de 2022

O rei que só queria comer peixe

Há muito tempo, havia no Tibete um rei que só queria comer pescado, o que era muito bom para os pescadores do reino. Mas eis que chegou um ano de grande estiagem, tão grande que os rios foram secando, e os peixes foram morrendo. Chegou um dia em que não havia mais peixes para pescar. Não havia peixe nem mesmo para o próprio rei, que se viu obrigado a comer apenas arroz, o que não o satisfazia e o deixava muito deprimido.

Então o rei mandou colocar faixas e cartazes por toda a parte anunciando que quem lhe levasse ao palácio qualquer tipo de pescado receberia como recompensa e prêmio qualquer coisa que quisesse pedir. A notícia correu ligeira por todo o reino, mas sem resultado. Por mais que todo mundo tentasse e procurasse, não havia mais peixes nos rios secos. E o rei foi ficando cada vez mais aflito e abatido.

Até que um belo dia apareceu no portão do palácio um homem, um pescador vindo do estrangeiro, com uma cesta cheia de pescado fresco e reluzente, que ele queria oferecer à Sua Majestade. Mas, na entrada do palácio, o guarda de sentinela deteve o homem e lhe perguntou, ríspido, o que ele vinha fazer ali. Quando soube do que se tratava, disse ao pescador:

- Trazes pescado para o rei, não é? Pois muito bem, deixa-o aqui comigo, que eu me encarrego de entregá-lo ao rei.

- Não, disse o homem, eu mesmo quero entregá-lo pessoalmente nas mãos de Sua Majestade.

- Então vende-me o pescado, disse o guarda. Eu pagarei bem.

- Não vim vender esses peixes. Vim oferecê-los de presente ao rei.

Vendo que não conseguia convencer o homem, o guarda mudou de tática:

- Pois fica sabendo que só vou te deixar passar se prometeres dar-me metade do prêmio que vais pedir e ganhar do rei. Jura que vais fazer o que exijo. Senão, não poderás entrar.

- Está bem, disse o homem, - eu concordo. Juro que vou fazer o que tu queres. Mas preciso saber o teu nome, porque se me demorar no palácio, preciso saber como encontrar-te depois.

- Meu nome é Yaco-Zarolho, não te esqueças - disse o guarda.

O pescador entrou na sala do trono e ofereceu o pescado ao rei. Este, exultante, perguntou o que ele queria como prêmio e recompensa. Mas o rei ficou perplexo quando ouviu o homem dizer que só queria duzentas chibatas no lombo. Incrédulo, o rei repetiu a pergunta e ouviu a mesma resposta:

- Peço somente duzentas chibatadas no meu lombo, Majestade.

Diante disso, o rei ordenou aos seus servos que lhe dessem as duzentas chibatadas, "mas bem de leve", para não machucar o lombo do excêntrico pescador. O que começou a ser feito, bem de leve. Mas na centésima chibatada o pescador falou:

- Basta, já recebi metade do meu prêmio. A outra metade eu prometi ao guarda Yaco-Zarolho.

O rei

segunda-feira, 21 de março de 2022

O Banquete da Vingança

    Há muitos séculos, em Mênfis, a opulenta capital do antigo Egito, o rei, um jovem faraó, foi traiçoeiramente assassinado. A bela rainha Nicrotis, viúva do faraó, aceitou o trono que seus súditos lhe ofereciam. Imediatamente, marcou a data da sua coroação, tão cedo que o povo até estranhou, pois parecia que ela esquecera depressa demais seu jovem esposo, traído e assassinado.

    A rainha queria celebrar de forma excepcionalmente suntuosa sua ascensão ao trono egípcio e, para os esplêndidos festejos, mandou construir um enorme salão subterrâneo, ricamente decorado. Nele iria recepcionar, em nababesco banquete, especialmente convidados, grandes e importantes personagens do reino. Seria um banquete do qual ninguém iria se esquecer. Ela prometeu que, após o festim, o povo poderia apreciar um grande espetáculo.

    As obras começaram em ritmo acelerado, com milhares de escravos trabalhando. O suntuoso salão ficou pronto em tempo recorde.

    Logo chegou o dia marcado para o grande festim e os convidados foram chegando, animados e ricamente ataviados. Prontamente, começou o banquete, de requintadas iguarias e capitosas bebidas, em meio à maior magnificência e solenidade.

    A rainha Nicrotis presidia o banquete, mais formosa do que nunca, imponente e majestosa, com um fulgor estranho nos grandes e majestosos olhos negros.

    O festim já andava pelo meio quando, de repente, se ouviu um ruído formidável, um fragor ensurdecedor, enquanto uma grande e feroz alegria inundava as harmoniosas feições da rainha. Ao mesmo tempo, os rostos dos convivas ficavam lívidos de espanto e pavor. É que, presos naquele subterrâneo, eles acabavam de se dar conta de haver caído numa armadilha. Perceberam que, reunidos naquele salão, estavam apenas aqueles cortesãos e nobres da corte que haviam tramado a traição e perpetrado o assassinato do jovem faraó. E agora se cumpria a vingança da rainha Nicrotis: ela mandara construir o salão subterrâneo cercado de enormes bocas de água, disfarçadas de tapadeiras decorativas nas paredes. Tapadeiras essas que, a um sinal da rainha, caíram, deixando entrar torrentes de água por todos os lados, invadindo e inundando o salão, que só tinha uma entrada - fechada - e nenhuma saída.

    Em poucos minutos, o grande salão subterrâneo estava inundado. Os convidados, condenados a morrer afogados, só tiveram tempo de ouvir a voz da rainha Nicrotis proclamando triunfante:

    - Os traidores devem morrer traídos!

    Ninguém conseguiu escapar, ninguém se salvou. O teto do subterrâneo desabou, afundando e cobrindo para sempre aquele enorme tanque, submergindo naquela líquida sepultura, para sempre, todos os que ali se encontravam, inclusive a rainha, que pereceu junto com os traidores.

    No dia seguinte, conforme fora prometido, o povo de Mênfis pôde ver o lugar do trágico banquete da coroação. Todos os corações se encheram de admiração pela coragem da rainha Nicrotis, que não hesitara em sacrificar sua própria vida para que todos os traidores e assassinos do jovem faraó seu esposo tivessem a sorte e a morte que mereciam.

    Foi esse banquete da vingança da rainha Nicrotis.


Conto egípcio recontado pela escritora Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita. Editora Abril, Maio de 1996.

domingo, 20 de março de 2022

O Cigano e o Lote do Diabo

    Depois de muito procurar, um pobre cigano conseguiu comprar, por apenas duas moedas, um pequeno lote de terra que ninguém queria, porque tinha uma pedreira com uma caverna cheia de morcegos. Nem bem ele começou a cavar as fundações da sua futura casinha, eis que surgiu na sua frente um homem esquisito, envolto numa capa vermelha, que o interpelou rispidamente, dizendo que ele não podia cavoucar ali. "Este terreno é meu, eu sou um diabo, e neste caverna nossa confraria se reúne todas as semana para o satânico sabá com as bruxas, nossas amigas.!"
    Mesmo tremendo de medo, o cigano protestou, dizendo que estava no seu direito, pois comprara o lote do alcaide, com o seu pouco e suado dinheirinho, e não abriria mão dele.
    Os diabos respeitam os tratos. Esse diabo então propôs ao cigano recomprar-lhe o lote pelo dobro do que ele pagara. "Assim, com quatro moedas, poderás comprar outro terreno, melhor do que este". O cigano animou-se e tratou de regatear. "Quatro moedas é pouco, quero o meu boné cheio de moedas de ouro, senão não arredo o pé daqui." O diabo resmungou, mas acabou concordando e saiu para buscar o dinheiro.
    O cigano, assim que se viu só, cavou mais que depressa um buraco fundo no chão e o cobriu com o seu boné - previamente furado - de boca para cima. Quando o diabo voltou com um saco de moedas e começou a despejá-las no boné, não conseguiu enchê-lo, porque elas caíam pelo furo do boné no buraco do chão. O boné só ficou cheio quando o saco do diabo ficou vazio. Coçando a cabeça, perplexo, o diabo sumiu de vista, largando do chão o saco, que o cigano imediatamente encheu com as moedas do buraco e saiu assobiando, rico e feliz da vida.
    Ele então construiu uma bela casa, casou com uma linda cigana e viveu à tripa forra durante um bom tempo. Mas dinheiro que vem fácil se vai fácil e, um belo dia, o cigano se viu pobre de novo. Sua mulher lhe azucrinava tanto a paciência por causa de falta de dinheiro que um dia, aborrecido, ele saiu de casa para a estrada. Andou que andou até que, de repente, sem perceber, se viu naquele lote de terra onde encontrara o diabo, anos antes. "Bem que eu poderia arrancar mais algum daquele diabo bobão", pensou ele. No mesmo instante, surgiu na sua frente o mesmo homem de capa vermelha, que rosnou para ele, enfezado: "O que estás fazendo aqui? Já me basta a bronca que levei do meu chefão Belzebu por causa daquela história do boné sem fundo. Vai embora, senão eu te dou uma surra. Vê só como sou forte!" E o diabo apanhou uma pedra e a esmagou na mão até ela virar pó.
    O cigano, apesar do medo, não se deu por achado. "Sou mais forte do que tu", disse, e disfarçadamente tirou do bolso um pedaço de queijo, fingindo que apanhara uma pedra no chão: "Olha o que eu faço com a tua pedra!" E esmagou o queijo na mão até pingar suco de queijo do seu punho fechado. O diabo arregalou os olhos, espantado, e o cigano disse: "Ou tu me trazes mais um saco de dinheiro, do teu tamanho, ou eu destruo a tua caverna com as minhas mãos fortes!"
    O diabo, alarmado, disparou para dentro da caverna e voltou curvado debaixo de um enorme saco de moedas, que colocou no chão. E já ia sumir quando o cigano disse: "Não estou disposto a carregar peso. Quero que leves este saco para minha casa, senão destruo a tua caverna!" O diabo, amedrontado, obedeceu e carregou o saco de moedas para a casa do cigano, que ainda lhe agradeceu, zombeteiro: "Grato pelo tua gentileza, amigo diabo. Podes voltar para a caverna e contar aos teus coleguinhas que desta vez escapaste de boa!"
    O diabo chispou embora e o cigano voltou-se para sua atônita mulher: "Estamos ricos de novo, me respeita agora, não me azucrines mais a paciência! E daqui em diante sê mais econômica, por que não quero ter um terceiro encontro com o diabo: bastam os dois sustos que já levei. Se este dinheiro do inferno acabar, prefiro voltar a trabalhar e ganhar  vida com suor do meu rosto".

História do folclore cigano recontada por Tatiana Belinky. Retirado da Revista Nova Escola. Fundação Victor Civita. Editora Abril. Abril de 1996.